As crianças não a entendem. Apenas descobrem o medo. Um medo sufocante que não acaba. Um medo que nasce e vem de dentro . Um medo que nem os gritos ou o choro são capazes de estancar. Dilacera e esmurra o coração.
E a história repete-se . A sede de totalitarismo de que fala Arendt é inesgotável. Há sempre um déspota sequioso.
Pude constatar esta verdade. O sofrimento que estes actos abomináveis da guerra causam nas crianças.
Na década de cinquenta, quando os tanques e a força aérea militar russa metralharam a Hungria , muitas crianças húngaras foram evacuadas e acolhidas em alguns países . Famílias portuguesas também as receberam. Essas crianças traziam consigo a memória terrível da guerra. Guerra que se repete agora e é, de novo, o terror de outras crianças. Nas minhas memórias de infância , tenho , nitidamente presente, uma criança húngara que conheci na praia , onde a minha família , pais e cinco irmãos , passava as férias de Verão.
Eis um excerto de um apontamento que fiz, há alguns anos, num irrelevante registo memorialístico.
A parceira que mais nos impressionou foi uma refugiada húngara. Teria uns seis ou sete anos. Tinha sido acolhida por uma família amiga dos meus pais. Nos primeiros anos , falava mal o nosso idioma, passando com o decorrer do tempo a dominá-lo com brilhante segurança e correcta articulação.
Não recordo, com total certeza , o seu nome, mas creio ser Judit. Pois a Judit tinha uma estatura muito mais volumosa que a nossa. Quase nos dominava em tamanho e peso. Era , porém, uma menina doce e afável que participava em todas as brincadeiras que eram muitas. (...)
A Judit entrava em tudo, com elegância e gentileza. O que mais me confundia nesta menina era o pavor que a acometia, quando, muito raramente, nos sobrevoava um avião e se ouvia o ruído do motor. Atirava-se para o chão , tapava os ouvidos, gemia e agitava-se como estivesse a ser vítima de uma convulsão.
Atentos, os familiares adoptivos vinham , de imediato, com uma manta em que a enrolavam e levavam-na para o interior da barraca. À medida que fui crescendo, fui entendendo que tinha havido uma nefasta guerra que marcara profundamente aquela menina. Os aviões, que despejaram bombas sobre o seu país, vinham em som e ruído até ali, sempre que passava qualquer um.
Naquele tempo, não havia psicólogos e , por tal, não se atribuía apoio psicológico como hoje tão apraz fazer. As sequelas eram tratadas dentro de casa. Com carinho e muito afecto familiar. Creio que muitas delas ficaram para sempre e que a Judit, esteja onde estiver, ainda convive com elas.Que Deus não salve Putin.
Maria José Vieira de Sousa
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