domingo, 3 de setembro de 2023
O Brasil e a porcelana de bidê
O Brasil só me interessa profissionalmente. Fora do expediente, desligo do país, na medida do possível. Numa cidade como São Paulo, fica mais fácil, a depender do bairro; em Brasília, capital federal, suponho que seja mais mais difícil, não importa o setor, assim como na ex-capital federal Rio de Janeiro, em qualquer zona. As paisagens arquitetônico-tropicais são demasiadamente arquetípicas.
Como sou obrigado a me interessar profissionalmente pelo Brasil, tenho de assistir à transmissão de sessões e audiências, de julgamentos e de cerimônias. É difícil ir ao conteúdo, porque a forma prepondera, com o português levando surras que eu diria homéricas como os porres — e eu procurando salvar, ao menos mentalmente, concordâncias e regências. Acho até que concordância e regência corretas já nos garantiriam alguma governabilidade.
O português já foi melhor, os ternos nem tanto, e a ironia e o sarcasmo também tiveram dias mais radiosos. Exagero. Dias menos nublados.
O lulismo e o bolsonarismo, com a obtusidade, a vulgaridade e a corrupção da linguagem que lhes são peculiares, apagaram as poucas boutades inteligentes, respostas espirituosas e farpas sutis com as quais a política brasileira e também a imprensa política costumavam ser parcialmente iluminadas.
Ficou ainda mais aborrecido, portanto, interessar-se profissionalmente pelo Brasil. Resta-nos procurar espirituosidade em outras latitudes.
Sobre os personagens nacionais que povoam o meu cotidiano de trabalho, importo da França o que uma ex-conselheira do presidente Jacques Chirac disse a respeito dele: “Eu achava que ele era feito do mármore das estátuas. Na realidade, ele é da louça da qual são feitos os bidês”.
Como sou obrigado a me interessar profissionalmente pelo Brasil, tenho de assistir à transmissão de sessões e audiências, de julgamentos e de cerimônias. É difícil ir ao conteúdo, porque a forma prepondera, com o português levando surras que eu diria homéricas como os porres — e eu procurando salvar, ao menos mentalmente, concordâncias e regências. Acho até que concordância e regência corretas já nos garantiriam alguma governabilidade.
O português já foi melhor, os ternos nem tanto, e a ironia e o sarcasmo também tiveram dias mais radiosos. Exagero. Dias menos nublados.
O lulismo e o bolsonarismo, com a obtusidade, a vulgaridade e a corrupção da linguagem que lhes são peculiares, apagaram as poucas boutades inteligentes, respostas espirituosas e farpas sutis com as quais a política brasileira e também a imprensa política costumavam ser parcialmente iluminadas.
Ficou ainda mais aborrecido, portanto, interessar-se profissionalmente pelo Brasil. Resta-nos procurar espirituosidade em outras latitudes.
Sobre os personagens nacionais que povoam o meu cotidiano de trabalho, importo da França o que uma ex-conselheira do presidente Jacques Chirac disse a respeito dele: “Eu achava que ele era feito do mármore das estátuas. Na realidade, ele é da louça da qual são feitos os bidês”.
Se a lei é igual para todos, Bolsonaro não pode ficar a salvo dela
Como tenta fazer com Lula, o Centrão arrombou a porta do governo Bolsonaro e tomou-lhe cargos e o controle do Orçamento da União. Foi o preço que Bolsonaro pagou, e Lula não quer pagar, para não ser atropelado por um processo de impeachment.
Para Bolsonaro, não faria, como não fez, diferença. Bolsonaro só desejava uma coisa: torpedear a democracia para pôr no seu lugar um regime autoritário à moda antiga com o apoio dos militares. Se tivesse sido reeleito, era o que faria com chances de êxito.
Como estaria o Brasil se Bolsonaro tivesse vencido? Com mais um ministro do Supremo Tribunal Federal nomeado por ele, e outro às vésperas de ser indicado; quatro ministros de um total de 11. No Congresso, a extrema-direita estaria nadando de braçada.
Por desnecessário, não teria havido a tentativa de golpe abortada em dezembro, nem acampamentos à porta de quarteis, nem o golpe fracassado do 8 de janeiro. O golpe contra a democracia fora consumado em 30 de outubro, e pela via do voto.
O roubo das joias seguiria encoberto, mas caso revelado, não teria importância. Dar-se-ia um jeito de rebaixá-lo. Quem se disporia a enfrentar um governante no auge de sua força? Vida longa ao Rei, clamariam os súditos, e os derrotados que se calassem.
O Papa é argentino, mas, por sorte, Deus ainda parece ter alguma queda pelo Brasil. O tiro saiu pela culatra e Bolsonaro, agora, roga aos céus para não ser preso pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Foi por pouco, mas ele perdeu. Inelegível já está por oito anos.
Se a lei é de fato para todos, como se diz e os juízes apregoam, não faz o menor sentido prosperar o que se cochicha insistentemente em Brasília, e que é o mesmo que o ex-presidente Michel Temer defendeu em entrevista à revista VEJA:
“Ao prender um ex-presidente, em vez de produzir efeitos negativos, você o vitimiza. Não é útil para o país. Temos no Brasil uma radicalização de ambos os lados. São palavras, gestos, momentos que levam a nação a uma intranquilidade”.
Temer foi preso pela Polícia Federal em 2019 por ordem do juiz federal Marcelo Bretas, que apurava crimes de cartel, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e fraudes na licitação da construção da usina nuclear Angra 3, no Rio de Janeiro.
Temer foi solto cinco dias depois. É uma marca que carrega e que o faz se queixar sempre que pode:
“Não fui preso, mas sequestrado. Não havia indiciamento, denúncia, nem representação. E o juiz fez o que fez. Se viesse a mim para que eu comparecesse, é claro que iria. Eles me esperaram sair de casa, me pegaram na rua, com fuzil, para sequestrar.”
Daí a sugerir que se crie uma lei poupando ex-presidentes da prisão é dar um salto na direção da impunidade para contemplar um número reduzido de pessoas. Temer fala em “tratamento adequado à figura do ex-presidente”. É a mesma coisa.
Lula foi condenado e ficou preso 580 dias. Ninguém falou que ele não deveria ter sido preso dada à sua condição de ex-presidente. Foi solto por decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou a condenação por julgá-la tecnicamente errada e mal conduzida.
À Justiça não basta que seja justa, ela tem que parecer que é. Só existe justiça se ela valer igualmente para todos.
Para Bolsonaro, não faria, como não fez, diferença. Bolsonaro só desejava uma coisa: torpedear a democracia para pôr no seu lugar um regime autoritário à moda antiga com o apoio dos militares. Se tivesse sido reeleito, era o que faria com chances de êxito.
Como estaria o Brasil se Bolsonaro tivesse vencido? Com mais um ministro do Supremo Tribunal Federal nomeado por ele, e outro às vésperas de ser indicado; quatro ministros de um total de 11. No Congresso, a extrema-direita estaria nadando de braçada.
Por desnecessário, não teria havido a tentativa de golpe abortada em dezembro, nem acampamentos à porta de quarteis, nem o golpe fracassado do 8 de janeiro. O golpe contra a democracia fora consumado em 30 de outubro, e pela via do voto.
O roubo das joias seguiria encoberto, mas caso revelado, não teria importância. Dar-se-ia um jeito de rebaixá-lo. Quem se disporia a enfrentar um governante no auge de sua força? Vida longa ao Rei, clamariam os súditos, e os derrotados que se calassem.
O Papa é argentino, mas, por sorte, Deus ainda parece ter alguma queda pelo Brasil. O tiro saiu pela culatra e Bolsonaro, agora, roga aos céus para não ser preso pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Foi por pouco, mas ele perdeu. Inelegível já está por oito anos.
Se a lei é de fato para todos, como se diz e os juízes apregoam, não faz o menor sentido prosperar o que se cochicha insistentemente em Brasília, e que é o mesmo que o ex-presidente Michel Temer defendeu em entrevista à revista VEJA:
“Ao prender um ex-presidente, em vez de produzir efeitos negativos, você o vitimiza. Não é útil para o país. Temos no Brasil uma radicalização de ambos os lados. São palavras, gestos, momentos que levam a nação a uma intranquilidade”.
Temer foi preso pela Polícia Federal em 2019 por ordem do juiz federal Marcelo Bretas, que apurava crimes de cartel, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e fraudes na licitação da construção da usina nuclear Angra 3, no Rio de Janeiro.
Temer foi solto cinco dias depois. É uma marca que carrega e que o faz se queixar sempre que pode:
“Não fui preso, mas sequestrado. Não havia indiciamento, denúncia, nem representação. E o juiz fez o que fez. Se viesse a mim para que eu comparecesse, é claro que iria. Eles me esperaram sair de casa, me pegaram na rua, com fuzil, para sequestrar.”
Daí a sugerir que se crie uma lei poupando ex-presidentes da prisão é dar um salto na direção da impunidade para contemplar um número reduzido de pessoas. Temer fala em “tratamento adequado à figura do ex-presidente”. É a mesma coisa.
Lula foi condenado e ficou preso 580 dias. Ninguém falou que ele não deveria ter sido preso dada à sua condição de ex-presidente. Foi solto por decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou a condenação por julgá-la tecnicamente errada e mal conduzida.
À Justiça não basta que seja justa, ela tem que parecer que é. Só existe justiça se ela valer igualmente para todos.
Pedágio amargo
O título deste artigo lembra o pedágio cobrado aos usuários em rodovias, e raros lembrariam do pedágio pago para ir do presente ao futuro usando a escola. As classes médias e altas aceitam pagar o alto pedágio das mensalidades, e a nação aceita o custo ainda mais alto da omissão, do descuido do país com a educação de base. Dos atuais 50 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar, estima-se que, graças ao gasto financeiro de até 150 bilhões de reais de mães e pais, 10 milhões deles terminarão o ensino médio minimamente alfabetizados para os desafios da contemporaneidade. No mesmo período, o Brasil pagará o amargo pedágio de desperdiçar ao redor de 40 milhões de cérebros que não terão o preparo necessário para facilitar a busca de felicidade pessoal e participar da construção de um país melhor e mais belo.
A parcela que paga não reclama do pedágio chamado mensalidade porque vê educação como benefício familiar, não como atalho para o futuro do Brasil; aqueles que têm os filhos em cursos públicos sem qualidade não reclamam porque veem a escola como favor do Estado, sobretudo pela merenda e a guarda da criança por algumas horas em cada dia, não um investimento para o futuro de cada brasileiro e da nação. Não imaginamos a escola como estrada para o futuro do país.
Nos acostumamos com a ideia de que o Estado deve construir e manter estradas geográficas para todos, independente de quem as utiliza — mas a educação das crianças deve ser paga por seus pais ou mantida pelos pobres municípios sem condições de assegurar a qualidade necessária. Desejamos todas as estradas boas e públicas, mas aceitamos que a educação seja privada e sem qualidade igual para todos. O Brasil já despertou até mesmo contra o amargo pedágio da queima de florestas, mas ainda não para a constante queima de cérebros em escolas sem qualidade. Não temos a percepção da educação como alavanca do progresso, daí não sentirmos amargura no pedágio que alguns desembolsam para a educação privada de seus filhos, nem no imenso custo da omissão ao nos contentarmos com poucas crianças concluindo o ensino médio com qualidade: alfabetizadas para o mundo moderno.
A escola não é vista com a nobreza de uma estrada, uma ponte, aeroporto ou hidrelétrica. Além disso, cada criança é vista isoladamente, não como parte do conjunto da inteligência que o país precisa para construir seu futuro. Em consequência, o pedágio não parece amargo, uma vez que os ricos se beneficiam privadamente, e a sociedade não considera o desperdício de talento intelectual, por omissão com a educação de base.
Exige-se que as estradas para deslocamento entre cidades devam ser públicas, mas tolera-se a privatização das escolas, estradas para o futuro sem necessidade de qualidade para todos. A sociedade brasileira aceita o pedágio para o futuro, por mensalidade privada ou por omissão pública, sem a amargura sentida ao pagar pedágio em rodovias entre cidades.
Se houvesse consciência da importância da educação como o vetor do progresso, para a vida do aluno e o desenvolvimento do país, o Brasil não aceitaria uma única escola sem qualidade: nem pedágio por mensalidade para os filhos dos ricos, nem a perda do talento de cada criança.
A parcela que paga não reclama do pedágio chamado mensalidade porque vê educação como benefício familiar, não como atalho para o futuro do Brasil; aqueles que têm os filhos em cursos públicos sem qualidade não reclamam porque veem a escola como favor do Estado, sobretudo pela merenda e a guarda da criança por algumas horas em cada dia, não um investimento para o futuro de cada brasileiro e da nação. Não imaginamos a escola como estrada para o futuro do país.
Nos acostumamos com a ideia de que o Estado deve construir e manter estradas geográficas para todos, independente de quem as utiliza — mas a educação das crianças deve ser paga por seus pais ou mantida pelos pobres municípios sem condições de assegurar a qualidade necessária. Desejamos todas as estradas boas e públicas, mas aceitamos que a educação seja privada e sem qualidade igual para todos. O Brasil já despertou até mesmo contra o amargo pedágio da queima de florestas, mas ainda não para a constante queima de cérebros em escolas sem qualidade. Não temos a percepção da educação como alavanca do progresso, daí não sentirmos amargura no pedágio que alguns desembolsam para a educação privada de seus filhos, nem no imenso custo da omissão ao nos contentarmos com poucas crianças concluindo o ensino médio com qualidade: alfabetizadas para o mundo moderno.
A escola não é vista com a nobreza de uma estrada, uma ponte, aeroporto ou hidrelétrica. Além disso, cada criança é vista isoladamente, não como parte do conjunto da inteligência que o país precisa para construir seu futuro. Em consequência, o pedágio não parece amargo, uma vez que os ricos se beneficiam privadamente, e a sociedade não considera o desperdício de talento intelectual, por omissão com a educação de base.
Exige-se que as estradas para deslocamento entre cidades devam ser públicas, mas tolera-se a privatização das escolas, estradas para o futuro sem necessidade de qualidade para todos. A sociedade brasileira aceita o pedágio para o futuro, por mensalidade privada ou por omissão pública, sem a amargura sentida ao pagar pedágio em rodovias entre cidades.
Se houvesse consciência da importância da educação como o vetor do progresso, para a vida do aluno e o desenvolvimento do país, o Brasil não aceitaria uma única escola sem qualidade: nem pedágio por mensalidade para os filhos dos ricos, nem a perda do talento de cada criança.
O genocídio nosso, de todo dia
Não aguentamos mais.
Era assim que eu queria começar a escrever essa coluna, para falar da mortandade da gente preta neste mês de agosto de 2023. Crianças foram mortas pelo braço armado do Estado, lideranças negras e quilombolas foram assassinadas, chacinas em periferias seguem sendo feitas como se o que estivesse em jogo não fossem a vida de seres humanos. Há uma cumplicidade histórica do Estado brasileiro (sobretudo na sua esfera estadual) em parte dessas ações. Isso, quando o próprio Estado não é o responsável direto pelas ações que geram uma letalidade absurda da população negra.
Mas será mesmo que não aguentamos mais?
Ficamos tristes, enraivecidos, desamparados... Conversamos sobre o assunto, fazemos posts indignados, e a vida segue, até que outro menino de pele marrom seja morto por ser um menino de pele marrom. E aí, começamos o ciclo novamente.
O horror é tamanho que não há descanso. E aqui, é preciso fazer uma retrospectiva deste agosto e lembrar de quem teve sua vida violentamente ceifada.
Mal havíamos nos recuperado da chacina que aconteceu no litoral sul de São Paulo e, dia 7 de agosto, Thiago Menezes Flausino, 13 anos, foi executado na Cidade de Deus, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficamos chocados, fotos de crianças chorando de desespero no velório de seu colega foram amplamente veiculadas nas redes sociais. Parecia que não aguentaríamos mais uma criança morta em decorrência de ações policiais. O presidente da República se solidarizou com o horror da morte de Thiago e cobrou responsabilidade do governo do estado (se implicando também na busca de soluções para esse problema)
Nem cinco dias se passaram e, na mesma "cidade maravilhosa", outra criança negra foi morta. Eloáh Passos, de 5 anos, morreu dentro de casa durante uma ação policial no morro do Dendê. Não preciso dizer que o estardalhaço seria outro caso essa morte tivesse acontecido em Ipanema, Leblon ou Laranjeiras.
Na verdade, preciso sim.
Isso porque é uma grande mentira dizer que "não aguentamos mais ver a morte de pessoas negras". No Brasil, nós aguentamos sim. E, às vezes, me parece que tem gente que ainda quer mais...
Não é de hoje que vivemos um genocídio negro no Brasil. Em 1978, Abdias do Nascimento publicou uma importante obra chamada Genocídio do Negro brasileiro, na qual demonstrava que a morte desenfreada na população negra não é obra do acaso, ou resultado de uma série de infelizes incidentes. Há intenção e intencionalidade nessas mortes. Há um plano, um projeto muito bem executado, que mantém a população negra sempre no limiar da vida e da morte. Um limiar que é atravessado pela classe social na qual os sujeitos negros se inserem, mas que está sempre ali, numa espécie de sombra constante que nos lembra todos os dias que nós, negros, somos facilmente matáveis.
As mortes de crianças negras obviamente nos chocam mais, mas elas também entram nas estatísticas brasileiras que foram recentemente publicadas pela rede de Observatórios de Segurança que apurou o número da letalidade negra nas ações policiais em seis estados do Brasil. Os números são alarmantes e parecem corroborar a existência de um padrão que, infelizmente, segue ordenando as ações vinculadas à segurança pública do país.
Mas o genocídio negro parece não ter limites. Nesse mesmo agosto de 2023, Mãe Bernardette Pacífico (isso mesmo, uma mãe de santo que carregava a paz no seu sobrenome) foi assassinada a tiros dentro de seu terreiro em Salvador. E essa foi uma daquelas crônicas de uma morte anunciada: não bastasse ter vivido a execução de seu filho (que como ela lutava pela comunidade quilombola que fazia parte), Dona Bernadete (uma importante mãe de Santo liderança quilombola) havia recentemente denunciado que estava sofrendo ameaças de morte. Uma denúncia que foi publicizada, mas que não foi capaz de mudar essa lei soberana que ainda ordena a vida negra brasileira: seguimos sendo matáveis.
O balanço do mês de agosto é que o genocídio negro brasileiro segue seu curso, se entranhando no nosso cotidiano, naquilo que consideramos "normal" ou "natural" numa sociedade que se diz democrática. Porque, por aqui, na nossa democracia, negro continua sendo alvo.
Até quando?
Era assim que eu queria começar a escrever essa coluna, para falar da mortandade da gente preta neste mês de agosto de 2023. Crianças foram mortas pelo braço armado do Estado, lideranças negras e quilombolas foram assassinadas, chacinas em periferias seguem sendo feitas como se o que estivesse em jogo não fossem a vida de seres humanos. Há uma cumplicidade histórica do Estado brasileiro (sobretudo na sua esfera estadual) em parte dessas ações. Isso, quando o próprio Estado não é o responsável direto pelas ações que geram uma letalidade absurda da população negra.
Mas será mesmo que não aguentamos mais?
Ficamos tristes, enraivecidos, desamparados... Conversamos sobre o assunto, fazemos posts indignados, e a vida segue, até que outro menino de pele marrom seja morto por ser um menino de pele marrom. E aí, começamos o ciclo novamente.
O horror é tamanho que não há descanso. E aqui, é preciso fazer uma retrospectiva deste agosto e lembrar de quem teve sua vida violentamente ceifada.
Mal havíamos nos recuperado da chacina que aconteceu no litoral sul de São Paulo e, dia 7 de agosto, Thiago Menezes Flausino, 13 anos, foi executado na Cidade de Deus, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficamos chocados, fotos de crianças chorando de desespero no velório de seu colega foram amplamente veiculadas nas redes sociais. Parecia que não aguentaríamos mais uma criança morta em decorrência de ações policiais. O presidente da República se solidarizou com o horror da morte de Thiago e cobrou responsabilidade do governo do estado (se implicando também na busca de soluções para esse problema)
Nem cinco dias se passaram e, na mesma "cidade maravilhosa", outra criança negra foi morta. Eloáh Passos, de 5 anos, morreu dentro de casa durante uma ação policial no morro do Dendê. Não preciso dizer que o estardalhaço seria outro caso essa morte tivesse acontecido em Ipanema, Leblon ou Laranjeiras.
Na verdade, preciso sim.
Isso porque é uma grande mentira dizer que "não aguentamos mais ver a morte de pessoas negras". No Brasil, nós aguentamos sim. E, às vezes, me parece que tem gente que ainda quer mais...
Não é de hoje que vivemos um genocídio negro no Brasil. Em 1978, Abdias do Nascimento publicou uma importante obra chamada Genocídio do Negro brasileiro, na qual demonstrava que a morte desenfreada na população negra não é obra do acaso, ou resultado de uma série de infelizes incidentes. Há intenção e intencionalidade nessas mortes. Há um plano, um projeto muito bem executado, que mantém a população negra sempre no limiar da vida e da morte. Um limiar que é atravessado pela classe social na qual os sujeitos negros se inserem, mas que está sempre ali, numa espécie de sombra constante que nos lembra todos os dias que nós, negros, somos facilmente matáveis.
As mortes de crianças negras obviamente nos chocam mais, mas elas também entram nas estatísticas brasileiras que foram recentemente publicadas pela rede de Observatórios de Segurança que apurou o número da letalidade negra nas ações policiais em seis estados do Brasil. Os números são alarmantes e parecem corroborar a existência de um padrão que, infelizmente, segue ordenando as ações vinculadas à segurança pública do país.
Mas o genocídio negro parece não ter limites. Nesse mesmo agosto de 2023, Mãe Bernardette Pacífico (isso mesmo, uma mãe de santo que carregava a paz no seu sobrenome) foi assassinada a tiros dentro de seu terreiro em Salvador. E essa foi uma daquelas crônicas de uma morte anunciada: não bastasse ter vivido a execução de seu filho (que como ela lutava pela comunidade quilombola que fazia parte), Dona Bernadete (uma importante mãe de Santo liderança quilombola) havia recentemente denunciado que estava sofrendo ameaças de morte. Uma denúncia que foi publicizada, mas que não foi capaz de mudar essa lei soberana que ainda ordena a vida negra brasileira: seguimos sendo matáveis.
O balanço do mês de agosto é que o genocídio negro brasileiro segue seu curso, se entranhando no nosso cotidiano, naquilo que consideramos "normal" ou "natural" numa sociedade que se diz democrática. Porque, por aqui, na nossa democracia, negro continua sendo alvo.
Até quando?
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