quarta-feira, 7 de abril de 2021

Pensamento do Dia

 


Da farda ao distintivo

Nem bem deu com a cara na porta dos quartéis ao tentar bagunçar o coreto por lá com sua forma deliberada e sistemática de minar as instituições, comprometendo sua tonicidade, Jair Bolsonaro voltou-se para outra delas que muito interessa a seu projeto de aparelhamento do Estado, a Polícia Federal.

Não que o ex-ministro da Justiça, atual advogado-geral de Bolsonaro e candidato a ministro do Supremo, André Mendonça, tenha oferecido qualquer resistência a esse projeto, muito pelo contrário.

Mas o novo ocupante da pasta, o delegado da PF Anderson Torres, que chegou ao posto demonstrando grande apetite por poder e por aparecer nas redes sociais, quer colocar sua própria turma por lá.

E sendo, ele próprio, da patota de Bolsonaro e dos filhos, a troca fica em casa e serve ao propósito do chefe.

Desde que venceu as eleições, o capitão não esconde sua compreensão absolutamente peculiar do que seja o exercício da Presidência da República: o uso ilimitado da caneta Bic para nomear e destituir pessoas não pelo currículo, algo de que ele aliás desdenhou nesta terça-feira, mas de acordo com seu também muito próprio código de lealdades.

O presidente não se furta a se referir ao Exército, à Polícia Federal ou ao Ministério como “meu” isso, “meu” aquilo, deixando explícita a maneira nada republicana com que enxerga as atribuições de cada uma dessas estruturas que são de Estado, e não puxadinhos do condomínio Vivendas da Barra ou mesmo do Palácio da Alvorada.

A primeira troca feita na PF, no ano passado, teve o objetivo declarado aos quatro ventos de blindar o filho Flávio de dissabores, em razão do cerco de investigações que se fechava contra ele no Rio de Janeiro. Tanto que a exigência de aparelhamento era dupla: a direção-geral e a superintendência do Rio.

Como o STF não deixou que o preferido do pai e dos filhos, Alexandre Ramagem, assumisse, outro Alexandre, de prenome significativo, Rolando, ficou no seu lugar e, agora, sai para dar espaço ao indicado por Torres.

O mexe-mexe numa instituição como a PF vai minando sua independência aos poucos. Um período de semelhante volatilidade se deu no governo FHC 2, quando nenhum diretor-geral se fixou no cargo depois da queda do todo-poderoso Vicente Chelotti, que comandou o órgão no primeiro quadriênio.

O período de maior estabilidade recente na PF se deu nos mandatos de Dilma Rousseff: mesmo no apogeu da Lava-Jato, com o órgão integrando a força-tarefa que atingiu em cheio cabeças coroadas do PT, a então presidente não teve coragem de demitir Leandro Daiello, que ficou no posto de 2011 a 2017 (permaneceu mesmo com Temer, que depois também tratou de tentar aparelhar a polícia quando sua vez na fila da Lava-Jato chegou).

Sob Bolsonaro, essa sem-cerimônia com que ocupantes de cargos-chave em corporações igualmente essenciais vão caindo ao bel-prazer dos interesses do presidente e de sua família é parte fundamental do esfacelamento da capacidade de resposta a abusos retóricos e administrativos.

As Forças Armadas ainda tentam curar a ferida deixada pelo escancaramento dessa forma insidiosa com que o presidente e seus ideólogos investem sobre as estruturas que integram o Estado. O artigo de ontem do vice Hamilton Mourão no jornal “O Estado de S.Paulo” tenta colocar um band-aid nessa chaga, mas ela segue purgando.

A PF também já está corroída por essa praga, bem como as bases das polícias militares, a respeito das quais já escrevi aqui.

Episódios como aquele em que André Mendonça, ainda em sua encarnação de ministro da Justiça, mandou reabrir um inquérito arquivado contra alguém que escreveu num outdoor que Bolsonaro vale menos que um caroço de pequi roído são o símbolo dessa hipotonia, que a dança das cadeiras apenas trata de agravar.

Em forma!


Parabéns aos que mantêm Bolsonaro conduzindo o país no momento mais dramático da pandemia
O Antagonista

Uma festa séria para 2022

Tomando notas para sua obra “Efemérides brasileiras”, o Barão do Rio Branco registrou que amanhã, há 200 anos, realizou-se a “eleição primária de eleitores de paróquia no Rio de Janeiro. Foram as primeiras eleições desse gênero a que se procedeu no Brasil”.

O barão foi um obsessivo pesquisador da linda História do Brasil, e a Fundação Alexandre de Gusmão botou na rede as suas “Efemérides”, tornando-as acessíveis para pesquisadores.

Essa migalha aponta para a importância de outra data: no dia 7 de setembro de 2022, comemoram-se os 200 anos da Independência do Brasil. Afora a provável reinauguração do Museu do Ipiranga, não se tem notícia de iniciativa séria para que ela seja lembrada. Nem há muito que se possa esperar.


Em 1922, quando o Brasil fez 100 anos, viveu-se um ano de festas. O país tinha um pé no atraso, mas encantava-se com o progresso. O Rio mudou de cara, realizou-se uma exposição internacional, e várias nações ergueram pavilhões para mostrar seus produtos. O da França hospeda hoje a Academia Brasileira de Letras.

Cinquenta anos depois, no governo do general Emílio Médici, produziu-se uma patriotada circulando pelo país os ossos de D. Pedro I, até que os puseram numa cripta no Museu do Ipiranga. (Anos depois, descuidada, virou mictório.) Enquanto o mito banal ia de um lugar para outro, a verdadeira figura do primeiro imperador era escondida. Foi proibida a transcrição do decreto pelo qual aboliu a censura à imprensa. Com a economia crescendo a taxas de milagre, a ditadura podia dizer que, com censura, o Brasil era um país que ia “pra frente”.

Até 2022, o Estado continuará empurrando o Brasil para trás. Como diria Lula, “nunca na história deste país” foi tão forte o culto ao atraso, um atraso sinistro. Em 1922, já havia sido instituída a vacina obrigatória contra a varíola. Anos antes, quando a epidemia da Gripe Espanhola bateu em Pindorama, a taxa de estupidez que a acompanhou foi desprezível numa comparação com o espetáculo da pandemia de hoje. O Brasil era atrasado, mas não se orgulhava disso. Pelo contrário, encantava-se com os bondes, o rádio e os aviões.

O bicentenário cairá no meio da campanha eleitoral, e a capacidade do governo para produzir novas patriotadas será infinita. Daqui até lá, de algum lugar poderá sair uma discussão para entender que Brasil é este. A geração que fez a Independência tinha nível, e D. Pedro I foi um grande personagem. Deu-se atenção demais ao que fazia deitado quando, além de ter proclamado a Independência do Brasil, liderou uma revolta liberal em Portugal para colocar sua filha no trono.

Nos anos 1970, o criminoso Lúcio Flávio Vilar Lírio celebrizou-se com a frase “bandido é bandido e polícia é polícia”.

Lúcio Flávio queria apenas que cada um ficasse no seu quadrado. As coisas pioraram.

O delegado Alexandre Saraiva, superintendente da Polícia Federal no estado do Amazonas desde 2017, foi criticado pelo ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, depois de ter realizado a maior apreensão de madeira de todos os tempos. Ele disse à repórter Camila Mattoso:

— Ou a gente faz um país baseado na lei ou faz baseado no crime.

Brasil pede socorro contra o vírus, a fome e Bolsonaro

E aí? Engane-se quem acredita que o governo do presidente Jair Bolsonaro mudou de posição quanto ao enfrentamento da pandemia. Só por que Marcelo Queiroga, médico, sucedeu ao desastrado general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde e recomenda que as pessoas usem máscara, lavem as mãos com álcool gel e se mantenham distantes umas das outras?

É o mesmo Queiroga que se recusa a admitir o lockdown porque Bolsonaro é contra. É o mesmo que evita condenar o tratamento precoce que Bolsonaro continua recomendando, um logro que já custou muitas vidas. É o mesmo que prometeu em breve vacinar um milhão de brasileiros por dia, meta distante de ser alcançada porque a demanda é maior do que a oferta.

Mudança de posição só por que o embaixador que sucedeu o inepto Ernesto Araújo no Itamaraty revelou que seus compromissos são com a vacina, a economia e o meio ambiente? Moleza suceder Araújo e parecer sensato. É como substituir Felipão no comando da Seleção Brasileira depois dos 7 x 1. Se ganhar o jogo seguinte com gol de mão será exaltado como herói.


Em um mês, o Brasil dobrou o número de mortes pela Covid em um único dia. No dia 6 de março, 1.840 vidas foram perdidas em 24 horas. Quatro dias depois, 2.000. Após duas semanas, 3.000. Ontem, quase 4.200. O total de mortes até agora é de 337.364. No melhor dos cenários, até julho o Brasil pode atingir meio milhão de óbitos, segundo o neurocientista Miguel Nicolelis.

Enquanto isso, o presidente da República espalha notícias falsas, faz comparações incabíveis e idiotas e destila ódio contra seus críticos. Em frente ao Palácio da Alvorada, em conversa com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: "Tem uma pesquisa aí que diz que quem tem uma vida saudável é oito vezes menos propenso a ter problemas com a Covid”. Que pesquisa? Não disse.

E prosseguiu: “Mas quando você prende o cara em casa, o que ele faz em casa? Duvido que ele não tenha aumentado um pouquinho de peso. Até eu cresci um pouquinho a barriga". Posou de vítima: “Me chamavam de torturador, racista, homofóbico. Agora é o quê? Aquele que mata muita gente? Genocida! Imagina se o Haddad estivesse no meu lugar?!” Os devotos concordaram.

Bolsonaro afirmou que tem como resolver o problema do vírus em poucos minutos: "É só pagar o que os governos pagavam para Globo, Folha, Estado de S.Paulo. Esse dinheiro não é para imprensa, é para outras coisas”. E repetiu: “Cancelei todas as assinaturas de revistas e jornais. Já entramos no segundo ano sem nada. A gente não pode começar o dia envenenado”.

Metade dos brasileiros começa o dia sem saber se haverá comida suficiente em sua mesa. É a primeira vez que isso acontece desde 2004. São 116,8 milhões de pessoas nessa situação, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. No ano passado, a pandemia deixou 19 milhões com fome, quase o dobro do que havia em 2018.

Na cidade do Rio, a ONG Ação da Cidadania distribuiu 80 mil cestas básicas por dia em 2020. Este ano, apenas 8 mil. Secaram as fontes de doação de alimentos. Na cidade de São Paulo, a G10 Favelas distribuía 10 mil marmitas por dia. O número caiu para 700. A decantada generosidade dos brasileiros que podem muito com os brasileiros que nada podem era pouca e acabou.

Imagem do Brasil

 


Matem-se por mim, diz Bolsonaro

Numa coluna há meses ("Saída para Trump: matar-se", 10/1), sugeri a Donald Trump, ainda presidente dos EUA, que, diante de sua derrota para Joe Biden e pelo fracasso em tornar-se o novo Hitler, desse um tiro no peito e se convertesse em mártir. E a Jair Bolsonaro, seu obsceno papagaio, que o imitasse no tresloucado gesto. Bastou para que um advogado particular de Bolsonaro, então dando expediente como ministro da Justiça, anunciasse a abertura de inquérito pela PF para apurar por que eu escrevera aquilo.

Há uma lei, com que concordo, segundo a qual induzir alguém ao suicídio é crime. Mas duvido que se aplique a um colunista de província que recomenda isso ao homem mais poderoso do mundo e a um sujeito eleito com 57 milhões de votos. Imagine Trump e Bolsonaro, mesmo por um segundo, avaliando minha sugestão! A ideia era deliciosa, mas nunca esperei que a seguissem. A Casa Branca, claro, me ignorou, mas o dito ministro, atracado aos baixos meridianos do chefe, ameaçou uma investigação. Os anais da lei ainda tentam descobrir como se investiga uma opinião.


Se induzir uma pessoa ao suicídio é crime, eu me pergunto como Jair Bolsonaro responderá um dia à acusação de induzir o povo brasileiro ao suicídio em massa, estimulando-o a aglomerar-se em multidões, sem máscara, desprezar a vacina e, depois de contraída a Covid, tratar-se com xaropes e cloroquinas, sabe-se agora, letais.

E não responderá sozinho. Para implantar tal política suicida, Bolsonaro escora-se em médicos que põem a ideologia acima da ciência, no "seu" Exército e, hoje, num juiz do STF. Como explicar que as maiores taxas de contágio do vírus no país estejam justamente nos municípios e regiões que mais votaram em Bolsonaro?

Ao fazer com que seus seguidores se exponham a tal risco, é como se Bolsonaro lhes dissesse: "Todos vamos morrer. Aproveitem e matem-se por mim".

Bolsonaro e a lógica miliciana

Dentre os principais grupos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro destacam-se os militares das Forças Armadas e os policiais civis e militares. Durante seu mandato, Bolsonaro tem buscado transformar esse apoio em instrumento político. Mas, ao contrário do que muitos pensam, a lógica bolsonarista de instrumentalização é diferente para cada uma das corporações. Dois episódios recentes marcam bem essas diferenças.

No domingo, 28, o soldado Wesley Góes, da Polícia Militar da Bahia, foi morto após efetuar disparos contra guarnições da PM durante um surto psicótico. Assim que as imagens da ocorrência viralizaram nas redes sociais, bolsonaristas tentaram promover um motim, numa tentativa de politizar o trágico incidente. A ideia era vincular a morte do policial com as medidas de lockdown impostas pelo governador Rui Costa (PT). Dentre aqueles que insuflaram os policiais estavam os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF). O movimento grevista não prosperou.

Na segunda-feira (29/3), Bolsonaro exonerou o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. A exoneração do ministro foi acompanhada pelo pedido de demissão dos comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica. O episódio causou enorme mal-estar dentro das Forças Armadas. O gesto do presidente, embora legítimo, foi visto pelos comandantes militares como um grande desrespeito às instituições. Por trás das exonerações está uma queda de braço entre o presidente e os comandantes militares. Enquanto Bolsonaro esperava mais demonstrações de apoio, os generais permaneciam em silêncio. Como escreveu Azevedo e Silva, “preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.

Para manter e ampliar seu apoio entre militares e policiais, o presidente se vale do seu poder simbólico e econômico. Dados do boletim Fonte Segura com base na agenda presidencial mostram que, até o início da pandemia, Bolsonaro comparecia em média, por semana, a duas ou três formaturas, eventos, palestras, cerimônias militares ou policiais – incluindo churrascos. As imagens dele confraternizando com militares e policiais são imediatamente postadas nas redes sociais. Bolsonaro também usou a caneta presidencial para distribuir benesses. Mas diferente da presença simbólica do presidente, os ganhos econômicos se concentram principalmente nas Forças Armadas (FFAA). Além de terem sido beneficiados na reforma da Previdência, eles também tiveram o orçamento da área de defesa aumentado.


Os policiais querem muito mais do que selfies com o presidente. Entretanto, eles não tiveram tanta sorte com a caneta presidencial. Recentemente, as lideranças policiais manifestaram-se contra a proposta de reforma administrativa. Acusaram o governo de privilegiar apenas o segmento militar da segurança pública, dando as costas para as outras instituições.

Até agora o presidente não foi capaz de valorizar de fato a profissão policial. Com exceção dos policiais do Distrito Federal, cujo orçamento é responsabilidade da União, os demais policiais brasileiros receberam do governo federal muito menos do que esperavam. Na prática, para esse grupo, o apoio de Bolsonaro tem se resumido aos gestos simbólicos de participação em formaturas.

Bolsonaro não quer apenas os votos dessas corporações. Mesmo porque o tamanho delas é relativamente pequeno se comparado ao eleitorado nacional. Hoje existem cerca de 380 mil militares das FFAA e, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 700 mil policiais na ativa. O mais importante não são seus votos, mas o poder que essa identificação confere a Bolsonaro. Ele usa seu prestígio junto aos militares e policiais para ameaçar o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e os governadores.

A forte identificação com os policiais tem gerado enorme apoio ao bolsonarismo, especialmente em relação à baixa hierarquia das polícias militares estaduais. Sua atuação como membro da bancada da bala do Congresso Nacional permitiu que Bolsonaro se aproximasse das principais lideranças sindicais das polícias. Era através dessas lideranças, capazes de fomentar greves de policiais, que Bolsonaro pretendia ameaçar os governadores.

Entre 1997 a 2017, ocorreram 52 greves de policiais militares, segundo estudo do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos, com base em dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Como os policiais militares não têm direito à greve, os movimentos paradistas não são regulados pela Justiça do Trabalho, que não pode estabelecer percentuais mínimos de atividades e mediar as negociações. Essas situações, de acordo com a legislação, estão no âmbito de competência da Justiça militar, que geralmente se mostra bastante relutante em enquadrar essas paralisações como motins. Por não ter regulação nem enquadramento jurídico, essas greves tornam-se extremamente radicais.

Frequentemente essas paralisações trazem pânico à população e resultam em crise de governo. Ao final das greves, tudo parece voltar ao normal. O pânico se dissipa e as negociações chegam a um bom termo. Normalmente os policiais punidos são anistiados, sendo que geralmente alguns deles concorrerão nas futuras eleições. Mas também ficam algumas sequelas. Os governos ficam cada vez mais reféns dos movimentos paradistas. O medo de uma nova greve contamina todas as decisões políticas na área de segurança pública. Não raro, o medo de greve vira moeda de chantagem política.

Foi o que aconteceu em fevereiro de 2020. Insatisfeito com os salários defasados, um grupo de policiais militares do Ceará iniciou uma greve que durou treze dias. Nesse período, a média de homicídios disparou, e aconteceram saques, deixando a população em pânico. O movimento contou com apoio de sites e blogs bolsonaristas. Parlamentares influentes da base do governo, como Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e Bia Kicis, apoiaram os grevistas. Foi a primeira vez que uma greve de policiais estaduais contou com apoio de parlamentares da base do governo federal.

O governador Camilo Santana (PT) abriu negociações com os grevistas e solicitou apoio de tropas federais. Bolsonaro relutou em autorizar o emprego das Forças Armadas. Ante a relutância do governo federal, governadores se articularam para enviar reforços policiais. E dezesseis governadores assinaram uma carta denunciando a interferência política nas PMs. As medidas levaram ao fim da paralisação. Foi uma vitória dos governadores contra as ameaças do governo federal.

O uso que Bolsonaro faz das Forças Armadas como instrumento político é bastante diferente do que faz de policiais militares. Nesses últimos, Bolsonaro se apoia nos gritos e palavras de ordem das bases. Nas FFAA, Bolsonaro depende do silêncio dos comandantes.

Em 19 de abril de 2020, Bolsonaro juntou-se aos manifestantes que foram para a frente do quartel-general do Exército para exigir intervenção militar no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional. Poucas semanas depois, o presidente se reuniu novamente com manifestantes, que dessa vez protestavam na Praça dos Três Poderes. Bolsonaro reiterou que tinha o apoio do povo e das Forças Armadas e disse que estava chegando ao limite da paciência com o STF.

Bolsonaro sabia que as chances de uma intervenção militar eram remotas. Seu interesse com as Forças Armadas era outro. A ideia era fortalecer sua identificação com os militares e ameaçar os outros poderes. Para que essa estratégia desse certo, era necessário que as autoridades civis acreditassem na possibilidade de intervenção. Nesse sentido, o tuíte ameaçador que o general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, postou em 2018 serviu para disseminar dúvidas. Além disso, Bolsonaro precisava que os comandantes militares ficassem em silêncio, como se concordassem ou consentissem com suas declarações.

Diferente do que ocorre com as polícias, dentro dos quartéis é improvável uma quebra da hierarquia. Na prática, o enorme apoio que Bolsonaro recebe entre os militares de baixa hierarquia não serve para muita coisa. No Exército, por exemplo, o processo decisório é altamente concentrado no Alto Comando. É o comandante, assessorado pelos quinze generais de quatro estrelas e alguns poucos generais de três e duas estrelas, que decide silenciar ou não ante as declarações do presidente.

O general Leal Pujol se manteve em silêncio até novembro de 2020. Numa das suas raras manifestações públicas, Pujol fez questão de dizer que os militares não querem fazer parte da política e nem querem que a política entre nos quartéis. Agora, a saída em conjunto dos comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica foi um aviso em alto e bom som de que não adianta usar as FFAA para ameaçar os outros poderes, pois elas não estão dispostas a novas aventuras autoritárias.

Os dois episódios da semana passada – a frustrada tentativa de motim de policiais baianos e a exoneração dos comandantes militares – marcam o esgotamento da estratégia de utilizar as FFAA e as Polícias Militares como instrumentos de ameaça e chantagem política. Há uma grande expectativa de que Bolsonaro mude sua lógica de governar e passe a negociar sua pauta de reformas com o Congresso Nacional.

Mas esperar que o presidente faça política e comece a negociar com os partidos é pretender que Bolsonaro deixe de ser Bolsonaro. Sua lógica não é fazer política ou negociar. Ao contrário, Bolsonaro segue a lógica das milícias de ameaçar e chantagear sempre.

Para isso, Bolsonaro ainda conta com as milícias digitais. O perigo é que essas milícias saiam do mundo virtual e ingressem no mundo real onde Bolsonaro tem liberado indiscriminadamente armas e munições. Por todo país proliferam clubes de tiros, cujos membros são fervorosos bolsonaristas armados.

Enquanto assistimos atônitos às ameaças e bravatas de Bolsonaro, nossos familiares, amigos e colegas estão morrendo de Covid-19. Se o governo não fosse tão omisso e negacionista, não teríamos chegado a mais de 300 mil mortes. Bolsonaro é um risco atual por causa da pandemia e um risco futuro devido à sua lógica miliciana.

Carta aberta pelo controle de armas. E pela democracia

Há pouco menos de dois anos, manifestamos nossa profunda preocupação com os retrocessos no controle de armas e munições inaugurados pelo governo federal pouco tempo depois de sua posse.

Desde a publicação de nossa carta aberta, em 4 de junho de 2019, foram mais 9 decretos e 15 portarias do Exército Brasileiro ou de ministérios, em um conjunto normativo de 31 atos unilaterais do Poder Executivo que ferem de morte qualquer vislumbre de uma política de controle de armas e munições moderna e responsável, inclusive contradizendo acordos internacionais ratificados pelo Congresso e interiorizados no ordenamento jurídico nacional.


Nesse período, discursos que elevam o armamento da população como instrumento de ação política, orientada contra adversários e contra políticas das quais se discorde, foram irresponsavelmente apontados como caminho para o fortalecimento da democracia brasileira. Além de irem na contramão das prioridades de um país assolado por uma das maiores crises sanitárias de sua história, as medidas adotadas pelo governo federal ignoram todas as evidências científicas sobre o impacto negativo do aumento do acesso e circulação desses arsenais num país já gravemente afetado pela violência armada: cerca de 70% dos homicídios que acontecem no Brasil são cometidos com armas de fogo.

De acordo com dados da Polícia Federal e do Exército, houve um aumento de 65% no acervo de armas registradas nas mãos de civis no Brasil entre 2018 e 2020. Depois de adotar uma série de medidas que aumentaram o acesso a grandes quantidades de armas e munições pela população, o governo publicou quatro decretos que reduziam o controle estatal sobre esses arsenais.

Como reforçamos em nosso último posicionamento, a consolidação da regulação responsável de armas e munições de um país é uma ação de longo prazo, e precisamos orientar nossas políticas públicas para superar os desafios ainda presentes, em estreita colaboração com governadores e com quadros técnicos que se dedicam ao enfrentamento do tráfico ilegal de armas e munições e à redução da violência armada no país. Não há espaço para retrocessos.

Diante do luto das mais de 330 mil mortes em razão da pandemia, é preciso que a garantia ao direito à vida e à segurança da população seja a prioridade máxima da ação dos Poderes da República.

É nesse contexto que, novamente, alertamos para os riscos do conjunto normativo apresentado pelo presidente da República para flexibilizar o acesso a armas e munições e reduzir o controle estatal sobre esses arsenais, ao contrário do que prevê a legislação em vigor. O Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional precisam agir, com urgência, para barrar as medidas do descontrole armado adotadas ao longo dos últimos dois anos e para impedir que os decretos publicados em fevereiro entrem em vigor no próximo dia 12. Armar a população não é o caminho para um país mais seguro e menos desigual, tampouco para o fortalecimento de nossa democracia. Que se determine a ilegalidade desses decretos e que sejam revogados.
Aloysio Nunes Ferreira, Eugênio Aragão, José Carlos Dias, José Eduardo Cardozo, José Gregori, Miguel Reale Jr., Milton Seligman, Raul Jungmann, Tarso Genro e Torquato Jardim, ex-ministros da Justiça

Ainda pode ser pior

É a palavra da Ciência. O neurocientista Miguel Nicolelis assim definiu a responsabilidade pela situação atual da pandemia no Brasil: “Se o país fosse uma empresa, os executivos seriam demitidos”. Ou até presos, pode-se acrescentar. A pneumologista Margareth Dalcolmo, que previu “o março mais triste de nossas vidas”, volta a dizer o mesmo em relação a abril. Também o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, da Universidade de Washington, registrou entre nós 66 mil óbitos ligados à Covid-19 em março e, em abril, calcula que serão 100 mil.

Nicolelis demonstra preocupação com o agravamento do colapso funerário, se não forem estabelecidas restrições de trânsito não essencial em aeroportos e estradas, o que poderia fazer parte de um lockdown nacional. “Diante desse cenário, o futuro que nos espera pode ser ainda mais dantesco, uma vez que não existe, por parte do governo federal, nenhuma iniciativa crível de combate real à pandemia.” Ele acredita que o Brasil está se aproximando rapidamente de um “ponto de não retorno”.


Ao mesmo tempo que Nicolelis fazia essas advertências, o ministro da Saúde dizia que “a ordem é evitar lockdown”. No pior momento da epidemia, Queiroga afirma que o país precisa fazer seu “dever de casa” e seguir recomendações de prevenção à Covid-19, como uso de máscaras e distanciamento, contanto que “deixe as medidas extremas para outro caso”. No domingo, a repórter Aline Ribeiro revelou no GLOBO que a situação precária dos hospitais está levando os profissionais de saúde, sem poder parar, ao limite da exaustão. Antes da pandemia, cada médico intensivista era responsável por dez pacientes em média. Agora, cada profissional cuida de 25 doentes.

São histórias de cortar o coração, como a do médico que dispõe de uma vaga para 200 candidatos e vai ficar o resto da vida com o sentimento de culpa de ter, para salvar uma vida, destinado 199 à morte. É irracional, evidentemente, mas que sentimento é racional?

O novo ministro da Saúde tem um discurso mais sofisticado, jamais revelaria publicamente, como o antecessor, que naquela pasta “um manda, e outro obedece”. Não precisa cometer essa indiscrição, está implícito quem determina se e quando serão adotadas as “medidas extremas”. Queiroga sabe do que o capitão gosta e do que não gosta — e ai de quem, no governo, ousa contrariá-lo. Pode preparar a frigideira.

Uma ironia do acaso simboliza a disposição da pandemia de avançar indiscriminadamente, sem encontrar resistência. Apenas um exemplo: ela invadiu até mesmo o palácio onde reina a negação à doença. O Planalto registrou 460 casos de coronavírus entre os servidores. A taxa de infecção em órgãos vinculados à Presidência é de 13%, mais que o dobro da média brasileira. Êta gripezinha danada, talquei?!