quinta-feira, 21 de julho de 2022

Corrupção bolsonarista, capítulo 6

Victor Nunes Leal, maior ministro da história do STF, escreveu "Coronelismo, Enxada e Voto", clássico de interpretação do Brasil. Militares não suportavam sua inteligência jurídica e seu desprezo à delinquência armada. Foi sequestrado por sargentos revoltosos em 1963 e aposentado na marra pelo AI-5 em 1968.

O livro de Nunes Leal descreveu o sistema eleitoral corrupto da primeira República, fundado na barganha entre o poder privado local, do coronel, e o poder público central. Vitórias eleitorais dependiam da pobreza, da força bruta e do dinheiro. A representação política resultante, baseada no mando e na obediência, retroalimentava o sistema patrimonialista.

Eleições no Brasil tornaram-se gradualmente mais competitivas e democráticas a partir de 1988. Mas Jair Bolsonaro veio para resgatar nossa pré-modernidade eleitoral à máxima potência. Todos os seus atos na disputa eleitoral reavivam a tradição do consórcio entre poder privado rudimentar e um governo incivil e insubmisso à lei. Com tecnologia do século 21.


Andreas Schedler, especialista sobre autoritarismo eleitoral, descreve o "menu de manipulação" usado por autocratas. Entre outras coisas, eleições "justas e livres" precisam prevenir a intimidação do eleitor, a compra do voto e a tutelagem do processo. Além de proteger a capacidade de cidadãos conhecerem as alternativas.

O autocrata brasileiro corrompe cada um desses pilares da alternância democrática.

Primeiro, o Secretão deu ao governo ferramenta de compra de voto de parlamentares venais. Até da oposição. Assim conseguiu aprovar reforma constitucional extravagante no seu conteúdo e no seu procedimento (PEC Kamikaze). Violou princípios de integridade eleitoral e do processo legislativo. Com o Auxílio Brasil, distribui feijão a quem tenta sobreviver, mas só até dezembro. E distribui prata para quem tem poder de ajudar o governo.

O auxílio, justificado sob pretexto jurídico espúrio da "emergência", não serve para tirar ninguém da pobreza. Almeja que o pobre faminto sobreviva para votar. Não faz política pública, não constrói ponte para o desenvolvimento nem abre horizonte para que cada um escolha como viver. O miserável planeja, quando muito, onde buscar comida no dia seguinte. O governo lhe oferece uma fila da sopa. Depois de dezembro, nem isso.

Segundo, Bolsonaro promove ataque diuturno às urnas, ao TSE e ao STF. Deslegitima a competição que ele venceu no passado e pretende disputar nesse ano. Não tem prova nem convicção sobre qualquer fraude, apenas medo de perder e interesse de continuar onde está.

O assédio leva ao limite da resistência a governança eleitoral. O TSE, diante da marginalidade serial, sequer teve força e coragem de concluir inquérito que apura ataque às urnas. E prepara segurança de guerra para sobreviver, mais uma vez, ao 7 de setembro insuflado pelo candidato cuja elegibilidade segue de pé. O que dizer da ilicitude da reunião com embaixadores, onde avisou que eleição no Brasil não merece ser respeitada?

Terceiro, faz campanha que customiza desinformação e ódio em disparos massivos por via digital. E ainda financiado por recurso não sabido nem declarado. Passou impune em 2018, não tem razão para fazer diferente em 2022. Daí seu incômodo com as modestas medidas tomadas por Telegram e Whatsapp para mitigar a prática.

Bolsonaro nos empobreceu: derrubou PIB per capita de US$ 9150 para US$ 7500 e a renda média do brasileiro. Pobres pagam 2000% a mais de imposto de renda em razão da simples falta de correção da tabela do IR. Extinguiu programa alimentar, 33 milhões de pessoas passam fome. Pandemia e guerra não explicam a magnitude da tragédia, mostram economistas.

Bolsonaro nos embruteceu: não bastasse a cultivada indiferença às mortes da pandemia, multiplicadas por ostentatória omissão estatal, armou "maioria de bem" para lutar "contra o mal". O "bem" já está matando.

Bolsonaro achatou nossa liberdade: todos os índices globais de erosão democrática destacam o Brasil no topo. Sem exceção. Mas o liberticídio continua a ser defendido, veja só, em nome da liberdade. Não exatamente a sua liberdade, eleitor.

O projeto de empobrecimento, embrutecimento e autocratização seria, para muita gente, recompensado com o fim da corrupção. Como se corrupção diminuísse com aumento do PIBB, o Produto Interno da Brutalidade Brasileira.

A corrupção está aí, vitaminada, remoçada. Contamina essas eleições como nenhuma outra desde 88. Bolsonaro empenha orçamento contra a democracia e o autogoverno coletivo. Depende do dinheiro, da força bruta e da pobreza esse novo coronelismo. Como o velho.

O papel das Forças Armadas na corrupção bolsonarista? Terá capítulo só seu.

Campanha manchada de sangue, eivada de crimes

Que vergonha! Jair Bolsonaro cometeu (mais um) crime ao reunir na tarde de terça-feira, em Brasilia, embaixadores de vários países (nomes não foram divulgados) para tentar emporcalhar mais uma vez a imagem do Brasil e do nosso sistema eleitoral. Usou dependências oficiais da Presidência da República para investir contra as urnas eletrônicas, Lula, os ministros do STF, e sabe-se lá quem mais.

Agenda inútil. Tiro no pé. Instruídos a não dar munição a um presidente escandalosamente mal visto mundo afora, os diplomatas fizeram silêncio constrangedor ao final dos insultos de Bolsonaro. Perverso, obviamente o sujeito não vai desistir. Insistirá na guerra insana contra as eleições de 2022.

Vejamos. Nos últimos dias, uma avalanche de números falsos, pesquisas distorcidas, cenários fabricados, invadiram as redes sociais, sobremaneira entre bolsonaristas. Enquanto Lula se mantém à frente de Bolsonaro, com reais chances de chegar ao segundo turno – podendo vencer no primeiro – adeptos do presidente praticaram o que de melhor sabem fazer: espalhar mentiras.

Reportagem desse domingo,17, em O Globo, assinada por Marlen Couto e Jessica Marques, mostrou casos de textos falsos atribuídos a institutos de pesquisa dando vitória esmagadora a Bolsonaro. Segundo a noticia falsa atribuída ao Paraná Pesquisas, o negacionista ganharia com 70% em vários estados brasileiros. Não há um estado que dê tal proporção a ele.


O próprio instituto desmentiu a matéria. A pedido do Globo, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas verificou os dados e pontuou que, entre 1º de junho e 5 de julho, a mensagem sobre a vitória de Bolsonaro no primeiro turno apareceu 35 vezes em 25 grupos de WhatsApp, em um universo de 172 grupos públicos monitorados.

A mentira está ali para mexer com a emoção das pessoas. Ouvido pelo Globo, o Diretor de análises públicas da FGV, Marco Aurélio Ruediger chama a atenção para esse componente. “Não é para fazer o eleitor pensar, é para que ele pegue essa informação falsa, acredite nela e compartilhe com os amigos”, diz Ruediger.

Bolsonaristas são experts em produzir mentiras. O exemplo vem de cima. Nunca se viu um presidente que mente tanto quanto Bolsonaro. Quando não mente, decreta sigilo de 100 anos para suas estrepolias, ou para as diabruras dos filhotes, caso Flavio e a Receita Federal. Só não conseguiu esconder o gasto extraordinário no cartão corporativo da Presidência, em dois anos: $ 26 milhões, ou 37 mil cestas básicas a $ 700.

Bolsonaristas são violentos. Na campanha, em 2018, o fulano exibiu uma arma num palanque, conclamando a população a “fuzilar a petralhada”. Foi no Acre. Houve morte em 2018. Assassinado por motivos políticos, Moa do Katendê foi esfaqueado porque não gostava de Bolsonaro. Foi na Bahia.

Em 2022, o ódio disseminado pelo Presidente fez a primeira vítima: no Paraná. O tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, Marcelo Aloizio de Arruda, foi assassinado pelo policial bolsonarista José da Rocha Garanho. O assassino gritou: “aqui, é Bolsonaro”, e matou Marcelo, a sangue frio, em sua festa de aniversário. Ontem, foi encontrado o corpo de Claudinei Coco Esquarcini, 44. Tratado como suicidio, muito provavelmente conectado ao crime de Foz. Diretor da associação onde ocorreu a festa de Marcelo, Claudinei seria o encarregado pelo sistema de câmeras de vigilância no local do crime.

Diante de tanta violência e fraudes, a facada de 2018, até hoje mal explicada, mal investigada, terá sido apenas uma sandice. Teorias conspiratórias à esquerda e à direita questionam a facada da qual Bolsonaro tirou muito proveito. Tira até hoje. Nada impedirá que explore mais ainda em 2022. Este ano, foi internado duas vezes, alegando consequencias da facada. Eram camarões não mastigados. Aff. O caso foi reaberto em novembro. Aguardemos.

Nesse cenário de filme de terror, trilher de suspense e dor, vamos as urnas daqui a 76 dias. Nada será fácil. Lidamos com um sujeito maquiavélico, que tem a caneta e as chaves do cofre (distribuiu bilhões aos seus parlamentares de estimação, a começar por Arthur Lira). Nos atormenta, é natural, o medo diante de tantos crimes, manobras, mentiras, distribuição de dinheiro publico para compra de votos.

Haja esperança. Haja coragem. Falta pouco.

Pensamento de (todo) Dia

 


Ser militar hoje

Se compararmos os temas guerra e paz na literatura universal, a guerra é o assunto favorito. Cito apenas três clássicos: A Arte da Guerra de Sun Tzu, clássico chinês de cinco mil anos. Servidão e Grandeza Militares de Alfred de Vigny e ainda o Da Guerra de Carl von Clausewitz. Resta o consolo de que o filósofo chinês disse que o objetivo da guerra é a paz. E que se for possível ganhar uma guerra sem necessidade de matar nenhum soldado inimigo isso deve ser feito. Chego a me perguntar se Sun Tzu era mesmo um filósofo da guerra ou da paz. E para não concluir este parágrafo sem mencionar nem um livrinho sobre a paz, faço-o e recomendo O Homem e a Paz, um livro de bolso da Editora da FVG, RJ, 1981. Uma publicação d'O Correio da Unesco. O que tem de pequeno tem de bom. A capa é o quadro de Picasso Vive la paix.

Segundo César Benjamin. "Todas as sociedades delegam a um subgrupo de cidadãos a especialíssima prerrogativa de deter e manejar, com exclusividade, os meios de fazer a guerra. Trata-se, pois, de um subgrupo muito poderoso. Justamente por isso, ao lado da formação técnica, as sociedades investem pesadamente em sua formação intelectual e moral, para que ele compreenda bem a missão que tem e atue de forma harmoniosa com as demais instituições, praticando uma permanente auto limitação do uso de sua força.

Forças Armadas que perdem essas referências deixam de ser instituições nacionais. Degeneram em milícias.

Um dos valores mais caros à formação militar é o da lealdade. Sem ela, no mais alto grau, não se pode atuar de modo eficaz em uma guerra".

No meu tempo de soldado não era bem assim e entre nós, soldados, valia o lema: "Ordem maluca não se cumpre". E foi o que ocorreu quando Bolsonaro pediu ao Comandante da Aeronáutica para dar voos rasantes com um supersônico com o objetivo de quebrar as vidraças do Supremo Tribunal Federal. Fiquei curioso para saber o que pensam os três novos comandantes em relação às maluquices do Comandante Supremo.

Por falar nele já verbalizou que sua especialidade é matar, referindo-se à sua condição de militar.

Antigamente a guerra gozava de bom conceito. A guerra já foi exaltada como imperativo religioso (guerra santa) e patriótico e até como esporte de reis. Ser militar era algo enobrecedor, houve exércitos especiais que recrutavam seus guerreiros entre fugitivos, perseguidos ou mercenários. E ao se alistar no exército seu passado comprometedor era esquecido e o sujeito passava a gozar do prestígio de ser um militar. Durante muito tempo a guerra era apanágio de militar. Existia um código de honra militar, alvos civis eram respeitados. Com o advento dos armamentos modernos e especialmente os de destruição em massa, os civis entraram na dança da guerra. Cidades passaram a ser alvos de bombardeios militares.

A partir do século XIX o militarismo e a guerra começaram a perder prestígio. Isso se manifestou na nomenclatura. Ministério da Guerra virou Ministério da Defesa. Em instalações militares americanas lê-se a inscrição: "Our task is peace" (Nossa tarefa é a paz). Hoje um militar é uma espécie de terrorista fardado. Peguemos como exemplos duas guerras atuais as que ocorrem entre Israel e os palestinos da Faixa de Gaza e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Quando o exército israelense quer abater dirigentes do Hamas e eles se encontram reunidos dentro de um hospital ou uma escola. Israel bombardeia a escola ou o hospital sem se importar com as mortes de médicos, enfermeiras e doentes ou de professoras e alunos. O Hamas foi terrorista ao usar cidadãos como escudos e os militares israelenses foram igualmente terroristas ao abater cidadãos palestinos. O mesmo vale para a guerra da Ucrânia na qual cidadãos são usados como escudos e bombardeados como alvos militares. E o pior é que a intelligentsia militar assume essa barbaridade. O maior exemplo é a recusa dos americanos a pedir desculpas ao povo japonês por ter jogado bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki.

Resta saber como se comportarão nossas Forças Armadas. Como instituição nacional que são, prevalecerá sua formação intelectual e moral de lealdade ao povo brasileiro? Ou sucumbirá diante do golpismo bolsonarista?

Bestializados, assistimos aos preparativos

Em 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro da Fonseca, monarquista de raiz e amigo do Imperador Dom Pedro II, foi retirado de sua casa, no Rio, e levado adoentado até a Praça da Aclamação para subir em um cavalo e bradar: “Viva a República”.

O que o povo assistiu “bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”, segundo o republicano Aristides Lobo, era o golpe político-militar que pôs fim ao regime imperial. E assim nasceu a República.

Bestializados ou não, já assistimos muitas coisas desde então, sabendo ou ignorando o que de fato se passava. Os últimos 3 anos foram pródigos em fatos bestiais, o mais recente a pandemia que por omissão do governo matou mais de 675 mil pessoas.

Como foi possível contemplarmos, inertes, um governo dar passe livre à Covid-19, receitar drogas comprovadamente ineficazes para combatê-la enquanto pessoas morriam por falta de oxigênio em hospitais, e retardar o mais que pôde a compra de vacinas?

Outra vez indiferentes ou bestializados testemunhamos o presidente da República conspirar a céu aberto contra a democracia que tantas vezes já nos foi negada – a última delas, por tristes 21 anos ininterruptos. E em nome do que aconteceu?

Em nome de proteger a democracia ameaçada pelo fantasma do comunismo. Torturou-se, matou-se, suspendeu-se todo tipo de liberdade para salvar-se a democracia. Uma vez salva, novamente ela está em perigo. A Rússia de Vladimir Putin já não é comunista.

A China, que se diz comunista, é nosso maior parceiro comercial. Cuba de Fidel Castro e Che Guevara deixou de existir. Agora, é um delirante ex-capitão, expulso do Exército por ser um mau militar, que ameaça a democracia aqui restabelecida há apenas 37 anos.

Seria uma piada se não fosse verdade. Seria difícil de crer, mas não diante da estupefação das instituições que se limitam a confrontá-lo por meio de notas de repúdio. Cartas de amor são ridículas, disse o poeta Fernando Pessoa. Notas de repúdio, também.

Se antes era o controle remoto que nos tornava cativos de um aparelho onde imaginávamos ver o mundo, agora é o celular que se presta ao mesmo papel. A internet virou nossa trincheira. Por ela respondemos ao fogo inimigo que mata de morte morrida.

A 74 dias das eleições, a Justiça pouco fará para impedir a escalada do golpismo escancarado. Ela não sabe o que poderia ser pior: fazer o jogo do ex-capitão e dos seus asseclas punindo-os, ou deixar que vão em frente, torcendo para que sejam malsucedidos.

Do Congresso comprado com o Orçamento Secreto, nada se deve esperar. Das Forças Armadas cooptadas por Bolsonaro, se muito, que respeitem o resultado das urnas. No mais, que seja o que Deus quiser, embora ele não se meta nas coisas dos homens.

O golpe de Bolsonaro não virá: apenas continua

O golpe de Jair Bolsonaro está em curso pelo menos desde o início de 2020. Ficou explícito na reunião ministerial de 22 de abril daquele ano, como se viu no vídeo publicado por ordem do STF. O progresso golpista está evidente no fato de que um delinquente como Bolsonaro pode cometer crimes de responsabilidade em série e impunemente. Nem sequer é processado por isso.

Agora, gente de Brasília diz que pedidos de processos contra o mais recente vomitório antidemocrático não apenas vão dar em nada, bidu, como não é conveniente que deem em alguma coisa. No momento, segundo essa tese, seria como dar trela à conversa de que há uma conspiração, uma tentativa de cassar a candidatura de Bolsonaro, um temor real e declarado do elemento que ocupa a cadeira de presidente da República.

Isto é, no fim das contas, melhor deixar quieto, em uma espécie de resignação tática.

No entanto, assim, a campanha golpista progride, a situação política se degrada e o caminho fica aberto para a próxima tentativa de arruinar a democracia. Tudo se passa como se, não havendo propriamente institucionalização do golpe (uma ordem autoritária formalizada), a ordem democrática não se desvanecesse. Mas se desvanece. Bolsonaro, ao menos até agora, opera por meio da desativação das instituições da democracia, de Estado etc.

A Procuradoria-Geral da República não existe para os fins a que se destina. A Polícia Federal foi desarticulada. Com outros objetivos imediatos, a Saúde, a Educação, o Ibama, a Funai, a Receita, o Coaf ou o Itamaraty fossem lobotomizados ou transformados em órgãos de propaganda.

O Congresso se tornou um instrumento de partido, no sentido amplo, do centrão. Sim, é óbvio que maiorias governistas votam com o governo. Mas o Congresso sob a regência do centrão-bolsonarismo se tornou um instrumento de desmonte ou apropriação do Estado, do vale-tudo, da avacalhação legal, do regimento legislativo à Constituição.

Para se manter no cargo, Bolsonaro entregou à Câmara o que resta de aparência de governo, que, nas mãos de Arthur Lira (PP-AL) e outros cúmplices, é um meio cru de eternização no poder.

Se diz por aí que não haverá golpe no sentido estrito. Primeiro, porque as Forças Armadas não teriam interesse ou teriam receio de se apoderar de um país dividido ou não seriam mais adeptas de ditadura à moda antiga. Segundo, porque os próprios parlamentares não teriam interesse em desmoralizar as urnas que os levaram ao Congresso ou temem a perda de poderes em uma ditadura "tout court".

Suponha-se, por mero exercício otimista, que as coisas sejam simples assim. Bolsonaro não tem escrúpulo algum e prosseguirá em sua campanha golpista.

Caso seja capaz de algum cálculo racional, pode desistir de quarteladas ou de sublevações populares violentas caso esses ataques subversivos não tenham poder suficiente de dar a Bolsonaro o que ele quer. Mas a fedentina da chantagem, da ameaça, empesteia cada vez mais o ar.

Na última hora, Bolsonaro pode tentar trocar a ameaça de baderna por um acordão, com o Congresso, com o Supremo, com tudo. O delinquente e seus cúmplices generais sairiam impunes, anistiados, em retirada, para reorganizar tropas e voltar ao ataque assim que possível.

Os generais "legalistas" barganhariam a continuidade da boquinha rica e a tutela militar permaneceria, um pouco como ocorreu no início da dita Nova República, que estaria ainda mais morta nesse estado de sítio eternizado, sob a ameaça permanente da horda huna bolsonarista impune.

A originalidade de Bolsonaro

A obra de destruição presidida por Bolsonaro está quase completa, e falta apenas provocar a “convulsão social” – a caminho, que ninguém se iluda – por conta da provável derrota eleitoral. Essa obra se compõe da dissolução da institucionalidade e da formidável expansão do patrimonialismo, com suas velhas marcas de corrupção. Só teve dois aspectos originais.

Bolsonaro não foi muito criativo. O empenho em atacar a imprensa, por exemplo, é parte de um fenômeno mais amplo do desgaste da mídia profissional em seu papel tradicional como guardiã da veracidade objetiva dos fatos. Daí o destaque alcançado por fake news, e a presença desproporcional no debate público brasileiro de celebridades projetadas por redes sociais.


O atual presidente já encontrou o STF como uma instância política e não foi o iniciador do desequilíbrio entre os Poderes, um processo de longo curso. É discussão do tipo ovo ou a galinha determinar se o STF assumiu o presente protagonismo político por deliberada vontade de seus integrantes ou se ocupou o vazio deixado por outros Poderes (especialmente o Legislativo). Não importa quem tem razão, no embate aprofundou-se o enorme e destrutivo desarranjo institucional.

Bolsonaro também nada exibiu de original na sanha de demonização do adversário político, uma marca sobretudo petista no período pós-ditadura militar. Usou as mesmas ferramentas profissionais e os métodos de seus adversários, embora a belicosidade e a boçalidade bolsonaristas tenham “estilo” próprio. É um populista autoritário de feições convencionais, sem preocupação em manter coerência entre palavras e ações, ou cumprir promessas eleitorais.

Mas trouxe duas relevantes contribuições originais à obra destrutiva. A primeira foi o emporcalhamento da credibilidade das Forças Armadas. Conscientes disso ou não, ao emprestarem ao governo Bolsonaro o prestígio pacientemente reconquistado, os comandantes militares margearam o abismo da aventura política e danificaram a imagem da própria instituição. Não adianta reiterar que generais fardados ou de pijama, dentro ou fora do governo, são indivíduos falando em nome próprio, que não representam as Forças Armadas. O público não faz essa distinção.

A segunda “contribuição” foi o emporcalhamento da imagem externa do Brasil. Bolsonaro já trilhava esse caminho subordinando-se a Trump e nas posturas públicas em relação a meio ambiente, entre outras. Mas não há memória de um chefe de Estado que tivesse convocado ao palácio onde mora embaixadores do mundo inteiro para falar mal do próprio país. Bolsonaro garantiu lugar original na história.