quinta-feira, 14 de junho de 2018


O eterno Galvão

Quando a Seleção entrar em campo para a sua primeira partida no Mundial da Rússia, neste domingo, um homem estará lá mais uma vez: Galvão Bueno. Como acontece em toda Copa do Mundo – há 35 anos!

Com timbre sonoro de voz, ele vai narrar a partida e gritar "Olha o gol” de vez em quando. Ele vai celebrar o seu queridinho, Neymar, o garoto-propaganda mais caro do Brasil. Mas Galvão não vai contribuir essencialmente para a compreensão do jogo.

Após o apito final, o jornalista de 67 anos ficará de pé na cabine de imprensa da TV Globo, acompanhado por dois comentaristas e um ex-jogador. Como sempre, será um evento tenso protagonizado por senhores idosos de terno, gravata e poses idênticas e cujas análises não vão muito além de "o jogo foi bom ou ruim". Dezenas de vezes, repete-se o que o público já viu. A falta de conteúdo é dissimulada com piadinhas e frases melodramáticas como "Tite nos resgatou o orgulho de ser brasileiro".

A estética da emissão lembra o fim dos anos 1980, início dos anos 1990. Como esse, de qualquer maneira, muitos programas da televisão brasileira parecem como se o mundo tivesse parado há 30 anos. O melhor exemplo ao lado de Galvão é o sexista Domingão do Faustão.

Por isso, entendo que muitos brasileiros estejam fartos desse tipo de cobertura. Querem um refresco. Um rosto novo, uma voz nova. Um (ou uma) repórter que saiba ler uma partida de futebol, que seja original e crítico/a.

Mas a esperança é inútil. Galvão Bueno é o resultado de uma concentração extrema de meios de comunicação, além de um Brasil refratário a tudo o que é novo e progressivo. É que Galvão ainda narra futebol por só uma única razão: ele não precisa temer a concorrência. Até perder um gol da Seleção não tem consequências para ele. Ele está lá porque sempre esteve.

Essa monopolização de discurso pode ser encontrada com frequência nos meios de comunicação brasileiros. São sempre as mesmas figuras conservadoras que querem explicar o mundo ao público, seja na televisão, no rádio ou nos jornais: Carlos Alberto Sardenberg, Merval Pereira, Miriam Leitão, Ricardo Boechat, Reinaldo Azevedo, Ricardo Noblat. Vozes jovens têm pouca chance. Se não houvesse a internet, deveria-se falar de uma oligarquia da informação.

A concentração de poder nas mãos de poucos também é característica da política brasileira, onde, há décadas, os mesmos senhores se refestelam nos mais diferentes postos. Alguns políticos aproveitam para abrigar a família inteira na profissão, clãs familiares e círculos de amigos dominam Estados inteiros. E, naturalmente, fazem de tudo para manter o poder. Por isso, é claro que novatos ficam desencorajados ou têm dificuldade extrema de conquistar espaço.

Quando uma figura independente consegue a proeza de conquistar uma posição de destaque na política, pode acabar como Marielle Franco, assassinada há exatos três meses e cuja morte ainda não foi esclarecida. O prognóstico não é exagerado. Dois exemplos: a jovem vereadora Talíria Petrone (Psol), de Niterói, já foi alvo de ameaças de morte: "Merece uma 9 mm na nuca."

E, na Rocinha, recentemente um policial de UPP falou em plena rua para uma amiga minha de 24 anos que luta pelos direitos de jovens negros na área: "Você é gostosa demais pra virar outra Marielle".

São exemplos extremos, mas ilustram como é impedido o progresso no Brasil. Enquanto outras sociedades promovem jovens talentos, os já privilegiados desse país se agarram a seus postos até caírem. Políticos e muitos jornalistas consagrados se acham insubstituíveis e atuam como se fossem semideuses. Por não terem concorrência, assentaram na mediocridade e ficam se repetindo dia após dia. Ideias novas e originais? Que nada.

Assim, os brasileiros terão que suportar o eterno Galvão Bueno durante mais essa Copa. É o preço que o país paga por sua meritocracia – que não estimula novos talentos nem contribui para a diversidade. Ao contrário, apenas protege um establishment que mantém o Brasil preso no seu próprio passado.

Philipp Lichterbeck

Não culpe o eleitor

Aquilo que institutos de pesquisa chamam de indecisão é na verdade resultado da ausência de elementos objetivos para o eleitor fazer a sua escolha. A ele ainda não foram oferecidas as condições para apontar em quem vai votar para presidente. Os partidos não apresentaram programas, e os pré-candidatos tampouco tiveram chance de mostrar o que pretendem fazer. Até agora, tudo de que o eleitor dispõe são biografias, discursos e entrevistas recortados por aí. Não são suficientes. O eleitor só decidirá depois de reunidos os dados necessários.

O que se pode dizer a esta altura é que a história do Brasil prova que o eleitor é muito mais cuidadoso e racional quando vota em candidato a cargo executivo. Quando decide quem vai cuidar da sua rua, da sua cidade, do seu estado ou do país, ele tende a ser mais racional e caprichoso no seu voto. Desde Collor, talvez com essa única exceção que confirma a regra, os presidentes eleitos do Brasil foram melhores do que os seus Congressos.

Não há dúvida de que Fernando Henrique Cardoso era melhor que os deputados e senadores que ocuparam as cadeiras do Congresso durante seus dois mandatos. Pode-se afirmar a mesma coisa de Lula e até de Dilma, apesar de o primeiro estar preso por corrupção e lavagem de dinheiro e a segunda ter sido afastada do cargo por crime na execução do orçamento, as famosas pedaladas fiscais.


Mas você pode dizer que esta regra para valer precisa ser comprovada nos estados e nos municípios. Se você prestar atenção, verá que ela se comprova. Mesmo no Rio. Alguém discorda de que Cabral, antes de começar a meter a mão no cofre público, era melhor que a Assembleia Legislativa, a famosa Alerj? Acho que não.

Embora cada eleição seja uma nova corrida, o que o eleitor quer em todas é ver os seus problemas resolvidos ou pelo menos encaminhados. O eleitor brasileiro sabe que a eleição presidencial de outubro é a mais importante do país desde a redemocratização. Sabe que o que está em jogo é o futuro do país, da coletividade, o seu próprio futuro. O eleitor é pragmático. Não é por outra razão que muitos deixam para decidir apenas na última hora.

Entre os pré-candidatos a presidente já lançados, há os que atendem às demandas do eleitor e outros que jamais as alcançarão. Aquele que promete colocar bandido na cadeia e acabar com a corrupção na porrada não cola. O eleitor sabe que quem prende bandido e corrupto é juiz, não presidente. Ele reconhece, de longe, quem está mentindo, quem está enrolando, quem está jogando para a plateia. E sabe também até onde um candidato pode ir. Poucos ainda caem em promessas mirabolantes.

As pesquisas feitas hoje, mesmo as sérias, não servem de balizamento para se dizer como votará o eleitor. Apesar de as necessidades do eleitor serem bastante conhecidas, para atendê-las, não basta prometer e jurar. Tem que explicar como vai fazer, quanto vai custar, de onde vai tirar o dinheiro e quem vai pagar a conta. O custo da greve dos caminhoneiros foi muito educativo neste aspecto.

Na hora de votar, o brasileiro precisa que os candidatos a presidente mostrem o que farão com a economia para que o país volte a crescer e gerar empregos; como pretendem resolver o problema da Previdência; como vão controlar os gastos públicos e onde vão fazer cortes; de que maneira tratarão os impostos altíssimos que paga; e que respostas terão para a segurança, a saúde e a educação.

O eleitor, portanto, não é o problema. Atender às suas demandas é objetivo e obrigação de quem entra na vida pública. Sobretudo dos que querem presidir o país. São muitos os candidatos, o Brasil é uma fábrica de fazer partidos e candidatos. Mas são poucas as opções do eleitor. Variando entre a esquerda e a direita, há no máximo três ou quatro alternativas de orientação política disponíveis.

A lista de candidatos é desanimadora. Nas águas turvas da extrema-direita está o PSL (Bolsonaro). No Centro, PSDB (Alckmin), Podemos (Alvaro Dias) e PMDB (Meirelles). No Centro há variações para a esquerda ou para a direita. O PT (o poste de Lula) é centro-esquerda, assim como o PDT (Ciro) e a Rede (Marina). E há inúmeros nanicos na centro-direita. À esquerda estão os pequenos de sempre, PCdoB (Manuela) e PSOL (Boulos). Além dos partidos novos, que ainda terão de mostrar a que vieram, há os irrelevantes de sempre. O novo presidente do Brasil sairá dessa lista, é pegar ou largar.
Ascânio Seleme

Um trago de palavras sobre a bebida

Elizeth Cardoso e Elza Soares tornaram célebres os versos compostos por João do Violão: “Eu bebo, sim, estou vivendo,/tem gente que não bebe,/ está morrendo”.

Mas surge terrível erro de lógica nos próximos versos: “Tem gente que já tá com o pé na cova/ Não bebeu e isso prova/ Que e bebida não faz mal”. É insensata a relação entre morrer e se abster de bebida.

Todos morrem, os que bebem e os que não bebem. O excesso de bebida ─ alcoólica, naturalmente ─ resulta numa doença terrível, a cirrose, palavra vinda do francês cirrhose, vocábulo criado em 1805 pelo médico francês René Laënnec (1781-1826), a partir dos compostos gregos kirro, amarelo, e o sufixo ose, provavelmente radicado também no grego nose, doença. O doutor, comparando um fígado sadio com o de um alcoólatra, registrou a cor amarela das granulações no do bebum.

O famoso humorista gaúcho Aparício Torelly, que adotou o título nobiliárquico de Barão de Itararé, para fazer blague em cima de uma batalha que não houve, na localidade que lhe inspirou o baronato, descobriu o inverso, sem fazer pesquisa nenhuma: ‘o fígado faz muito mal à bebida’.


Não usamos em Português o verbo equivalente ao Latim potare. Dizemos da água boa para beber que é potável, do Latim potare, beber, suplantado pelo Latim bibere, que deu beber em português.

Outra palavra abandonada foi equus, que cedeu a caballus, cavalo. Mas o radical permaneceu em equitação, o exercício, a técnica ou a arte de andar a cavalo. E, claro, transformou-se num esporte em que homem e animal devem ter entendimento que raia a perfeição.

Paradoxalmente, cavalo veio a designar o bruto, a pessoa sem modos, rude. Uma injustiça ao animal, o que, aliás, ocorre também com o burro, invocado para ofender o estúpido, o que não tem inteligência. Ah, se os ofendidos tivessem ao menos um pouco da sabedoria do burro!

O escritor João Guimarães Rosa deixou patente sua admiração por bois, cavalos e burros, especialmente pelo pequeno animal que ele celebrizou no conto O burrinho pedrês. Na história, ameaçado de morte, um bêbado chamado Badu, montado no animal, chega são e salvo ao outro lado de um rio cheio. Oito vaqueiros morrem, mas Francolim também é salvo de modo insólito: agarra-se ao rabo de Sete-de-Ouros, o burrinho pedrês.

Também a palavra morte, radicada no latim em mors, prevaleceu sobre letum, que predominava no latim clássico para indicar o falecimento. No português, letum permaneceu na raiz de palavras como letal, letífico, letífero.

E falecer veio a consolidar-se como sinônimo de morrer, quando originalmente indicava faltar e também enganar, do latim fallescere. Está ainda hoje presente em expressões como ‘se algum dia eu vier a faltar’, em que ‘faltar’ é eufemismo para morrer.

Já defunto, outra designação para morto, veio do latim defunctus, cujo significado é pronto. Também é um eufemismo. Foi criado pela Igreja, sempre cerimoniosa com os atos decisivos de nossa existência ─ nascimento, casamento, morte etc. Defunctus formou-se a partir de defungi, cumprir, acabar, terminar.

Ager, o campo cultivado, cujo genitivo é agris, está embutido em agrário, agrimensor, agricultura. Está na ordem do dia ─ aliás, há mais de quatro séculos ─ a ‘reforma agrária’ que, como as palavras indicam, consiste em reformar, isto é, corrigir, retificar a posse agrária, a propriedade da terra.

Como se vê, faz séculos que as palavras viajam e fazem mudanças de significado. A balzaquiana tinha apenas 30 anos no século 19! Atualmente, com a mesma idade das célebres personagens de Balzac, a mulher é mocinha ainda.

A balzaquiana de hoje tem pelo menos 50 anos. Talvez o mundo beba mais hoje do que no tempo de Balzac, mas uma coisa é certa: nenhum dos grandes facínoras da Humanidade estava bêbado quando deflagrou malefícios duradouros, que resultaram em abomináveis genocídios.

Estavam todos sóbrios e sabiam muito bem o que faziam.

Deonísio da Silva 

Brasil de hoje


Não é a corrupção

A ampla maioria da população brasileira apoiou a greve dos caminhoneiros. Ainda apoia. Pesquisas mostram isso, assim como a minha própria observação como apresentador do programa CBN Brasil. As manifestações dos ouvintes por e-mail e whatsapp indicaram clara tendência: os caminhoneiros tinham o direito de fazer o que fizeram.

Há razões para estranhar: como as pessoas podem endossar um movimento que lhes causou tantos prejuízos? Será que não se importam em ficar sem gasolina ou pagar o dobro pelo quilo de batata?

Não é simples assim. As pessoas ficaram de bronca, reclamaram intensamente da falta e do preço das coisas, mas, esse é o ponto, achavam que não era culpa dos caminhoneiros. De quem, então? Fácil: do governo, dos políticos em geral e dos corruptos em particular.

Tanto é assim que as pessoas não gostaram nada das soluções propostas pelo governo Temer, especialmente o subsídio incluído no preço do diesel. Muitos entenderam que se tratava de dinheiro público, que vinha da arrecadação dos impostos pagos por todos, mas achavam que o governo não devia fazer isso.

Resumindo: por culpa do governo, os caminhoneiros, assim como a maior parte da população, passavam por momentos de dificuldade. A paralisação, portanto, era uma arma legítima. Do mesmo modo, os sacrifícios impostos às pessoas eram consequência da incapacidade do governo em resolver a situação. Logo, querer aumentar imposto para pagar a conta dos caminhoneiros não fazia o menor sentido.

Mas se não há subsídio grátis, como pagar?

Fácil, respondiam nossos ouvintes: cortando salários e outras vantagens de políticos e, sobretudo, cobrando o dinheiro da corrupção.

Mudemos de assunto, para a previdência. Pesquisa nacional do instituto Ipsos, patrocinada pela Federação Nacional de Previdência Privada e Vida, Fenaprevi, mostrou que a metade dos entrevistados (51%) entende que nosso regime de aposentadoria é sustentável. Apenas 28% acham que modelo exige reforma e 21% não têm opinião.

Por outro lado, também uma metade dos brasileiros (49%) acha que o assunto deve ser tratado pelo próximo presidente. E uma maioria de 43% afirma que será necessário fazer uma reforma no futuro, contra 38% para os quais o modelo não requer mudanças nem hoje nem mais à frente.

Com reforma ou sem reforma, a maioria espera se aposentar antes dos 65 anos e afirma que será totalmente dependente do sistema público. A maioria não sabe qual será o valor do benefício, mas desconfia que não será suficiente. Nada menos que 60% acham necessária uma previdência complementar.

Não que a façam – 63% dizem que não fazem investimentos para o futuro.

Resumindo: o sistema é sustentável, a aposentadoria está garantida, mas não será suficiente para uma vida confortável. Seria bom ter uma previdência complementar, se houvesse dinheiro para poupar.

E se houver algum desequilíbrio nas contas da previdência pública? Quem paga? As próprias pessoas, trabalhando mais e se aposentando mais tarde? A resposta é não. Aumentar o valor da contribuição? Negativo. Diminuir o valor da aposentadoria? Também não.

Então não tem problema algum?

Tem – e o leitor já adivinhou: a corrupção. Nada menos dos que 75% dos entrevistados pela Fenaprevi acham que o maior problema do sistema é a roubalheira e o desvio de verbas. E, de novo, cobrem a conta dos políticos.

Olhando os fatos, sem ideologias, é evidente que há um enorme problema na previdência, tanto a do INSS quanto na dos servidores públicos. Aliás, dois desequilíbrios. Primeiro, o dinheiro arrecadado com as contribuições não é suficiente para pagar as aposentadorias. Há um déficit crescente, em ritmo vertiginoso. Segundo, o gasto previdenciário total alcança 13% do PIB, nível de países ricos e velhos.

Voltando aos caminhoneiros, está claro que as suas reivindicações, sem exceção, pediam subsídios, dinheiro público e preços favoráveis tabelados. Ou seja, estavam mandando a conta para algum outro lado da sociedade. Por isso mesmo, não está dando certo.

Tudo considerado, a situação do país é ainda mais complicada do que se sabia. Não apenas há uma crise nas contas públicas e numa economia travada por mecanismos errados. Há um déficit de percepção. Há muita corrupção no Brasil, os políticos estão fazendo de tudo para serem desprezados, mas não se vai pagar as contas simplesmente botando todos para fora , ou melhor, na cadeia.

Vai daí que ou elegemos um presidente que consiga convencer a população sobre a necessidade de reformas – e diga claramente quais reformas, com o fizeram Macri e Macron – ou não haverá políticos suficientes para culpar e prender.

Quando a Viena da valsa sambou

Viena foi centro da mitologia moderna. É preciso lembrar que Sigmund Freud, o inventor de uma nova concepção humana ali floresceu? Ou basta falar da valsa que pela primeira vez permitiu que homens e mulheres pudessem dançar se abraçando frontalmente, olho no olho, num ritmo que um observador da época chamava preconceituosamente de “africano” — hipnótico, sensual e embriagador. A valsa fabricou Viena tal como o samba inventou um Brasil. Esse mesmo Brasil que roubou o futebol dos seus “colonizadores” ingleses e, no domingo que passou, deu o baile no time austríaco em plena Viena, mais uma vez desbancando as teses de uma velha teoria colonialista. Essa sim, tão vira-lata quanto os seus inventores. Foi quando a Viena da valsa sambou.
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René Descartes inventou o “penso, logo existo”. Freud desmantelou o axioma, afirmando o oposto: quanto mais penso, menos existo; quanto mais controlo minha consciência reprimindo o profundamente desejado, mais faço o indesejado. Quem nos controla é (também) e sobretudo o (in) consciente. A ele pertence esse Brasil oculto que o futebol revela em toda a sua plenitude, talento e orgulhosa honestidade. Tudo o que vergonhosamente tem estado ausente de um mundo público dominado por administradores desonestos — “políticos” que nos levam ao jogo interminável da derrota. Justamente os que afirmam ser o futebol (e não o populismo autoritário e mendaz) o ópio do povo...
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Freud não inventou o reino do esporte e do futebol. Mas asseguro que o esporte é um mecanismo mais do que adequado para viver as agruras do mundo. Nele, perdemos honradamente e vencemos sem arrogância. Pela mesma pauta, podemos pensar em todos os condicionais sem sermos filósofos. Para mim, não há melhor educador do “princípio de realidade” do que o futebol que nos ensina com a frustração, com a compulsão, com as doenças e com a derrota.
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Por que o mundo não é como queremos? Ora, diz a cartomante, porque temos a capacidade de pensar alternativas. Quem pensa em ganhar, pensa em perder, embora a consciência, como o coração, possa ter razões que, como ensinou Pascal, ele não conheça. O desejo do triunfo ocorre com o jogo. Ele é oposto à sociabilidade brasileira corrente do “mais ou menos”. No esporte e na Copa, há o tudo ou nada.

Deus pode ser ou não ser brasileiro...
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Ao refletir sobre o futebol, assinalei essa ausência do “mais ou menos” que exige um novo horizonte na vitória ou derrota. Como o melhor professor de democracia do Brasil, o futebol obriga ao desempenho — a resultados. E, pior que isso, ele tem como premissa uma igualdade absoluta. No futebol — ao contrário da política — sabemos de tudo, menos do resultado. Ademais nele não cabem os triunfos eternos. No Brasil, os ladrões e os ricos jamais perdem; no futebol, os marginalizados viram, por conta exclusiva do seu talento, reis e milionários.

O interesse pelo futebol corre em paralelo à busca pela igualdade como um valor num sistema profundamente desigual. É isso que proporciona a experiência de igualdade, de mobilidade, de vitória e, hoje em dia, de transparência junto do resgate de uma honra coletiva aviltada e perversamente roubada por quem tinha como dever preservá-la.

O populismo e o messianismo negam a esfera do esporte que harmoniza carisma, patrimonialismo e um conjunto de regras que valem para todos, coagindo dirigentes, jogadores, árbitros, comentaristas e torcedores.
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Um mesmo conjunto de regras produz resultado diversos. Ocorrendo em tempos e espaços demarcados, o esporte abre uma trégua entre países e pessoas ricas ou pobres, fracas ou poderosas; ao mesmo tempo em que concilia o jogador excepcional com o seu time. Há um confronto consciente de uma equipe contra outra; mas há também o confronto inconsciente de ambas as equipes com as circunstâncias que elas criam durante a partida.

E assim vai o futebol criando eventos que se transformam em estruturas e estruturas que engendram eventos e ciclos cuja determinação é impossível fora do generoso eixo do “destino”, e do dualismo “sorte/azar”. De qualquer forma, prefiro mil vezes os gastos com uma Copa e uma Olimpíada do que com uma guerra ou roubalheira política como tem sido o caso do Brasil.
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Quebramos a invencibilidade dos austríacos que ganharam da Alemanha. Ambos falantes de uma língua que muitos acham difícil. Tão complicada que só os mais inteligentes a aprendiam. Vejam até onde ia a nossa autodepreciação e, pior que isso, a nossa burrice.
Roberto DaMatta 

Paisagem brasileira

Camocim (CE)

Por que o Brasil ainda não conseguiu erradicar o trabalho infantil

Lugar de criança é na escola. Infelizmente, tal frase ainda precisa ser repetida com frequência no Brasil. A cultura popular, sobretudo nas áreas rurais, de que certos tipos de trabalho ajudam na formação das crianças é um dos fatores que contribuem para que o país ainda esteja longe de erradicar o trabalho infantil. Mas definitivamente não é o único.

A ele se somam fatores socieconômicos e a falta de uma legislação específica que penalize criminalmente empresários que empregam crianças. A Constituição brasileira permite o trabalho, em geral, a partir dos 16 anos de idade, e a partir dos 14 anos somente na condição de aprendiz.

O levantamento mais recente sobre o tema é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2016, segundo a qual o país tem cerca de 1 milhão de crianças de cinco a 15 anos de idade em situação de trabalho infantil, não permitida pela legislação. Na Pnad anterior, de 2015, o número era de 2,4 milhões.


Para o Ministério Público do Trabalho (MPT), a aparente queda milagrosa do número de crianças afetadas, no intervalo de um ano, foi resultado de uma mudança na metodologia de pesquisa. A Pnad passou a desconsiderar produção familiar como trabalho, entre outras alterações.

Além disso, especialistas apontam que apenas levantamentos mais abrangentes, como o Censo, podem dar um panorama preciso da situação do trabalho infantil no Brasil. No último, de 2010, pesquisadores apontaram que mais de 3,4 milhões de crianças e jovens de dez a 17 anos de idade trabalhavam no país.

"No Brasil ainda persiste uma mentalidade de que é melhor uma criança trabalhando do que roubando. É errado, criança precisa ser protegida e ter seu papel respeitado. Criança não pode trabalhar para a sua subsistência, isso o Estado precisa garantir", afirma Patrícia Mello Sanfelice, procuradora do Trabalho e coordenadora Nacional do Programa da Infância e Juventude do MPT.

A procuradora reforça que há uma subnotificação de casos de trabalho infantil no Brasil, ou seja, muitos hesitam em denunciar. "Há uma cultura de aceitação. Você não vê uma criança no sinal ou na praia e pensa em ligar para denunciar", diz.

Sanfelice vê um retrocesso nos avanços conquistados desde a década de 1990 no país, quando surgiram as primeiras leis que protegem a criança e o adolescente.

Pesquisas reforçam o cenário pouco animador. De acordo com os observatórios do Trabalho Escravo e Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, de 2003 a 2017, foram resgatadas 897 crianças e adolescentes em situação análoga à escravidão. Entre 2012 e 2017, 15.675 menores de 18 anos foram vítimas de acidentes de trabalho.

Neste ano, as 24 procuradorias Regionais do Trabalho ajuizaram 83 ações sobre trabalho infantil no país. Se continuar nesse ritmo, o MPT vai terminar o ano com mais de 160 processos, número maior que os 137 registrados em 2017. O resultado também representaria o primeiro aumento no histórico de ações trabalhistas sobre o assunto envolvendo desde 2014, o que, segundo Sanfelice, é algo negativo.

Desde que assumiu o cargo, em meados de 2016, o presidente Michel Temer fez pelo menos dois grandes cortes no principal programa social do governo, o Bolsa Família, retirando quase 1 milhão de famílias da lista de beneficiados. Segundo especialistas, programas como esse fazem com que menos famílias tenham que recorrer ao trabalho infantil.

"Os casos de trabalho puramente por sobrevivência diminuíram nos últimos anos, principalmente por causa da atuação de programas sociais como o Bolsa Família", reconhece Mariana Neris, diretora do Departamento de Proteção Social Especial da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social.

Ela reitera, no entanto, que o principal vilão do combate ao problema é a cultura popular de que criança deve trabalhar. "Informação e mobilização estão entre nosso principais eixos de atuação, justamente para acabar com esse conceito de que a criança deve trabalhar. Isso concorre com atividades que deveriam ser próprias da crianças, como educação e lazer", diz.

Ao contrário de Sanfelice, Neris aponta avanços no combate ao trabalho infantil no país nas últimas décadas. "Há uma evolução das ações contra o trabalho infantil no Brasil há pelo menos 20 anos. "Desde 1996, mais de 4 milhões de crianças foram retiradas da situação de trabalho infantil no Brasil", afirma.

"Isso é [o resultado de] um esforço de várias instituições e Poderes. A meta ambiciosa que foi acordada com diversos setores é de erradicação do trabalho infantil até 2025."

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Desinteresse fatal

Ouvi a vida inteira uma frase sobre a política no Brasil, especialmente em época de Copa do Mundo: “Se as pessoas se interessassem menos por futebol, as coisas seriam diferentes”. Pois bem, pela primeira vez desde que existem pesquisas de opinião a maioria da população no Brasil diz que nem sequer se interessa pelo maior evento esportivo do planeta. Parece razoável supor que as coisas tenham mudado na política brasileira. Em qual direção?

Sou da geração que entrou na universidade em 1971 e que viveu uma situação quase esquizofrênica: como torcer para um time tão maravilhoso como o de 1970 se a paixão pelo futebol era vista por nós, estudantes engajados em política, como um alicerce do regime militar? Tínhamos a ideia, por sinal tão arraigada sobretudo nos países comunistas, que a paixão pelo esporte cria identificação com o regime político (a ponto de lhe conferir legitimidade). Portanto, vitórias ou derrotas influenciariam diretamente disputas políticas. Como eleições, por exemplo.

Demorou para os comunistas entenderem que medalhas olímpicas (só a Hungria comunista chegou perto de conquistar um mundial de futebol da Fifa – alguns dizem que foi a derrota na final de 1954 que impulsionou a revolução de 1956, mas não há provas...) não salvariam seus regimes. Assim como demorou para nós entendermos aqui no Brasil que o fato do nosso time levantar o caneco não garante ou não condena candidato algum. FHC e Lula que o digam. Então, como é que o futebol mexe com a política?

Os economistas mencionam frequentemente o “feel good factor”, segundo o qual a percepção por parte de consumidores da situação econômica ao seu redor, mais irracional do que qualquer outra coisa, condiciona de alguma maneira comportamentos políticos. Ganhar uma Copa faz esquecer desemprego, por exemplo? Ou inflação? Acredito que não. Acho que não é tanto a vitória ou derrota nos jogos em si que nos diz alguma coisa sobre o “clima” político mas, sim, a forma como nossa sociedade evoluiu na dedicação a esse jogo.

Neste sentido, é possível detectar grosso modo uma transformação que mantém paralelos com o que está acontecendo na política. Torcer pela seleção em época de Mundial era um acontecimento compartilhado. Havia uma espécie de solidariedade em pintar as calçadas, as caras, decorar as janelas – um “fervor” que correspondia (embora totalmente fútil, admito) a um tipo de “esperança”.

Onde vejo hoje uma correlação entre futebol e a situação política é na ausência de “heróis” (no caso do PT, o “herói” Lula tem mais a ver com a veneração com que seitas tratam seus guias). Depois de muitos anos na reportagem reluto em acolher teses de causa/efeito mecânicas, por isso não consigo afirmar que o desânimo com a política explica em parte o desinteresse pelo futebol (onde antes era tão vibrante) e vice versa. Mas não consigo ignorar que um é o espelho do outro.

Acho até mais fácil explicar o desinteresse pelo Mundial, que tem a ver com a própria forma como mudaram os hábitos de consumo de entretenimento, entre eles o esporte. Tecnologias digitais, disruptivas na sua essência, espalharam o espetáculo futebol, que continua presente, mas agora também on demand. No caso da política, é o próprio “espetáculo” que passou a ser visto como um jogo sujo no qual as pessoas nada tem a dizer, dominado por elementos (partidos e políticos) corruptos e distantes.

A diferença são as consequências. O desinteresse pelo mundial traz só nostalgia. Desinteresse pela política é fatal.

A crise atual se deve não à política, mas aos que se apropriaram dela

Naquela tarde, no início da greve dos caminhoneiros, ao deixar a recepção de moderno laboratório de análises clínicas, vieram-me à mente os dois Brasis nos quais vivemos – um equiparável ao Primeiro Mundo, responsável pela moderna tecnologia usada pelo laboratório; e o outro, que ocupa a maior parte de nosso território, mas não se enquadra no Terceiro Mundo. E concluí: a crise atual, pela qual passam milhões de brasileiros, tem explicação. Ela se deve não à indispensável política, mas aos maus políticos, que são os únicos responsáveis pela má gestão.

Deixei o laboratório a pé. Minha intenção era, pouco adiante, lá no alto da avenida Afonso Pena, próximo à praça da Bandeira, quase aos pés da serra do Curral, que nos contempla em instigante silêncio, estacionar meu carro ao lado do posto de gasolina que se localiza a dois quarteirões de minha casa. O frentista não me forneceu informação sobre a chegada de combustível naquele dia: “O caminhão – disse ele – pode chegar hoje à noite, até as 24h, amanhã ou qualquer outro dia. Vou dormir aqui, mas não lhe posso garantir nada”.

Embora ainda inseguro, retirei meu carro da garagem e me dirigi ao local mencionado, que antes estava completamente vazio. A operação durou 15 minutos, se tanto. Só que, quando lá cheguei, encontrei, e com idêntico objetivo, 12 ou mais veículos já estacionados. Estávamos realmente dispostos a enfrentar a noite e a madrugada. Nenhuma fila, por maior que viesse a se formar, nos faria voltar atrás.


Na enorme fila que logo se formou, comecei a refletir sobre meu país. Aqui vivi minha infância, minha juventude e aqui espero concluir em paz a maturidade. Chega – disse em voz alta só para mim – de corrupção! Nesse instante, ouvi alguém dizendo que não haveria gasolina naquele dia. Liguei o carro e fui para minha casa com medo.

Tenho medo, leitor, do que vem pela frente. A greve dos caminhoneiros foi apenas um aperitivo. A esperança que se acendeu na eleição indireta de Tancredo Neves e, depois, na promulgação da Constituição de 1988, mas, sobretudo, com os primeiros mandatos de Fernando Henrique e Lula, parece ter chegado ao fim. O povo está saturado das roubalheiras e da incompetência de seus representantes. Chega de mentiras! Mas não somos nós, afinal, que os elegemos e os colocamos na Presidência da República, no Congresso Nacional, nos governos estaduais, nas Assembleias legislativas, nas prefeituras, nas Câmaras de vereadores? Político não nasce em árvore.

Os veículos de comunicação (refiro-me aos jornais e às emissoras de rádio e televisão), em seus noticiários, nos passam a ideia, com realismo, do que poderá acontecer ao país se não fizermos reformas urgentes e profundas. As redes sociais estão inundadas de notícias, umas verdadeiras, outras falsas, mas, curiosamente, repletas de “gozações” sobre a desgraça do povo. Só nós fazemos piada com nossa própria desgraça. Ou isso é só despiste diante do que poderá acontecer?

Não nos iludamos, leitor: a crise não terminou. Os candidatos a presidente da República têm que pensar no país, não em seus egos. Têm que pensar em 210 milhões de brasileiros! A ausência de bons políticos e de boas ideias agrava a crise. A democracia está sob ameaça, e o atual governo, desmoralizado, não tem condições de acionar seus instrumentos de autodefesa. O remédio contra isso só virá com mais democracia e mais liberdade. A arma, leitor, para conquistá-lo, está no voto responsável de cada um de nós no próximo dia 7 de outubro.