domingo, 6 de março de 2022

Pensamento do Dia


 

Das crianças e a guerra


Estas imagens são tão chocantes que não seriam necessárias mais palavras para as legendar. Uma criança com medo de uma guerra que descobriu da maneira mais violenta: os bombardeios aéreos. Não sei como se apazigua o coração de uma criança nesta situação. Não sei como alguém pode provocar tal sofrimento. Não sei como existem ambições desmedidas que levam à destruição indiscriminada do ser humano. Aquelas bombas trazem a mais horrenda mensagem de um vil e mais horrendo ditador: bombardear para ocupar. Matar para reinar.

As crianças não a entendem. Apenas descobrem o medo. Um medo sufocante que não acaba. Um medo que nasce e vem de dentro . Um medo que nem os gritos ou o choro são capazes de estancar. Dilacera e esmurra o coração.

E a história repete-se . A sede de totalitarismo de que fala Arendt é inesgotável. Há sempre um déspota sequioso.

Pude constatar esta verdade. O sofrimento que estes actos abomináveis da guerra causam nas crianças.

Na década de cinquenta, quando os tanques e a força aérea militar russa metralharam a Hungria , muitas crianças húngaras foram evacuadas e acolhidas em alguns países . Famílias portuguesas também as receberam. Essas crianças traziam consigo a memória terrível da guerra. Guerra que se repete agora e é, de novo, o terror de outras crianças. Nas minhas memórias de infância , tenho , nitidamente presente, uma criança húngara que conheci na praia , onde a minha família , pais e cinco irmãos , passava as férias de Verão.

Eis um excerto de um apontamento que fiz, há alguns anos, num irrelevante registo memorialístico.

A parceira que mais nos impressionou foi uma refugiada húngara. Teria uns seis ou sete anos. Tinha sido acolhida por uma família amiga dos meus pais. Nos primeiros anos , falava mal o nosso idioma, passando com o decorrer do tempo a dominá-lo com brilhante segurança e correcta articulação.

Não recordo, com total certeza , o seu nome, mas creio ser Judit. Pois a Judit tinha uma estatura muito mais volumosa que a nossa. Quase nos dominava em tamanho e peso. Era , porém, uma menina doce e afável que participava em todas as brincadeiras que eram muitas. (...)

A Judit entrava em tudo, com elegância e gentileza. O que mais me confundia nesta menina era o pavor que a acometia, quando, muito raramente, nos sobrevoava um avião e se ouvia o ruído do motor. Atirava-se para o chão , tapava os ouvidos, gemia e agitava-se como estivesse a ser vítima de uma convulsão.

Atentos, os familiares adoptivos vinham , de imediato, com uma manta em que a enrolavam e levavam-na para o interior da barraca. À medida que fui crescendo, fui entendendo que tinha havido uma nefasta guerra que marcara profundamente aquela menina. Os aviões, que despejaram bombas sobre o seu país, vinham em som e ruído até ali, sempre que passava qualquer um.

Naquele tempo, não havia psicólogos e , por tal, não se atribuía apoio psicológico como hoje tão apraz fazer. As sequelas eram tratadas dentro de casa. Com carinho e muito afecto familiar. Creio que muitas delas ficaram para sempre e que a Judit, esteja onde estiver, ainda convive com elas.Que Deus não salve Putin.
 

Maria José Vieira de Sousa

O 'não' do Ocidente

Nunca na minha vida vi uma crise internacional onde a linha divisória entre o certo e o errado tenha sido tão nítida, enquanto a máquina de guerra russa desencadeia sua fúria sobre uma democracia legítima.

Já fizemos o suficiente pela Ucrânia? A resposta honesta é não. O ato de agressão de Vladimir Putin deve fracassar e ser visto como um fracasso. Não devemos permitir que ninguém no Kremlin escape impune
Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido

Os mesmos cães da Aclimação

Eles não escolhem mais hora, uivam de madrugada, uivam sob o sol matador desses dias. Esse concerto canino de vozes, que deixou Cecília Meireles insone e assombrada em sua primeira noite na Aclimação, esse mistério de cantores “meio sobrenaturais”, que ela ouvia sem ver, tentando alcançar a mensagem (pois alguma devia de haver que lhe valesse a noite em claro), é mistério que continua onde ainda existe o anfiteatro dos velhos quintais abertos para o céu, em casinhas com hera grimpando os muros.

Sim, os cães da Aclimação continuam a uivar por aqui, modulando um coro de azuis, os mesmos cães do passado, apenas agora em voz mais encovilada, trabalhada pelo século. Continuam também invisíveis, embora uivando à luz do dia. Começam à hora deles, sem aviso – outro mistério –, e, um puxando o choro, jamais os outros se omitem, cada um dá seu timbre, sua cor, sua alma, para essa vaga que se alteia sobre as casas e que nos leva.

Cecília foi levada por esse canto até eras e lugares remotos, num sonho de poeta próprio da insônia. Agora sonho eu, a bordo desse choro, e vou até os cães mudos de pânico, abrigados nos metrôs de uma Ucrânia bombardeada, depois até o silêncio de morte do velho Azorka, pobre companheiro estendido no chão, aos pés do velho dono, o focinho coberto pelas patas, Azorka intacto em sua solidão, cumprindo sua sina envolto em asco.

E assim, inesperadamente, tal como vem, esse coro de azuis também se vai. Ele se vai e nos traz de volta. As noites, e agora os dias, os recolhem, a esses azuis, e quem sabe alguns de nós também recolham qualquer coisa dessa obscura mensagem. É uma emergência, eles deixam saber enquanto choram. Depois, o silêncio é uma vaga maior e nós afundamos, desassombrados, ficamos surdos de novo, cegos de novo, de novo nos empanturramos de palavras.
Mariana Ianelli

O desmundo

A ordem emitida sugeria apenas um deslocamento forçado: todos os judeus da cidade de Kiev e vizinhanças deveriam se apresentar às 8 da manhã do 29 de setembro de 1941 na esquina de duas ruas específicas, munidos de documentos, dinheiro e pertences valiosos; além de roupas quentes e lençóis. Quem não obedecesse seria encontrado e fuzilado. O comando nazista que ocupara a cidade uma semana antes esperava atrair não mais de 5 mil vítimas, uma vez que 70% dos 225 mil judeus da cidade já haviam fugido. Restavam, portanto, entre 60 mil e 70 mil, e boa parte deles compareceu ao local.

A logística montada para ludibriá-los foi eficiente, tipo linha de montagem. Mal chegavam, entregavam primeiro os pertences, depois capotes e sapatos, em seguida as roupas do corpo. Até ficarem nus. Tudo muito rápido e atordoante. Quando, finalmente, se aproximavam do ponto em que se ouviam disparos de metralhadora, já era tarde para recuar. Um barranco de 150 metros de comprimento, 30 metros de largura e 15 de profundidade os aguardava. Obrigados a deitar em fila sobre os já executados, cada nova fileira recebia uma rajada de tiros no pescoço. Não é fácil fuzilar individualmente 33.771 mulheres, crianças e homens. Os SS de Hitler e seus colaboradores locais precisaram de 46 horas para completar o massacre de Babi Yar.

Babi Yar, Amy Shapiro

Enquanto a Ucrânia esteve sob domínio soviético, e mesmo após a independência, em 1991, inúmeras foram as tentativas de erguer um monumento oficial aos fuzilados. Mas só em outubro do ano passado o imponente memorial que faz jus à História foi inaugurado em Babi Yar. Na presença de três presidentes: da Alemanha, de Israel e o ucraniano Volodymyr Zelensky —o mesmo que o líder russo Vladimir Putin pretendeu esmagar feito pulga com a invasão desencadeada em 24 de fevereiro.

Nesta segunda semana de guerra, o memorial aos fuzilados em 1941 permanece milagrosamente de pé, apesar de o país estar em via de esmagamento físico pela Rússia. Também Zelensky continuava vivo à frente de sua já histórica resistência cívica. Onipresente, ora em bunkers, ora entre escombros da capital, ele angariou respeito mundial na marra e no improviso da necessidade. Calouro imprensado entre os interesses da Otan e do poderio militar da Rússia, optou pelo risco de resistir com seu povo. Em apenas uma semana de guerra, tornou-se estadista de uma terra arrasada, órfã de mães, avós e crianças em fugas dilacerantes, que deixam nas trincheiras da pátria seus maridos, pais e filhos entre 18 e 60 anos.

Tudo indica que “o pior ainda está por vir”, como disse o presidente da França, Emmanuel Macron, após seu enésimo telefonema com o homem entrincheirado no Kremlin. Das 15 usinas nucleares operacionais distribuídas em quatro regiões do país, a maior delas, Zaporijia, espalhou calafrios mundo afora ao sofrer um ataque e ocupação russos que resultaram num incêndio. Espera-se que pelo menos o medo do imaginado “inverno nuclear” resista como linha vermelha a não ser atravessada pelos dois principais atores por trás dessa guerra: os países da Otan e a Rússia de Putin. Seria este o “iremos até o fim”, anunciado pelo chanceler Sergey Lavrov? Com cinzas a preencher a atmosfera, o bloqueio do nosso sol e o consequente colapso de nossos ecossistemas e da produção alimentar? Nunca é bom sinal quando o chefe da diplomacia de uma superpotência fala em “terceira guerra mundial nuclear e devastadora”.

Mesmo o uso de bombas de fragmentação, não nucleares porém estraçalhantes, além de proibidas por uma convenção da ONU de 2008, é capaz de transformar as cidades ucranianas em cemitérios físicos e humanos. Apesar de a convenção ter sido assinada por mais de 111 países, foi solenemente desprezada por Estados Unidos, Rússia, Brasil e Arábia Saudita, entre outros, e faz parte do arsenal destinado a dobrar a resistência ucraniana. Um segundo tipo de bomba proibida, a de vácuo, capaz de sugar o ar e sufocar suas vítimas, também está a bordo do comboio bélico adentrando a Ucrânia pela fronteira norte. Ao longo de toda a primeira semana da guerra, o veterano Fred Pleitgen, um dos 75 profissionais da rede CNN americana (entre jornalistas, motoristas e intérpretes) atuando no front, conseguiu filmar a entrada desse material a partir do território russo.

Cabe aqui abrir um meritoso parágrafo para o peso duplo de uma cobertura jornalística de guerra em país sem censura. Para a Ucrânia, o influxo de repórteres e cinegrafistas sustentados por sólidas estruturas planetárias foi uma dádiva. Enquanto a população russa vem sendo servida com açucaradas cenas da “operação militar especial” (o termo “guerra” continua proibido), intercaladas por coreografadas reuniões de Putin com assessores, os combatentes ucranianos extraem coragem da ininterrupta cobertura do que estão vivenciando. Graças à imprensa, sabe-se hoje que crematórios móveis fazem parte do arsenal russo enviado à Ucrânia para que seus mortos não sejam fotografados no abandono, nem sejam devolvidos às famílias quando a verdade se impuser.

Mesmo que Putin consiga domínio sobre o território ucraniano, os russos pouco a pouco começarão a conhecer o tamanho do estrago. Virão à tona a extensão do despreparo de suas tropas e as humilhantes falhas iniciais da estratégia de ocupação. Será sentido com impacto pleno o encolhimento drástico da décima potência econômica mundial. Isso sem sequer ainda levar em conta um eventual confronto direto com o poderio assanhado da Otan.

Putin prometeu a seu povo reconquistar a Ucrânia que lhe seria devida e convocou a alta cúpula do país invadido a decapitar o governo “neonazista” do judeu Zelensky e a implantar um novo, livre de “marginais drogados”. Contudo, caso o mundo continue de pé, é Putin que corre o risco não impensável, embora longínquo, de vir a ser ele o destronado pelos seus. O fim deste desmundo não está à vista.