No domingo, 28, o soldado Wesley Góes, da Polícia Militar da Bahia, foi morto após efetuar disparos contra guarnições da PM durante um surto psicótico. Assim que as imagens da ocorrência viralizaram nas redes sociais, bolsonaristas tentaram promover um motim, numa tentativa de politizar o trágico incidente. A ideia era vincular a morte do policial com as medidas de lockdown impostas pelo governador Rui Costa (PT). Dentre aqueles que insuflaram os policiais estavam os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF). O movimento grevista não prosperou.
Na segunda-feira (29/3), Bolsonaro exonerou o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. A exoneração do ministro foi acompanhada pelo pedido de demissão dos comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica. O episódio causou enorme mal-estar dentro das Forças Armadas. O gesto do presidente, embora legítimo, foi visto pelos comandantes militares como um grande desrespeito às instituições. Por trás das exonerações está uma queda de braço entre o presidente e os comandantes militares. Enquanto Bolsonaro esperava mais demonstrações de apoio, os generais permaneciam em silêncio. Como escreveu Azevedo e Silva, “preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.
Para manter e ampliar seu apoio entre militares e policiais, o presidente se vale do seu poder simbólico e econômico. Dados do boletim Fonte Segura com base na agenda presidencial mostram que, até o início da pandemia, Bolsonaro comparecia em média, por semana, a duas ou três formaturas, eventos, palestras, cerimônias militares ou policiais – incluindo churrascos. As imagens dele confraternizando com militares e policiais são imediatamente postadas nas redes sociais. Bolsonaro também usou a caneta presidencial para distribuir benesses. Mas diferente da presença simbólica do presidente, os ganhos econômicos se concentram principalmente nas Forças Armadas (FFAA). Além de terem sido beneficiados na reforma da Previdência, eles também tiveram o orçamento da área de defesa aumentado.
Os policiais querem muito mais do que selfies com o presidente. Entretanto, eles não tiveram tanta sorte com a caneta presidencial. Recentemente, as lideranças policiais manifestaram-se contra a proposta de reforma administrativa. Acusaram o governo de privilegiar apenas o segmento militar da segurança pública, dando as costas para as outras instituições.
Até agora o presidente não foi capaz de valorizar de fato a profissão policial. Com exceção dos policiais do Distrito Federal, cujo orçamento é responsabilidade da União, os demais policiais brasileiros receberam do governo federal muito menos do que esperavam. Na prática, para esse grupo, o apoio de Bolsonaro tem se resumido aos gestos simbólicos de participação em formaturas.
Bolsonaro não quer apenas os votos dessas corporações. Mesmo porque o tamanho delas é relativamente pequeno se comparado ao eleitorado nacional. Hoje existem cerca de 380 mil militares das FFAA e, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 700 mil policiais na ativa. O mais importante não são seus votos, mas o poder que essa identificação confere a Bolsonaro. Ele usa seu prestígio junto aos militares e policiais para ameaçar o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e os governadores.
A forte identificação com os policiais tem gerado enorme apoio ao bolsonarismo, especialmente em relação à baixa hierarquia das polícias militares estaduais. Sua atuação como membro da bancada da bala do Congresso Nacional permitiu que Bolsonaro se aproximasse das principais lideranças sindicais das polícias. Era através dessas lideranças, capazes de fomentar greves de policiais, que Bolsonaro pretendia ameaçar os governadores.
Entre 1997 a 2017, ocorreram 52 greves de policiais militares, segundo estudo do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos, com base em dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Como os policiais militares não têm direito à greve, os movimentos paradistas não são regulados pela Justiça do Trabalho, que não pode estabelecer percentuais mínimos de atividades e mediar as negociações. Essas situações, de acordo com a legislação, estão no âmbito de competência da Justiça militar, que geralmente se mostra bastante relutante em enquadrar essas paralisações como motins. Por não ter regulação nem enquadramento jurídico, essas greves tornam-se extremamente radicais.
Frequentemente essas paralisações trazem pânico à população e resultam em crise de governo. Ao final das greves, tudo parece voltar ao normal. O pânico se dissipa e as negociações chegam a um bom termo. Normalmente os policiais punidos são anistiados, sendo que geralmente alguns deles concorrerão nas futuras eleições. Mas também ficam algumas sequelas. Os governos ficam cada vez mais reféns dos movimentos paradistas. O medo de uma nova greve contamina todas as decisões políticas na área de segurança pública. Não raro, o medo de greve vira moeda de chantagem política.
Foi o que aconteceu em fevereiro de 2020. Insatisfeito com os salários defasados, um grupo de policiais militares do Ceará iniciou uma greve que durou treze dias. Nesse período, a média de homicídios disparou, e aconteceram saques, deixando a população em pânico. O movimento contou com apoio de sites e blogs bolsonaristas. Parlamentares influentes da base do governo, como Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e Bia Kicis, apoiaram os grevistas. Foi a primeira vez que uma greve de policiais estaduais contou com apoio de parlamentares da base do governo federal.
O governador Camilo Santana (PT) abriu negociações com os grevistas e solicitou apoio de tropas federais. Bolsonaro relutou em autorizar o emprego das Forças Armadas. Ante a relutância do governo federal, governadores se articularam para enviar reforços policiais. E dezesseis governadores assinaram uma carta denunciando a interferência política nas PMs. As medidas levaram ao fim da paralisação. Foi uma vitória dos governadores contra as ameaças do governo federal.
O uso que Bolsonaro faz das Forças Armadas como instrumento político é bastante diferente do que faz de policiais militares. Nesses últimos, Bolsonaro se apoia nos gritos e palavras de ordem das bases. Nas FFAA, Bolsonaro depende do silêncio dos comandantes.
Em 19 de abril de 2020, Bolsonaro juntou-se aos manifestantes que foram para a frente do quartel-general do Exército para exigir intervenção militar no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional. Poucas semanas depois, o presidente se reuniu novamente com manifestantes, que dessa vez protestavam na Praça dos Três Poderes. Bolsonaro reiterou que tinha o apoio do povo e das Forças Armadas e disse que estava chegando ao limite da paciência com o STF.
Bolsonaro sabia que as chances de uma intervenção militar eram remotas. Seu interesse com as Forças Armadas era outro. A ideia era fortalecer sua identificação com os militares e ameaçar os outros poderes. Para que essa estratégia desse certo, era necessário que as autoridades civis acreditassem na possibilidade de intervenção. Nesse sentido, o tuíte ameaçador que o general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, postou em 2018 serviu para disseminar dúvidas. Além disso, Bolsonaro precisava que os comandantes militares ficassem em silêncio, como se concordassem ou consentissem com suas declarações.
Diferente do que ocorre com as polícias, dentro dos quartéis é improvável uma quebra da hierarquia. Na prática, o enorme apoio que Bolsonaro recebe entre os militares de baixa hierarquia não serve para muita coisa. No Exército, por exemplo, o processo decisório é altamente concentrado no Alto Comando. É o comandante, assessorado pelos quinze generais de quatro estrelas e alguns poucos generais de três e duas estrelas, que decide silenciar ou não ante as declarações do presidente.
O general Leal Pujol se manteve em silêncio até novembro de 2020. Numa das suas raras manifestações públicas, Pujol fez questão de dizer que os militares não querem fazer parte da política e nem querem que a política entre nos quartéis. Agora, a saída em conjunto dos comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica foi um aviso em alto e bom som de que não adianta usar as FFAA para ameaçar os outros poderes, pois elas não estão dispostas a novas aventuras autoritárias.
Os dois episódios da semana passada – a frustrada tentativa de motim de policiais baianos e a exoneração dos comandantes militares – marcam o esgotamento da estratégia de utilizar as FFAA e as Polícias Militares como instrumentos de ameaça e chantagem política. Há uma grande expectativa de que Bolsonaro mude sua lógica de governar e passe a negociar sua pauta de reformas com o Congresso Nacional.
Mas esperar que o presidente faça política e comece a negociar com os partidos é pretender que Bolsonaro deixe de ser Bolsonaro. Sua lógica não é fazer política ou negociar. Ao contrário, Bolsonaro segue a lógica das milícias de ameaçar e chantagear sempre.
Para isso, Bolsonaro ainda conta com as milícias digitais. O perigo é que essas milícias saiam do mundo virtual e ingressem no mundo real onde Bolsonaro tem liberado indiscriminadamente armas e munições. Por todo país proliferam clubes de tiros, cujos membros são fervorosos bolsonaristas armados.
Enquanto assistimos atônitos às ameaças e bravatas de Bolsonaro, nossos familiares, amigos e colegas estão morrendo de Covid-19. Se o governo não fosse tão omisso e negacionista, não teríamos chegado a mais de 300 mil mortes. Bolsonaro é um risco atual por causa da pandemia e um risco futuro devido à sua lógica miliciana.
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