quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

'Capitalismo social'

Passada a 'primeira fase' das reformas econômicas, governo Bolsonaro passa a mirar o social a partir deste ano; a intenção, como sempre, esbarra na realidade: dificilmente sobrará dinheiro para o 'capitalismo popular' sair do discurso

Paralelamente à fase dois das reformas econômicas, o governo Jair Bolsonaro começa a mirar o social a partir deste ano. A preocupação é da ala política, mas já chegou à equipe de Paulo Guedes, que passa a usar expressões como “capitalismo social” para designar um conjunto de propostas que começam a ser desenhadas para tirar da oposição o discurso de que Bolsonaro não combate a desigualdade.

O capitalismo “social” ou “popular”, como vem sendo chamado nos briefings do governo, significa “transferir riqueza para as pessoas, não só renda”. Vem aí, nesse espírito, o anúncio do remodelamento do Minha Casa Minha Vida, que já começou a ser debatido entre os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Economia e representantes das construtoras. O nome-fantasia que vem sendo usado nesses encontros é Casa Amada Brasil, que remete ao slogan de pegada “militar” do governo. Não é definitivo, me dizem os participantes das conversas.

Também ainda não há consenso sobre o modelo de financiamento das novas moradias: se mantendo o que vigorava no Minha Casa Minha Vida, ou adotando os vouchers, saída que é defendida pelo ministro Gustavo Canuto, mas tem resistências na equipe econômica e nas próprias empreiteiras.

A intenção, como sempre, esbarra na realidade: se nem as reformas que vão aprofundar o ajuste fiscal estão garantidas, e o teto de gastos é ainda mais restrito neste ano, dificilmente sobrará dinheiro para o capitalismo social sair do discurso.

Chuvas de verão

Desde menino vejo as chuvas de verão. Para dizer a verdade, nasci numa delas e, segundo meu pai, era preciso se deslocar de canoa nas ruas do bairro. Talvez seja por isso minha ligação com essas chuvas. Cobri inúmeras, algumas delas dolorosas, como a da Serra Fluminense, em janeiro de 2011. Até hoje as fotos me emocionam, algumas delas nem tive coragem de publicar.

Às vezes o acaso me aproxima das grandes tormentas. Estava em Florianópolis quando passou o furacão Catarina. Houve uma rápida discussão sobre o nome, ciclone ou furacão? A verdade é que a partir de certa velocidade dos ventos, o nome não importa; é preciso agir.

Ali aprendi que não estávamos assim tão indefesos diante do furacão. Bastava olhar para o Caribe, onde a experiência acumulada daria uma ajuda. Foi possível produzir uma cartilha baseada na experiência caribenha, orientar a população.


Esta semana vi uma cena fantástica filmada em Belo Horizonte. Pessoas jantando num restaurante e vendo carros arrastados pela correnteza.

Grandes chuvas e eventos extremos podem ter acontecido antes. O problema é que são mais frequentes.

Ao longo desse tempo, não posso dizer que o Brasil está totalmente desprevenido. Novos instrumentos como a internet aumentam nosso poder. Numa grande chuva em 2009, experimentei trabalhar toda a noite no Twitter tentando articular as informações. Dentro dos limites, deu certo, foi possível transmitir informação aos bombeiros sobre pedidos de ajuda, divulgar informações úteis.

Não podemos deter as grandes chuvas. Mas o preparo das comunidades é essencial. Há situações que precisam ser planejadas com antecedência.

Lembro-me de uma inundação em Santo Antônio de Pádua. O hospital ficou impraticável. Inclusive a máquina de hemodiálise. E agora? Quem precisa, quem não precisa de hemodiálise? Como tirá-los daqui? A retirada para o Espírito Santo foi por helicóptero.

Daí a necessidade nesses novos tempos das comunidades se conhecerem, terem lugar fixo para os barcos, a lista das pessoas com dificuldade de locomoção, os pontos de fuga e abrigo.

A preparação é apenas um dado. Você pode convencer mesmo a pessoa que não acredita no aquecimento global, numa terra redonda, em Darwin ou até na vacina. O mais difícil é a discussão sobre o tipo de desenvolvimento que pode atenuar mais ainda os efeitos das mudanças climáticas.

Belo Horizonte foi uma cidade planejada para domar a natureza, canalizando os rios e estendendo sobre eles seu tapete de asfalto.

As chuvas mostraram que esse não é o caminho. A ideia de domar a natureza, submetê-la aos nossos planos intelectuais, acaba nos levando a um destino trágico. Só agora grande parte das pessoas compreende que é preciso se adaptar à natureza, crescer sem violentá-la.

Mas agora o tempo é muito curto. A ideia de adaptação ganha contornos urgentes. É uma pena que essa preparação para os novos tempos não ocupe a agenda dos políticos.

Certamente falarão disso nas eleições, mas como explicar sua ausência junto às comunidades orientando para a autodefesa?

Não será certamente por eles. É a própria sociedade que aos poucos vai assumindo seu papel. Tenho modesta esperança também num jornalismo preventivo.

Estou esperando passar um pouco a emergência e visitar algumas cidades atingidas, como Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, com uma pergunta: qual o nível de preparação da cidade quando caíram as chuvas? Dessas respostas podem surgir algumas indicações válidas para um universo mais amplo.

Nasci e possivelmente morrerei em tempos de grandes chuvas. Gostaria muito de introduzir na agenda essa preparação do Brasil para os eventos extremos. É o modo de seguir a lição paterna na tempestade: usar a canoa para conviver com as inundações.

A relativa indiferença diante da chuva está no fato de que sempre cai, como as estações do ano se repetem. Mas as chuvas mudam não só de intensidade. Elas caem num mundo cada vez mais alterado pela ação humana, cheio de armadilhas como os rios canalizados em BH.

Imagem do dia


Sem luz no final do túnel

O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Educação deveriam concentrar energias para enfrentar o desafio da Quarta Revolução Industrial, onde o conhecimento é o grande divisor de águas na batalha tecnológica.

O governo perde tempo ao não articular o consenso em torno de um projeto educacional para o Brasil. A perda de dinamismo na educação impacta na competitividade e produtividade do país, dificultando nossa inserção na economia mundial.

E não será possível realizar o que o momento exige priorizando uma agenda ideológica, elegendo professores como inimigos da Educação, estigmatizando instituições de ensino.

É neste quadro que o ano letivo começa. Problemas não faltam: falta de foco na aprendizagem, evasão escolar, baixa qualidade do ensino. Quase 50% das escolas do país sequer tem esgotos e 29% não tem água, para não falar de outras carências, como biblioteca, sala de aula, internet, laboratórios, remuneração e formação continuada dos professores.


O mais urgente: não há garantia sobre como será feito o financiamento do ensino básico. Engenhosamente, em 1996 o então ministro Paulo Renato Souza criou um sistema compartilhado entre União, estados e municípios – o Fundef que assegurou recursos para os sistemas públicos de ensino, beneficiando professores e mirando a qualidade da educação. Crítico do Fundef quando era oposição, o PT se rendeu à sua concepção, ampliando-o ao ensino médio, com a criação do Fundeb no governo Lula.

Pois bem, a Educação está na iminência de cair num buraco negro tendo em vista que o Fundeb pode deixar de existir por responsabilidade única e exclusiva de quem deveria liderar o processo: o ministro da Educação.

A relatora do Fundeb na Câmara, deputada professora Dorinha (DEM/DF), parlamentares, educadores, gestores e a sociedade civil chegaram a um projeto de consenso, após três anos de debates. Com a concordância do atual ministério da Economia, o projeto amplia a responsabilidade da União de 10% para 15% e estava em condições de ser votado em tempo hábil.

De última hora, o ministro Abraham Weintraub, anunciou sua intenção de zerar o jogo sob o pretexto de que não gostou do projeto pactuado. Ele afirma que irá elaborar e enviar um outro projeto ao Congresso Nacional. Começar da estaca zero é a certeza de não aprovar o novo Fundeb em 2020.

Esse é o grande problema de Weintraub, para além de sua incompetência e de sua perda de tempo combatendo moinhos ideológicos, o ministro não tem a dimensão do que é estratégico, não é um construtor de consensos, não possui empatia com a área e muito menos capacidade de liderança.

Ao contrário, entra em conflito com todos – inclusive com o Congresso Nacional -, como se fosse possível aprovar algo no Parlamento que não seja pela via do entendimento. Deveria ter tomado aulas com seu colega Paulo Guedes, que acabou por entender como o jogo é jogado e se convenceu em ser parceiro do Congresso para a aprovação da Reforma da Previdência.

Weintraub já deu provas soberbas de que é o homem errado no Ministério e não haverá luz no final do túnel enquanto a grande palavra de ordem do bolsonarismo para a Educação for “#ficaWeintraub”.

Antigamente...

(...) Foi um susto dos diabos. Pensaram que era gatuno. Também o Zezé fez uma cena de faroeste, revólver, lenço preto... Eu agarrei a pequena na cama... Virgenzinha em folha.

- E a polícia?

- Quando é que a polícia perseguiu um filhode políticio?

Patrícia Galvão (Pagu), "Parque industrial' (1933)

'Quando morre um de nós é o mesmo que morrer um cachorro'

Francisco Firmino Silva, mais conhecido como Chico Catitu, caminha em meio às águas na margem do rio Iriri (Terra do Meio, no Pará) com o mesmo cuidado e respeito com que o faz no rio que é seu berço, o Tapajós. Aos 69 anos, o experiente mateiro da comunidade Montanha e Mangabal avança com passos lentos, mas firmes, enérgicos. Há 18 anos, tornou-se um dos principais nomes entre as lideranças ribeirinhas —ou entre os beiradeiros, como se diz naquela parte da Região Norte—, quando ele passou a fazer o trabalho negligenciado pelo Estado: a demarcação do seu território e a proteção da floresta Amazônica. Sua luta é um dos fatores responsáveis pela criação, em 2013, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal, e por frear, ao menos por enquanto, o projeto de construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós, a maior do Complexo Hidrelétrico da Bacia do Tapajós —que prevê a construção de sete usinas na região—. A hidrelétrica teve o processo de licenciamento arquivado no Ibama, depois que a Funai aprovou estudo de área que dá base a um processo de demarcação de reserva indígena, mas a Eletrobras ainda pretende inaugurá-la até 2022.

É no território de Catitu, onde, além dos beiradeiros vivem cerca de 15.000 indígenas munduruku, que está sendo gestada a mais acirrada luta socioambiental depois da construção da usina de Belo Monte. “Todo o tempo a gente tem que provar para a Justiça o que é da gente e o que não é”, diz Catitu, com ar cansado, coçando a cabeça grisalha. Ele caminha quase sempre em silêncio, como fazem os munduruku. Foi com esse povo, inimigo histórico das comunidades não-brancas fundadas por serigueiros na região, que Catitu forjou uma aliança para protegerem juntos a floresta em pé e suas terras. Em 2014, guerreiros indígenas e os ribeirinhos, sob o comando de Catitu, conclamaram a autodemarcação da terra indígena Sawré Muybu, depois de sete anos aguardando ação da Fundação Nacional do Índio (Funai).


“Se fosse para lutar cada um de um lado, a gente não teria conseguido barrar a construção dessa barragem [São Luiz do Tapajós]. Os indígenas são muito unidos. Se nós das comunidades tivéssemos nervos e coragem de lutar com eles, a gente ganhava a guerra contra todos os empreendimentos feitos na Amazônia”, afirma Catitu.

Ele era o primeiro a se embrenhar no mato e deixava marcas para que os munduruku soubessem onde abrir a picada. Graças à sua experiência de mateiro e ao GPS manuseado por voluntários —e sem a segurança envolvida em uma operação oficial—, o grupo seguiu as coordenadas exatas do mapa de demarcação feito pela Funai e parado em Brasília. O beiradeiro conhece tanto a floresta, que os munduruku dizem que Catitu é mais indígena que eles. Ante a afirmação, ele sorri satisfeito, deixando à mostra um canino de ouro.
Ameaças

Por iniciativas como essa, garimpeiros, grileiros e madeireiros colocaram a cabeça de Catitu a prêmio. A criação da PAE Montanha e Mangabal impactou diretamente os esquemas de garimpagem e de retirada de madeira e palmito do território. Ele já perdeu as contas de quantas casinhas —emboscadas na floresta— fizeram para ele e seus amigos. A última, que ele saiba, foi há dois anos. Durante o processo de autodemarcação do território Munduruku, grileiros armados prepararam uma armadilha para o beiradeiro. “Mas os indígenas estavam perto de mim e me protegeram”, conta, agradecido.

“Já perdi muitos amigos em emboscada. Toda pessoa que luta pela terra tem sido morta covardemente, não existe punição. Quando morre um de nós, é o mesmo que morrer um cachorro”, lamenta Catitu, que há dois anos vive sob proteção policial. Ao menos em teoria. “Acredito que, para nós que estamos ameaçados, só Deus e Nossa Senhora mesmo. Para sair de casa, logo no começo, a gente pedia proteção policial para mim. Mas quando perguntavam onde eu morava e viam que era longe, diziam que não tinham gasolina. Então eu saía sozinho. Não posso entrar em um buraco para me esconder. Estou há 18 anos nessa luta”.

Beirando os 70 anos, não lhe falta energia. Entre operações na mata e reuniões nas comunidades da região, Catitu é capaz de passar mais de um mês sem dormir em casa. Ele conta que, além das ameaças de morte, os que exploram ilegalmente a floresta os alvejam de outras maneiras. “Eles pelejam de todo jeito contra nós, lideranças. Já recebi duas ofertas para pegar dinheiro e largar minha luta. Até um milhão e meio de reais. Mas de que adianta eu pegar esse dinheiro e acabar com a vida até de criança? Dinheiro acaba, mas a vida das pessoas continua. Criei meus dois filhos no Tapajós tudinho de barriga cheia. Nossa vida, o que a gente tem para deixar para nossas crianças, é o rio, a floresta, para eles se manterem pelo resto da vida deles e para outras gerações”, diz, firme.

Um dos orgulhos do líder ribeirinho é o Protocolo de Consulta que criaram depois da autodemarcação e que determina que o Governo deve consultar todos os habitantes da floresta antes de aprovar qualquer projeto no território. “Hoje ainda tem muitos empreendimentos ameaçando a gente, como a hidrovia que eles querem construir para puxar soja do Mato Grosso para o Tapajós”, conta, referindo-se à Hidrovia do Tapajós-Teles Pires, um projeto do Governo que está sob coordenação da empresa R. Peotta-Progen. Em junho de 2018, durante a apresentação do estudo de viabilidade da hidrovia, um técnico da empresa argumentou que a poluição provocada pelo transporte hidroviário é bem menor do que aquela dos transportes rodoviário e ferroviário, mas reconheceu que o projeto “vai mudar muito a região”.

Há anos a comunidade de Montanha e Mangabal sofre com a expropriação de suas terras por grileiros porque a Justiça brasileira, em diversas ocasiões, reiterou que “não há ocupação humana na região”, uma das maiores batalhas de Catitu. Mas em 2006, uma decisão judicial inédita a favor dos beiradeiros abriu um precedente para todas as comunidades tradicionais da Amazônia. O Ministério Público Federal (MPF) conseguiu comprovar a ocupação da região há 140 anos pelas famílias de ribeirinhos por meio de registros de batizados, casamentos, e outros documentos pessoais, o que impediu que uma madeireira se apropriasse da área e expulsasse a população.

Entre os documentos que embasaram a ação da Procuradoria à ocasião estava O Livro da Vida de Ademael Siqueira dos Anjos, escrito por um seringueiro no início do século XX, que registrava o cotidiano de sua família, como o nascimento e batizado do filho. O doutor em Geografia Humana Mauricio Torres, autor da extensa pesquisa genealógica sobre a comunidade de beiradeiros que embasou a ação do MPF (e amigo de Catitu), narra um trecho do documento, que ele considera um dos relatos mais bonitos sobre a população ribeirinha: "Em uma das passagens, ele escreve o seguinte: ‘Meu filho, Antônio Siqueira, foi atirado por índio (sic), no dia tal, cortando seringa…’”. O indígena em questão era um mundukuru, antepassado do mesmo povo que hoje se aliou com um dos mais corajosos descendentes dos seringueiros do Tapajós, Chico Catitu.

Enchentes, temporais, perdas e sofrimento

Sabemos que o sofrimento é esperado e normal – desde que seja evitado!

O planeta que, até onde sei, não tem ideologia de direita ou de esquerda, mas é tão vivo quanto nós – um dos seus inúmeros filhos – certamente reage ao nosso estilo de vida globalizado, fundado na sua implacável exploração.

A Mãe Terra exibe em terremotos, tempestades, geadas e vendavais, antigamente tidos como “naturais”, as consequências de um impiedoso monopólio. Vale lembrar Lévi-Strauss: “O direito do meio ambiente, de que tanto se fala, é um direito do meio ambiente sobre o homem, não um direito do homem sobre o meio ambiente”.

Não preciso invocar queimadas nem gigantescas enchentes que causam mortes, perdas materiais e muito sofrimento para sentir no coração esses gemidos.

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Uma radical divisão entre o pessoal e o impessoal, entre o humano e o natural, impede de perguntar por que ocorrem mais enchentes aqui do que lá. Os meteorologistas se distinguem dos jornalistas porque não se podem atribuir razões mortais ou ideológicas ao clima, que somente comporta atenções factuais preventivas. Se há (como, infelizmente, é o caso) um tsunami no Japão, uma epidemia na China ou um temporal em Belo Horizonte, ninguém vai buscar sua causa final na vida de um político. Eventos imprevistos, promovedores de imenso sofrimento, são fundamentalmente “matutais” e estão imunes de atribuições morais.

Sistemas políticos e econômicos não seriam culpados por eventos naturais ou coincidências negativas e acidentais, exceto em sociedades dominadas por “misticismo”. Mas essa divisão radical entre os desastres causados por forças naturais e interesses humanos mudou. O aquecimento global, como o problema crítico de um mundo globalizado e pela primeira vez visto de fora para dentro com um todo, produz uma consciência aguda de nossas ações (e relações) com a Terra. Não estaríamos destruindo o planeta por meio de um sistema fundado no egoísmo, que interrompe a velha reciprocidade do dar-e-receber que tem governado mares, ares, florestas e desertos desde o começo do mundo?

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Em algumas sociedades, o natural e o social estão de tal modo relacionados que um bruxo pode causar trovoadas ou malefícios em tal ou qual pessoa. Não se trata de Disney ou de Harry Potter, mas daquilo que pode reequilibrar moralmente rotinas interrompidas por infortúnios ou trágicas coincidências.

Bruxarias não são fantasias descartáveis pelo nosso ímpeto intelectualista, tecnologicamente orientado. Bruxarias são buscas dos motivos que promovem mais sofrimentos e pobreza em João; ao passo que Antonio e Pedro vivem ricos e felizes.

A questão básica da atribuição moral de um evento que causa perda e sofrimento – seja essa atribuição legal racional ou mágica – é sempre a mesma: por que aconteceu comigo e não com outra pessoa?

As causas próximas são fáceis de determinar: a bala penetrou a cabeça ou estilhaçou o coração, não havia como escapar; o velho não ia ao médico e, quando o visitou, constatou o câncer avançado; o enfarte fulminante devido a uma monumental tristeza levou o amigo e por aí seguem essas óbvias e intermináveis constatações das causas próximas do sofrimento. Mas o que realmente perturba é a causa final: por que a enchente levou a minha casa e não a do meu vizinho; por que foi o meu filho não um outro jovem qualquer?

O filósofo Henri Bergson e E.E. Evans-Pritchard, o primeiro antropólogo a analisar um sistema de bruxaria em operação numa sociedade africana, já haviam observado que podemos aceitar tudo, menos o caos de uma interrupção da plausibilidade das rotinas que fornecem o significado da vida. Interrupções radicais de rotinas são como “balas perdidas” e achadas, Deus nos livre, no corpo de uma pessoa amada por obra do acaso. Elas nos levam diretamente à questão do acaso, que só uma enorme dose de compaixão, fé e resignação pode equilibrar.

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Quando a adversidade é mais frequente do que a felicidade, o anômalo vira um valor. Sabemos que o sofrimento é esperado e normal – desde que seja evitado! Se, entretanto, o procuramos, ele vira um valor e, como uma epidemia ou a desonestidade, revela o quanto devemos à nossa humanidade.

Conta outra

Nos Estados Unidos, sempre a primeira referência em vivência democrática, a prestação de contas do governo federal ao Congresso e as intenções para o ano que começa estão em discurso denominado Estado da Nação.

Hollywood (saudades da série The West Wing) já mostrou ao mundo o frenesi que antecede a elaboração da mensagem do chefe do governo ao Legislativo, as discussões sobre os temas polêmicos e o debate de ideias sobre o que deve prevalecer para o registro da história. A mensagem procura o rigor sobre o passado para tornar crível a promessa de futuro.


No Brasil, a mensagem que o presidente da República envia solenemente ao Congresso a cada ano, na abertura dos trabalhos legislativos, já foi chamada de “engana brazilianista”. É um relatório sem compromisso com a realidade. Não serve para pesquisa, seja dos temas, seja dos métodos, seja das intenções da administração. É, apenas, uma extensa formalidade.

A começar pelo portador. Onde já se viu um ministro esvaziado em suas funções enquanto estava de férias, tendo de explicar na volta às pressas se está demitido, levar solenemente ao Congresso a carta de intenções do governo federal? O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, fez este papel e viu aumentar sua necessidade, que já era grande, de justificar presença no governo. Mas continuará, por enquanto, onde sempre esteve: no Planalto há um vácuo que serve às longas frituras.

Deram-lhe o papel de mensageiro, mas poderia ter passado por constrangimento pior. A carta foi lida pela primeira-secretária, deputada Soraya Santos (PL-RJ), que, por duas vezes, fez longa pausa para esperar que o plenário, escolado em não ouvir anualmente a mensagem, prestasse uma mínima atenção.

Por volta do mês de novembro, inicia-se aqui a corrida de assessores dos ministérios para fazer o relatório daquilo que o governo quer fazer constar de sua mensagem como tendo feito e as promessas para o ano em curso. Uma versão administrativa das resoluções de ano-novo que povoam o imaginário do réveillon.

Tal como a função do ministro mensageiro, o documento é inconsistente. O deste ano tem 150 páginas e não chega a ser tão falso quanto os programas de governo de candidatos, a capa, agora em verde mais claro, tem conteúdo.

Mas poderia ser reduzido às linhas em que o presidente Jair Bolsonaro relaciona as prioridades que dependem de votação do Congresso. Todas conhecidas e, para sorte dele, são também as prioridades da Câmara e do Senado. Há, porém, uma mudança importante a destacar nos planos do governo revelados na mensagem. A reforma administrativa, que a equipe econômica gostaria de ver aprovada antes mesmo da tributária, saiu da lista.

O governo explica que ela está embutida naquela prioridade genérica de buscar o equilíbrio fiscal, mas não era com esse disfarce que vinha sendo gestada. Foi suspensa ano passado, por resistência interna, até que o Ministério da Economia a submetesse à discussão dos ministros atingidos. O que não aconteceu até hoje.

Fora isso, às vezes procura-se uma inconsistência em estimativas, às vezes discute-se um projeto que já ruiu, mas não é assunto que passe para o dia seguinte. O compromisso com a realidade, por parte do Congresso na sua relação com a gestão do Executivo, continua a ser LDO (diretrizes orçamentárias), PPA (plano plurianual) e Orçamento da União. O Orçamento é a peça mais importante do Parlamento para a administração ao longo do ano, embora tenha também seus aspectos ficcionais, sobretudo na estimativa de receita. A agenda das reformas o Congresso considera sua, e os presidentes das duas Casas tocam seus planos sem pedir licença.

Para isso começaram a mobilizar suas próprias bases, vez que o presidente não as tem. O resto é propaganda, para durar não mais que 24 horas.

Brasil de 'Deus'


O desprezo pela coisa pública

A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa pública além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles — como se o mundo fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder —-,chegar a entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo mundo que se encontra entre eles.
Hannah Arendt, “Homens em tempos sombrios”(1955)

Barragens mineiras com tragédias anunciadas; viadutos paulistanos ruindo a cada dia; o belo complexo do Teatro Nacional de Brasilia interditado há anos, jogados às baratas como se a Cultura representasse uma ameaça à civilização dos “coronéis da política”; crianças morrem de fome, o Estado do Ceará em chamas que mostram os castigos humanos do poder das Facções e do desprezo pelos governos ao tratar de maneira bárbara os presídios e os presidiários, pessoas à margem da civilização sem ter nenhum direito senão a indiferença afetiva e social das gestões públicas; os hospitais, inclusive da charmosa(?) capital da República matando mais do que curando; as escolas agora, com um futuro sombrio de uma educação sem liberdade de expressão; os corruptos e corruptores continuam sua saga de uma voracidade desvairada, determinando a morte de parte da população quando desviam as verbas públicas para a Saúde, Educação e Moradia; o sadismo mortífero de uma ideologia capitalista famigerada por riquezas e lucros, deixando as pessoas se submeterem ao que Hannah Arendt chamam “as banalidades do mal”.

Nietzsche em seu livro “A Gaia Ciência”, chega a afirmar o que serve para os nossos dias atuais: “Vejo a má consciência como uma profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão mais radical das mudanças que viveu — a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz[…]:havia um terrível peso sobre eles. Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de desgraça, um mal-estar tão plúmbeo”.

É tempo de mudanças radicais, a população já não suporta esse estado de “servidão humana”, onde os mais fortes e poderosos enredam as pessoas em suas tramas de uma politicagem falsa, eleitoreira e, além disso, revestida de uma pseudo-democracia. É bem verdade que a mentalidade política da população tem mostrado ínfimos avanços, mas é necessário mais, é pouco ainda. Cito como exemplo o descaso pelas obras públicas no Distrito Federal: viadutos que começam a ruir sem nenhum conserto; polícia de trânsito é fantasmagórica, só enxergamos em nossas avenidas, guardas trancafiados em suas viaturas, conversando. Será possível que ainda não se deram conta que guardas de trânsito ficam nas ruas, nos cruzamentos, usam apitos, ajudam o fluxo de trânsito nas ocasiões de engarrafamentos e acidentes? Os queridos e muito bem preparados Bombeiros são a nossa salvação, ainda bem! Quem dirige o trânsito na Brasilia de Lúcio Costa, são os próprios motoristas, sempre inquietos, agressivos e tendo verdadeiras crises “epiléticas” de caráter agressivo. Senhor Governador, que saudade dos tempos dos Administradores, dos tempos em que não havia a avidez de Deputados e Senadores! Brasília era bucólica, romântica, humana, feita alías para poucos habitantes. Hoje, nossa cidade se transformou num espaço gigante de um grande “curral eleitoral”. Estamos vivendo realmente, profundos tempos sombrios e de “homens partidos”, como poetou Carlos Drummond de Andrade.

PIB não é a realidade

O PIB é bom, mas não reflete o que os cidadãos comuns vivenciam, não reflete a insegurança, que é uma parte tão importante do bem-estar. Além disso, hoje estamos preocupados com a sustentabilidade: o PIB não mede se o crescimento é sustentável
Joseph Stiglitz, Nobel de Economia:

Na América Latina, dengue preocupa mais que coronavírus

O surto de coronavírus originado na China está atraindo a atenção mundial, e a pergunta que todos fazem é se (e quando) ele chegará à América Latina. Embora o vírus 2019-nCoV tenha surgido na cidade chinesa de Wuhan, a milhares de quilômetros do continente, já houve alertas no México, na Colômbia e na Argentina, todos descartados, e ainda há vários casos em observação no Brasil.

Até esta terça-feira, a taxa de letalidade do coronavírus, com 20.438 casos de infecção e 425 mortes na China continental, era de 2,08%. Houve até o momento apenas duas mortes fora da China continental: um nas Filipinas e outro em Hong Kong.

A título de comparação, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até janeiro de 2020 o vírus ebola tinha uma taxa de mortalidade entre 50% e 88%. Em 2009 e 2010, o vírus da gripe H1N1 teve 0,02% de casos fatais. Em 2012, o coronavírus da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers) registrou 2.494 casos e 34,4% de mortalidade. Em 2013, a gripe aviária (H7N9) registrou 1.568 casos e 39,3% de mortes.


Entretanto, o avanço do coronavírus na Ásia é tão rápido que muitos especulam que ele poderá chegar em breve à América Latina. Diante disso, enquanto o coronavírus é apenas um grande medo, várias outras doenças infecciosas matam todos os dias na região, e há décadas. Na América Latina, a tuberculose registrou 280 mil casos por ano no século 21. A malária está regressando a algumas áreas tropicais, com a Venezuela liderando em 2017, segundo a OMS.

A doença que mais preocupa atualmente na América Latina é a dengue, que atingiu sua máxima histórica e avançou exponencialmente nas últimas décadas. Hoje, é a doença viral transmitida por mosquitos que se espalha mais rapidamente pelo planeta. A ONU e estudos científicos já alertaram para os efeitos do aquecimento global sobre ela, já que o fenômeno leva a uma maior sobrevivência e a uma proliferação mais rápida do mosquito Aedes aegypti, que transmite a dengue.

Entre 2019 e 2020, os casos confirmados de dengue na América Latina e no Caribe chegaram a 3.095.821. Houve 1.530 mortes, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). A taxa letal dessa doença foi de 0,049% em 2019. Esses números são os mais altos desde 1980, quando 65.523 casos foram relatados em todo o continente. O segundo ano com o maior número de casos de dengue foi 2015, com 2.415.693.

De acordo com o diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis da Opas, Marcos Espinal, "a região está passando por um novo período da epidemia de dengue com um aumento notável de casos". Em janeiro de 2020, mais de 125 mil pessoas tiveram dengue, e pelo menos 27 morreram em toda a região.

Em 2019, o México registrou 191 mortes por dengue, com 41.505 casos confirmados. Na América Central, houve 295 casos fatais, com o maior foco da epidemia em Honduras, onde 180 pessoas morreram.

No final de janeiro, o ministro da Saúde hondurenho, Roberto Cosenza, disse em entrevista à agência de notícias Efe que seu país poderia enfrentar uma epidemia de dengue "maior" que a de 2019. A progressão da dengue no país é alarmante, com uma média de mil casos suspeitos por semana, 80 dos quais são do tipo hemorrágica.

A incidência da dengue em crianças menores de 15 anos na América Central também é motivo de preocupação. Na Guatemala, por exemplo, 52% dos casos graves de dengue são registrados nessa faixa etária, um número superado por Honduras (66%).

No Cone Sul, a dengue atinge especialmente o Brasil, com 1.544.987 casos em 2019, em comparação com os 265.934 casos em 2018: um aumento de 488%. Foi também ali que ocorreu o maior número de mortes: 782, de acordo com dados de 2019 do Ministério da Saúde brasileiro.

Na Colômbia, 127.553 casos de dengue e 87 mortes foram registrados no ano passado.

Até agora, em 2020, Paraguai e Honduras estão liderando os surtos de dengue. Honduras já registrou mais de 3.200 casos.

No início deste ano, mais de 20 mil pessoas foram afetadas pela doença no Paraguai. O caso do presidente paraguaio, Maro Abdo Benítez, que foi diagnosticado com o vírus, ganhou as manchetes dos jornais.

Em 29 de janeiro, a capital do país, Assunção, declarou emergência ambiental e sanitária de 90 dias como medida contra a epidemia de dengue. Segundo o Gabinete de Vigilância Sanitária, houve apenas quatro mortes confirmadas por dengue, mas há outras 23 que ainda estão sendo analisadas.

A Bolívia contou 16.193 casos em 2019 e pelo menos 23 mortes. O país começou 2020, segundo o Ministério da Saúde, com 2.143 infecções, além de 700 mil casos aguardando confirmação laboratorial. Argentina, Bolívia e Paraguai impuseram controles fronteiriços mais rígidos, juntamente com o Brasil.

A dengue representa um grande desafio para a América Latina. O vírus é transmitido por mosquitos, por isso as medidas sanitárias mais urgentes são as campanhas de conscientização entre a população dos diferentes países, para que todos os lugares onde esses insetos se reproduzem sejam eliminados, especialmente aqueles dentro e próximos das casas.

A Opas enfatiza que a dengue é "um problema de saneamento doméstico e comunitário" e que a maneira mais eficaz de combatê-la é se livrar de todo tipo de objeto e recipiente "que possa acumular água, como tambores, pneus usados, latas, garrafas e vasos".

A dengue afeta bebês, crianças pequenas e adultos. Os sintomas mais frequentes são febre alta (40 ºC), dor de cabeça muito intensa, dor atrás dos olhos, nas articulações e nos músculos. Se esses sintomas ocorrerem – bem como dores abdominais fortes, vômito persistente, respiração rápida, hemorragia das mucosas, vômito e fadiga –, é necessário consultar um médico com urgência.

A dengue grave (também chamada de hemorrágica) é fatal, pois pode levar à acumulação de líquidos, hemorragias graves e falência de órgãos. Embora não exista um tratamento específico para essa doença, o diagnóstico precoce, cuidados médicos e aconselhamento adequado ao paciente podem salvar vidas.
Deutsche Welle

Quem governa Bolsonaro

Ninguém governa governador, disse um dia Agamenon Magalhães, à época, governador de Pernambuco e ex-ministro de Getúlio Vargas. Os tempos eram outros. Agora, há quem governe presidente da República – no caso, Jair Bolsonaro, que age e reage de acordo com o humor das redes sociais. Para ser preciso, de acordo com o humor dos seus devotos.

Antes de ser eleito, ele governou seus simpatizantes e futuros apóstolos. Quem o governava então era o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, e seus filhos que liam o mundo por ele, uma vez que Bolsonaro jamais gostou de ler. Olavo e os filhos ainda leem o mundo por ele. Por ele, alguns garotos empregados no governo leem as redes sociais.

Mais notadamente de alguns meses para cá, Bolsonaro, que jamais desprezou as redes porque é produto delas, passou a responder com maior atenção ao que elas dizem e cobram. Passou também a acusar todos os golpes que recebe quando criticado. E quando não se justifica, ou quando não pede compreensão, recua ou avança em decisões que tomou.

Ora, dirão, ouvir estrelas não faz mal. Ou, se preferirem: ouvir o povo deveria ser uma obrigação dos governantes. Nada seria mais democrático. Mas nem sempre a voz do povo é a voz de Deus. E um governo incapaz de entender isso jamais governará bem. No início do século passado, os cariocas sabotaram a aplicação da vacina contra a varíola.

Houvesse redes sociais e governantes orientados por elas, a vacinação talvez fosse suspensa. De resto, é falso que a voz das redes expresse, sequer, a voz da maioria que por meio dela fala. Bolsonaro não está interessado em ouvir a voz da maioria nas redes ou de fora delas. Interessa-se pela voz de uma parcela dos que votaram nele, e que ele quer preservar.

Na semana passada, por exemplo, enquanto essa parcela reagiu com firmeza contra o despacho de aviões para resgatar brasileiros retidos na China com medo do coronavírus ou afetados por ele, Bolsonaro bateu o pé e afirmou que não os resgataria para evitar o risco de que, trazidos de volta, pudessem contaminar os que por aqui estão.

Alegou que seria uma operação perigosa e que custaria caro aos cofres da União. Jogou nas costas do Congresso a responsabilidade por ela à falta de recursos do governo. Como começou a ficar mal na foto e mesmo entre muitos dos seus devotos, recuou e, agora, admite que poderá dar início ao socorro já prestado por outros governos mais humanos do que o dele.</p>

Antes dera outra vacilada: demitiu o 02 da Casa Civil pelo ato “completamente imoral” de voar em jatinho da FAB para a Suíça, de lá para a Índia, e na volta à Sicília, ilha italiana de rara beleza, de patrimônio histórico e artístico precioso e de restaurantes de primeira. Mas a pedido dos filhos, reempregou-o no governo. Para demiti-lo mal o fizera.

Quando acerta, Bolsonaro erra no momento seguinte. Ou persevera no erro ou tenta consertá-lo. Biruta de aeroporto se move sob a direção dos ventos. Mas ela é um dos muitos indicadores a serem levados em conta pelos pilotos, não é o único. Isso, Bolsonaro parece desconhecer apesar de ter sido paraquedista antes de o Exército afastá-lo por má conduta.

Se tivesse dependido apenas do seu empenho, a reforma da Previdência Social jamais seria aprovada enquanto ele governasse. Em compensação, alguns dos seus projetos desvairados teriam sido. Como ele se recusa a compartilhar o poder com os partidos, o que não significa licença para a roubalheira, o Congresso tomou-lhe parte do poder.

A Constituição de 1988, em vigor, foi concebida para um regime parlamentarista que jamais existiu. Por artes do destino ou sabedoria dos que comandam o Congresso, o país, hoje, experimenta uma espécie de parlamentarismo disfarçado. Assim – quem sabe? – será possível atravessarmos os próximos tormentosos três anos.

Pergunte sobre o futuro do Brasil a Rodrigo Maia e Armínio Fraga

Dizem, há muito tempo, que o futuro a Deus pertence, o que serviria de slogan para os economistas do arrocho por um lado e ganho fácil por outro. Adeptos de frases feitas, vendem sua “teoria” com adaptações da grande fake news da história nacional: “O Brasil é o país do futuro”. O futuro mesmo, designação do país com que nossos filhos e netos vão lidar, caiu em desuso como cogitação e como palavra.

O futuro não convém à sanha imediatista da pequena minoria chamada de “mercado” e assusta mais os que, para maior paz dos outros, não devem pensar nem sobre presente.

Apesar disso, duas notoriedades, Rodrigo Maia e Arminio Fraga, não apenas remeteram atenções ao futuro, como lhe deram peso insuperável. Nem por isso houve sinais de que fossem ouvidos, claro.

Em seu penúltimo artigo na Folha, original na forma e espantoso no conteúdo, Fraga expôs as urgências sociais no que pareceu sua primeira abertura para o tema. Uma transformação extrema. Ex-colaborador de George Soros, o bilionário visto como maior faro mundial para o lucro de especulação, com ele Fraga afinou o olfato e veio a ser, aqui, um expoente na aplicação de capitais. Uma estrela do tal mercado, pois.

Fraga rumou para o futuro em palestra como ex-presidente do Banco Central. Ainda sobre a desigualdade e, agora sem surpreender, o gasto governamental com Previdência e funcionalismo, revelou seu apocalipse particular: “O Brasil precisa mexer nessas contas, ou em cinco ou dez anos teremos uma revolução”.

 No meio em que Fraga vive, golpe de Estado, com prisões, cassações, torturas e assassinatos, é chamado de revolução. Golpe elitista e produtor intencional de desigualdade, não seria o tipo de revolução antevisto pelo Fraga contrário à desigualdade. Qual seria?

Rodrigo Maia é o mais bem-sucedido entre os políticos projetados desde a crise do governo Dilma. Visto como fonte de ponderações necessárias, com frequência usa de franquezas inesperadas e, em geral, oportunas. Como complemento à crítica a Abraham Weintraub, ministro da Educação, pelo “prejuízo a muitas gerações”, Maia não se escondeu: “Nosso país não tem futuro, né? Não tem futuro”.

 Entre a revolução antevista, mesmo descontado o prazo exíguo, e o futuro que não se vê, emerge a contribuição de Jair Bolsonaro e dos seus sustentáculos — sobre todos, os seus militares — para que os dois extremos não sejam negáveis. Em 13 meses de governo, não houve uma só medida favorável aos oprimidos pelas desigualdades, sejam as sociais, as econômicas, as étnicas. Isso se faz sobre uma insatisfação e sob dificuldades nacionais que, por vários indícios, já eram inquietantes.

Ao fechar 2019, 66% das famílias brasileiras, dois terços delas, estavam endividadas. Um quarto delas, com as dívidas em atraso. Duplo recorde. Apesar do 13º e dos saques no FGTS.

No começo deste ano, ao menos 11,6 milhões procuravam emprego: no último ano do primeiro mandato de Dilma, 2014, eram 6,6 milhões.

A média dos que procuravam emprego no primeiro ano de Bolsonaro chegou a 12,5 milhões, 87,7% a mais do que em 2014. E A média mensal de concessão do Bolsa Família, quando maior é a necessidade, caiu 5.600, com meio milhão em uma fila de espera que passou a andar apenas 1% ao mês.

A inflação de 2019, dizem, foi de 4,31% com Guedes e Bolsonaro, mas a alimentação básica viu a carne encarecer 32%, 13% a mais nos cereais e nos legumes, 14% nas aves e ovos, 10% no açúcar, e assim por diante, ou para cima. E o governo quer retirar o subsídio que reduz o preço da cesta básica.

A reforma da Previdência, ninguém de boa-fé duvida mais, prejudicou quem trabalha e não trouxe contribuição substancial ao problema.

 O pacote de emendas constitucionais proposto pelo governo é antissocial, contra os estados e municípios (a federação) e tem numerosas incompatibilidades com a Constituição. Nele, nada é favorável às classes desassistidas e muito as agrava.

Cada ideia de Paulo Guedes para a economia é contrária ao assalariado, ao aposentado, ao carente. Cada ideia de alguém no governo é sempre contrária aos indígenas, à demarcação de suas áreas e de reservas nacionais, é contrária ao ambiente natural e favorável ao garimpo e aos desmatadores.

Em 13 meses de governo, nenhuma medida ou ideia contra as desigualdades, nada pela retomada real da atividade industrial, do emprego, da habitação, da segurança. E o futuro? Pergunte a Arminio Fraga e a Rodrigo Maia.