quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

'Quando morre um de nós é o mesmo que morrer um cachorro'

Francisco Firmino Silva, mais conhecido como Chico Catitu, caminha em meio às águas na margem do rio Iriri (Terra do Meio, no Pará) com o mesmo cuidado e respeito com que o faz no rio que é seu berço, o Tapajós. Aos 69 anos, o experiente mateiro da comunidade Montanha e Mangabal avança com passos lentos, mas firmes, enérgicos. Há 18 anos, tornou-se um dos principais nomes entre as lideranças ribeirinhas —ou entre os beiradeiros, como se diz naquela parte da Região Norte—, quando ele passou a fazer o trabalho negligenciado pelo Estado: a demarcação do seu território e a proteção da floresta Amazônica. Sua luta é um dos fatores responsáveis pela criação, em 2013, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal, e por frear, ao menos por enquanto, o projeto de construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós, a maior do Complexo Hidrelétrico da Bacia do Tapajós —que prevê a construção de sete usinas na região—. A hidrelétrica teve o processo de licenciamento arquivado no Ibama, depois que a Funai aprovou estudo de área que dá base a um processo de demarcação de reserva indígena, mas a Eletrobras ainda pretende inaugurá-la até 2022.

É no território de Catitu, onde, além dos beiradeiros vivem cerca de 15.000 indígenas munduruku, que está sendo gestada a mais acirrada luta socioambiental depois da construção da usina de Belo Monte. “Todo o tempo a gente tem que provar para a Justiça o que é da gente e o que não é”, diz Catitu, com ar cansado, coçando a cabeça grisalha. Ele caminha quase sempre em silêncio, como fazem os munduruku. Foi com esse povo, inimigo histórico das comunidades não-brancas fundadas por serigueiros na região, que Catitu forjou uma aliança para protegerem juntos a floresta em pé e suas terras. Em 2014, guerreiros indígenas e os ribeirinhos, sob o comando de Catitu, conclamaram a autodemarcação da terra indígena Sawré Muybu, depois de sete anos aguardando ação da Fundação Nacional do Índio (Funai).


“Se fosse para lutar cada um de um lado, a gente não teria conseguido barrar a construção dessa barragem [São Luiz do Tapajós]. Os indígenas são muito unidos. Se nós das comunidades tivéssemos nervos e coragem de lutar com eles, a gente ganhava a guerra contra todos os empreendimentos feitos na Amazônia”, afirma Catitu.

Ele era o primeiro a se embrenhar no mato e deixava marcas para que os munduruku soubessem onde abrir a picada. Graças à sua experiência de mateiro e ao GPS manuseado por voluntários —e sem a segurança envolvida em uma operação oficial—, o grupo seguiu as coordenadas exatas do mapa de demarcação feito pela Funai e parado em Brasília. O beiradeiro conhece tanto a floresta, que os munduruku dizem que Catitu é mais indígena que eles. Ante a afirmação, ele sorri satisfeito, deixando à mostra um canino de ouro.
Ameaças

Por iniciativas como essa, garimpeiros, grileiros e madeireiros colocaram a cabeça de Catitu a prêmio. A criação da PAE Montanha e Mangabal impactou diretamente os esquemas de garimpagem e de retirada de madeira e palmito do território. Ele já perdeu as contas de quantas casinhas —emboscadas na floresta— fizeram para ele e seus amigos. A última, que ele saiba, foi há dois anos. Durante o processo de autodemarcação do território Munduruku, grileiros armados prepararam uma armadilha para o beiradeiro. “Mas os indígenas estavam perto de mim e me protegeram”, conta, agradecido.

“Já perdi muitos amigos em emboscada. Toda pessoa que luta pela terra tem sido morta covardemente, não existe punição. Quando morre um de nós, é o mesmo que morrer um cachorro”, lamenta Catitu, que há dois anos vive sob proteção policial. Ao menos em teoria. “Acredito que, para nós que estamos ameaçados, só Deus e Nossa Senhora mesmo. Para sair de casa, logo no começo, a gente pedia proteção policial para mim. Mas quando perguntavam onde eu morava e viam que era longe, diziam que não tinham gasolina. Então eu saía sozinho. Não posso entrar em um buraco para me esconder. Estou há 18 anos nessa luta”.

Beirando os 70 anos, não lhe falta energia. Entre operações na mata e reuniões nas comunidades da região, Catitu é capaz de passar mais de um mês sem dormir em casa. Ele conta que, além das ameaças de morte, os que exploram ilegalmente a floresta os alvejam de outras maneiras. “Eles pelejam de todo jeito contra nós, lideranças. Já recebi duas ofertas para pegar dinheiro e largar minha luta. Até um milhão e meio de reais. Mas de que adianta eu pegar esse dinheiro e acabar com a vida até de criança? Dinheiro acaba, mas a vida das pessoas continua. Criei meus dois filhos no Tapajós tudinho de barriga cheia. Nossa vida, o que a gente tem para deixar para nossas crianças, é o rio, a floresta, para eles se manterem pelo resto da vida deles e para outras gerações”, diz, firme.

Um dos orgulhos do líder ribeirinho é o Protocolo de Consulta que criaram depois da autodemarcação e que determina que o Governo deve consultar todos os habitantes da floresta antes de aprovar qualquer projeto no território. “Hoje ainda tem muitos empreendimentos ameaçando a gente, como a hidrovia que eles querem construir para puxar soja do Mato Grosso para o Tapajós”, conta, referindo-se à Hidrovia do Tapajós-Teles Pires, um projeto do Governo que está sob coordenação da empresa R. Peotta-Progen. Em junho de 2018, durante a apresentação do estudo de viabilidade da hidrovia, um técnico da empresa argumentou que a poluição provocada pelo transporte hidroviário é bem menor do que aquela dos transportes rodoviário e ferroviário, mas reconheceu que o projeto “vai mudar muito a região”.

Há anos a comunidade de Montanha e Mangabal sofre com a expropriação de suas terras por grileiros porque a Justiça brasileira, em diversas ocasiões, reiterou que “não há ocupação humana na região”, uma das maiores batalhas de Catitu. Mas em 2006, uma decisão judicial inédita a favor dos beiradeiros abriu um precedente para todas as comunidades tradicionais da Amazônia. O Ministério Público Federal (MPF) conseguiu comprovar a ocupação da região há 140 anos pelas famílias de ribeirinhos por meio de registros de batizados, casamentos, e outros documentos pessoais, o que impediu que uma madeireira se apropriasse da área e expulsasse a população.

Entre os documentos que embasaram a ação da Procuradoria à ocasião estava O Livro da Vida de Ademael Siqueira dos Anjos, escrito por um seringueiro no início do século XX, que registrava o cotidiano de sua família, como o nascimento e batizado do filho. O doutor em Geografia Humana Mauricio Torres, autor da extensa pesquisa genealógica sobre a comunidade de beiradeiros que embasou a ação do MPF (e amigo de Catitu), narra um trecho do documento, que ele considera um dos relatos mais bonitos sobre a população ribeirinha: "Em uma das passagens, ele escreve o seguinte: ‘Meu filho, Antônio Siqueira, foi atirado por índio (sic), no dia tal, cortando seringa…’”. O indígena em questão era um mundukuru, antepassado do mesmo povo que hoje se aliou com um dos mais corajosos descendentes dos seringueiros do Tapajós, Chico Catitu.

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