terça-feira, 30 de agosto de 2016
O dia D de Dilma
Eu vos escrevo do passado. Hoje é o dia D de Dilma. Como terá sido o discurso de Dilma no Senado? Bem, fazer mea-culpa nem pensar. Eu a entendo. Ninguém sai na rua ou vai ao Senado para bater no peito e dizer: “Eu sou um (a) incompetente, eu sou responsável pela quebra do país!” Tudo bem, mas a autocrítica era um hábito recorrente durante aquele ex-socialismo que ainda viceja nas cabeças petistas. Lembro-me da hilariante autocrítica de um alto dirigente chinês durante a Revolução Cultural: “Eu sou um cão imperialista, eu sou o verme dos arrozais...”
E, como estou no domingo passado, me pergunto: como terá sido o discurso? Sem dúvida, Dilma falou com sinceridade total (não é ironia), falou de sua alma revolucionária.
O discurso de Dilma é para ela mesma. Para se convencer fundamente de que não cometeu erro algum. Vocês já viram. Eu imagino:
“Começo dizendo que minha consciência está em paz. Quando entrei em 2010, o Brasil estava ameaçado por ideologias reacionárias: a social-democracia, o neoliberalismo, mas eu restaurei o essencial: a luta contra o imperialismo norte-americano, contra a desnacionalização de nossas riquezas, contra essa sociedade de empresários irresponsáveis e também contra o lucro. Fiz o fundamental: coloquei o Estado no topo, no centro de tudo, pois de lá emana a verdade para essa sociedade de ignorantes, essa classe média reacionária, como bem acusou nossa filósofa. O Brasil é tão frágil que só um grande Estado provedor pode proteger as massas nas lutas sociais que elas nem sabem que estão travando; mas eu sei, porque nós somos a consciência do povo.
“Sou acusada de ter dilapidado as contas do país, rompendo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Rompi, sim. Pois eu tive orgulho de usar o Estado e seu tesouro acumulado para estimular o consumo tão ansiado pelos pobres-diabos, sim, mesmo que os cofres públicos tenham ficado vazios para investir. Populismo? Eu chamo de ‘catequese’, conquista de adeptos para o grande futuro que virá! Gasto público é vida! Eu não podia ficar aprisionada naquela leizinha de responsabilidade neoliberal que o FHC inventou. Fiz isso, sim, porque meus fins justificavam esse meio; o fim era garantir apoio para as próximas eleições do nosso PT, para ficarmos no poder desse país alienado até a chegada do futuro socialista.
“Eu fiz tudo certo. Distribuí cargos sem fim, dei verbas gordas para seus currais, nobres senadores. Fiz isso porque sei que, às vezes, é preciso praticar o mal para atingir o bem. Será que o Maquiavel disse isso?
Eu sabia de tudo, eu sabia que a compra da refinaria de Pasadena ia ser um rombo pavoroso, confesso, mas como conseguir dinheiro para minha reeleição sem propinas? Propinas de esquerda, é claro. Por isso, fiz vista grossa, sim, quando aquele Cerveró me entregou uma página solta, com uma piscadinha do olhinho vesgo.
“Tenho orgulho de tudo que fiz. Menti na campanha, dizendo que não ia ter comida no prato do povo, menti nos bilhões que arranquei dos bancos para esconder o déficit público. Mas foram mentiras que chamo de ‘corrupção revolucionária’. Ah, esse meu povo, tão ignorante, desvalido. A miséria me fazia feliz. Explico: denunciar a miséria era um alívio para minha consciência. Desculpem a emoção (chora), mas há uma pureza doce na miséria que me comove muito (lágrimas). Mas nós, do PT, somos os sujeitos da história e, apesar de vossa injustiça contra nós, vamos construir o paraíso social.
“Meus fins uniram o país. Sim, uni vocês até mesmo contra mim, porque confundiram minha sutileza ideológica com incompetência, acharam que eu errava, sem saber que meu acerto era no futuro. Nunca errei. Não me arrependo de nada. Houve corrupção? Sim, mas adstrita a alguns elementos desonestos que traíram nossa missão. Dizem que roubamos; não, a palavra não é essa – é apenas a ‘desapropriação’ de um tesouro comprometido com metas neoliberais... Isso é o que fizemos.
“É muito difícil desenvolver este país de merda, desculpem o termo. Por isso, temos de destruir o capitalismo por dentro, já que não dá mais pé uma revolução russa. Mesmo uma avacalhação é mais revolucionária – seria uma espécie de ‘esculhambação criativa’ para arrasar administrações de direita.
“Foi isso que fez nosso líder Chávez, assassinado pelos imperialistas que lhe injetaram câncer no corpo e, depois que ele virou passarinho, passaram a roubar até os alimentos do povo, botando a culpa em nossos irmãos bolivarianos.
“Nosso povo também não sabe se governar. Por isso, digo, democracia clássica como? Para nós, ‘democracia’ sempre foi uma estratégia para tomada do poder. E não era hipocrisia; era dialética histórica. Tínhamos de apoiar a democracia burguesa para depois fazer o centralismo democrático que tanto usou nosso grande irmão Stálin, injustiçado por aqueles dois fascistas Kruschev e Gorbachev.
“Eu sou inocente, pura, não tenho dinheiro na Suíça, e toda minha paixão lancinante pelo povo brasileiro foi confundida com desonestidade e incompetência. As massas ainda vão sentir a minha falta, debaixo de um governo neoliberal que só pensa em contabilidade.
“Vocês hoje me baniram, mas vão se arrepender no futuro, pois o Brasil nasceu torto e nunca será consertado, nem por Temer, nem por ninguém.
“Arrependei-vos, fariseus do templo, pois, como disse a querida Gleisi Hoffmann: esse Senado não tem moral para me julgar.
“Estou sofrendo um golpe. Sim, não adiantam rituais, votações; repito, sim, que é golpe tramado por essas instituições de direita, como o STF, o Congresso, o Ministério Público, a OAB, a Polícia Federal.
“Estou orgulhosa de mim. Como Getúlio, saio da Presidência para entrar na história. E, para terminar, cito o líder maoista João Pedro Stédile quando disse aos camponeses: ‘ Tenham filhos – eles conhecerão o socialismo!’ E eu acrescento: seus filhos vão respeitar minha imagem no futuro. Adeus!”.
Estou no passado, amigos leitores, mas deve ter sido algo mais ou menos assim. O que acham?
E, como estou no domingo passado, me pergunto: como terá sido o discurso? Sem dúvida, Dilma falou com sinceridade total (não é ironia), falou de sua alma revolucionária.
O discurso de Dilma é para ela mesma. Para se convencer fundamente de que não cometeu erro algum. Vocês já viram. Eu imagino:
“Começo dizendo que minha consciência está em paz. Quando entrei em 2010, o Brasil estava ameaçado por ideologias reacionárias: a social-democracia, o neoliberalismo, mas eu restaurei o essencial: a luta contra o imperialismo norte-americano, contra a desnacionalização de nossas riquezas, contra essa sociedade de empresários irresponsáveis e também contra o lucro. Fiz o fundamental: coloquei o Estado no topo, no centro de tudo, pois de lá emana a verdade para essa sociedade de ignorantes, essa classe média reacionária, como bem acusou nossa filósofa. O Brasil é tão frágil que só um grande Estado provedor pode proteger as massas nas lutas sociais que elas nem sabem que estão travando; mas eu sei, porque nós somos a consciência do povo.
“Eu fiz tudo certo. Distribuí cargos sem fim, dei verbas gordas para seus currais, nobres senadores. Fiz isso porque sei que, às vezes, é preciso praticar o mal para atingir o bem. Será que o Maquiavel disse isso?
Eu sabia de tudo, eu sabia que a compra da refinaria de Pasadena ia ser um rombo pavoroso, confesso, mas como conseguir dinheiro para minha reeleição sem propinas? Propinas de esquerda, é claro. Por isso, fiz vista grossa, sim, quando aquele Cerveró me entregou uma página solta, com uma piscadinha do olhinho vesgo.
“Tenho orgulho de tudo que fiz. Menti na campanha, dizendo que não ia ter comida no prato do povo, menti nos bilhões que arranquei dos bancos para esconder o déficit público. Mas foram mentiras que chamo de ‘corrupção revolucionária’. Ah, esse meu povo, tão ignorante, desvalido. A miséria me fazia feliz. Explico: denunciar a miséria era um alívio para minha consciência. Desculpem a emoção (chora), mas há uma pureza doce na miséria que me comove muito (lágrimas). Mas nós, do PT, somos os sujeitos da história e, apesar de vossa injustiça contra nós, vamos construir o paraíso social.
“Meus fins uniram o país. Sim, uni vocês até mesmo contra mim, porque confundiram minha sutileza ideológica com incompetência, acharam que eu errava, sem saber que meu acerto era no futuro. Nunca errei. Não me arrependo de nada. Houve corrupção? Sim, mas adstrita a alguns elementos desonestos que traíram nossa missão. Dizem que roubamos; não, a palavra não é essa – é apenas a ‘desapropriação’ de um tesouro comprometido com metas neoliberais... Isso é o que fizemos.
“É muito difícil desenvolver este país de merda, desculpem o termo. Por isso, temos de destruir o capitalismo por dentro, já que não dá mais pé uma revolução russa. Mesmo uma avacalhação é mais revolucionária – seria uma espécie de ‘esculhambação criativa’ para arrasar administrações de direita.
“Foi isso que fez nosso líder Chávez, assassinado pelos imperialistas que lhe injetaram câncer no corpo e, depois que ele virou passarinho, passaram a roubar até os alimentos do povo, botando a culpa em nossos irmãos bolivarianos.
“Nosso povo também não sabe se governar. Por isso, digo, democracia clássica como? Para nós, ‘democracia’ sempre foi uma estratégia para tomada do poder. E não era hipocrisia; era dialética histórica. Tínhamos de apoiar a democracia burguesa para depois fazer o centralismo democrático que tanto usou nosso grande irmão Stálin, injustiçado por aqueles dois fascistas Kruschev e Gorbachev.
“Eu sou inocente, pura, não tenho dinheiro na Suíça, e toda minha paixão lancinante pelo povo brasileiro foi confundida com desonestidade e incompetência. As massas ainda vão sentir a minha falta, debaixo de um governo neoliberal que só pensa em contabilidade.
“Vocês hoje me baniram, mas vão se arrepender no futuro, pois o Brasil nasceu torto e nunca será consertado, nem por Temer, nem por ninguém.
“Arrependei-vos, fariseus do templo, pois, como disse a querida Gleisi Hoffmann: esse Senado não tem moral para me julgar.
“Estou sofrendo um golpe. Sim, não adiantam rituais, votações; repito, sim, que é golpe tramado por essas instituições de direita, como o STF, o Congresso, o Ministério Público, a OAB, a Polícia Federal.
“Estou orgulhosa de mim. Como Getúlio, saio da Presidência para entrar na história. E, para terminar, cito o líder maoista João Pedro Stédile quando disse aos camponeses: ‘ Tenham filhos – eles conhecerão o socialismo!’ E eu acrescento: seus filhos vão respeitar minha imagem no futuro. Adeus!”.
Estou no passado, amigos leitores, mas deve ter sido algo mais ou menos assim. O que acham?
Os dias seguintes
Banksy |
Alguns protagonistas da política estarão em novas posições depois de amanhã, quando setembro chegar, se confirmadas as previsões sobre o julgamento político de hoje no Senado.
Destituída da Presidência, Dilma Rousseff fica inelegível pelos próximos oito anos, até os 76 de idade. Volta à planície dos cidadãos, agora sem foro privilegiado e sob investigação criminal. Terá a companhia do antecessor Lula, que em outubro completa 70 anos.
Ambos são personagens de inquérito conduzido pelo juiz Teori Zavascki, do Supremo, por suspeita de obstrução à Justiça na apuração de crimes de corrupção na Petrobras.
Michel Temer deixa a presidência interina para virar sucessor definitivo. Será, no entanto, um presidente “sub judice”, dependente de uma decisão da Justiça sobre o seu mandato.
Isso porque o impeachment não afeta o processo em curso para impugnação da chapa Dilma-Temer. Eles foram acusados por abuso de poder, uso da máquina estatal e financiamento ilícito na campanha de 2014.
Deposta da Presidência, Dilma sai desses autos. Temer passa a ser o único réu. Por ironia, a iniciativa judicial foi do PSDB, hoje principal avalista do governo Temer no Congresso.
O vice se defendeu, em abril, cinco semanas antes de a Câmara afastar a presidente. Pediu julgamento separado das contas de campanha. Sendo individuais, argumentou, ele não poderia responder por eventuais crimes de Dilma.
Juízes do TSE identificam problemas. Um deles é a jurisprudência estabelecida, contrária a julgamentos separados de contas de candidatos da mesma chapa. Outro está na defesa em conjunto apresentada por Temer e Dilma ao tribunal, em 2015, com a mesma argumentação.
Assim, acrescentam, existiriam em tese poucas chances de Temer não ser condenado.
Pelo rigor da lei, ele precisaria demonstrar que não foi beneficiário direto de ilegalidades provadas. E atestar uma suposta “irrelevância” na contribuição do vice à eleição do presidente — ou seja, mostrar que o PMDB não influenciou na votação dos seus candidatos em 2014.
A decisão do tribunal eleitoral está prevista para o início do ano que vem. Será um marco na gestão do juiz-presidente do TSE, Gilmar Mendes, tanto pelo caráter inédito quanto pelas consequências.
Definirá se Temer cumpre o restante do mandato, até dezembro de 2018. Ou, então, se perde a presidência e se aposenta da política, por estar inelegível até completar 83 anos. Como resultado, abriria caminho para o Congresso escolher um dos seus para mandato-tampão até à eleição seguinte.
Essa seria outra amarga ironia: a cassação da presidente e do vice eleitos pelo voto direto conduziria à eleição indireta num Legislativo atropelado por múltiplos inquéritos sobre corrupção e pela desconfiança dos eleitores — apenas dois em cada dez dizem confiar na instituição, informa o Ibope.
Visto de hoje, o futuro parece mais favorável a Temer do que a Dilma. Tendo êxito na recuperação da economia, possivelmente contará com a indulgência característica das cortes onde juízes são políticos vestidos de toga.
É o cenário da República para quando setembro vier, depois de amanhã — descontado o imponderável, aquilo que se convencionou chamar de Lava-Jato.
José Casado
A merda é o ouro dos espertos
A inversão é fascinante. A Olimpíada foi idealizada, em 2009, para colocar no pódio o Brasil grande. A apoteose do eterno país do futuro que finalmente chegava a um presente grandioso. Em 2016, o “sucesso” da festa busca recolocar o Brasil não apenas como o país que – ainda – tem futuro, mas como o país da “superação”. Não se trata mais, como era em 2009, de lançar a Olimpíada como a imagem que expressa “a verdade final” sobre o país. Em 2016, a Olimpíada é disputada, pelos vários atores, como a imagem capaz de tapar os buracos de um país. E devolver uma unidade, qualquer uma, ou um consenso, qualquer um, a um Brasil partido não em dois, mas em vários pedaços.
Em 2009, a questão era: veja como somos capazes de construir um país. Em 2016, a questão tornou-se: veja como somos capazes de fazer uma festa.
Não dá para tratar essa mudança de paradigma, como tantos têm tratado, como se fosse a mesma coisa. O foco, aqui, são as interpretações simbólicas dessa Olimpíada num momento tão agudo do Brasil. E o papel que exercem sobre a construção da realidade.
Quando dizem orgulhosos que a Baía da Guanabara estava maravilhosa e que o Rio continua lindo, trata-se da festa. A pergunta que trata de um país é: mas a Baía da Guanabara foi despoluída? E a resposta é não. A resposta é: a Baía da Guanabara continua cheia de merda.
Quando dizem eufóricos que nenhum atleta pegou Zika vírus, a pergunta é: mas e a população do Rio? Está salva do Zika e, mais do que do Zika, da dengue? E as mulheres que tiveram e ainda terão crianças com sérios danos cerebrais, têm e terão acesso à proteção e à saúde? Estas são as perguntas que tratam do país – e não da festa.
Quando dizem esfuziantes que o Rio nunca foi tão seguro como nos 17 dias de Olimpíada e que os mais de 80.000 policiais e soldados deveriam continuar nas ruas para defender os cidadãos “de bem”, a pergunta é: e nas comunidades? Morreu gente nas favelas, e não apenas o soldado da Força Nacional Hélio Andrade. Em geral, ele é considerado a única baixa no período dos jogos, já que os demais mortos são aqueles que o país se acostumou a considerar “matáveis”.Pelo menos 31 pessoas morreram e outras 51 ficaram feridas em 95 tiroteios no Rio Olímpico, segundo a Anistia Internacional. Não interessa para a festa? Deveria interessar para o país.
Qual foi o custo financeiro dessa festa (gastos ainda à espera de transparência), para um estado que decretou situação de “calamidade pública” menos de dois meses antes do megaevento, para uma cidade falida e para um país em crise? Quem mede o sucesso ou quem diz o que é sucesso? Ou sucesso para quem? Certamente não para os milhares de “removidos” para a realização das obras.
A frase no Facebook é cristalina: “Somos um país de pés-rapados, mas arrasamos numa festa”. Diante do país sem rosto, cola-se a cara gasta de sempre, a de que somos muito bons em festa. E na festa somos cordiais, alegres e hospitaleiros. Assim, tenta-se tapar buracos que já não podem ser tapados. Conflitos que já não podem ser encobertos pela “festa da miscigenação”. Mitos em decomposição.E, importante, sucesso aos olhos de quem? Quando alguém exalta que a Baía da Guanabara estava límpida, o que se entende é que a pessoa comemora o feito de conseguir esconder por duas semanas a merda dos olhos dos “gringos”, a quem interessa mostrar que seguimos bonitos por natureza. E alegres, muito alegres.
Este é um país em que as cenas de pessoas se espancando por usarem camisetas de cores diferentes se tornaram corriqueiras. Era de se prever que qualquer unidade, onde não há nenhuma, qualquer consenso, onde não há nenhum, seria agarrado por quem disputa a narrativa. É bastante fascinante que a unidade forjada, que o brasileiro único, “O” brasileiro, seja, de novo e mais uma vez, essa pessoa muito boa em festa. É bastante fascinante que os brasileiros, que – ainda bem – já não podem dizer quem são ou o que são, possam ter o conforto de uma identidade fugaz. Ainda que essa identidade seja a de “arrasar na festa”.
É também assim que se invoca, de novo e mais uma vez, o Complexo de Vira-Lata, conceito do cronista Nelson Rodrigues, grande intérprete do futebol e do Brasil do século 20. Obviamente o vira-lata é sempre o outro. A suspeita de que a Olimpíada não iria funcionar – ou “dar certo” – seria fruto da falta de autoestima dos brasileiros, que se sentiriam inferiorizados diante dos gringos. Cogita-se também a possibilidade de que o verdadeiro vira-lata seja aquele que tem como única medida o olhar dos gringos e que necessita da sua aprovação para saber se tem valor. O curioso é que, na tese da viralatização, usa-se a festa como categoria totalizante. Se em alguns casos isso pode ser só um problema cognitivo, em outros soa como má fé.O mais fascinante, porém, é que essa narrativa tem se imposto com muito pouca crítica. A Olimpíada se deu com o processo de impeachment em curso. Acabaram os jogos e começou o julgamento da presidente Dilma Rousseff no Senado. Em vez de interpretar os sentidos, disputa-se a autoria do “sucesso”. E, assim, em nome da agenda de ocasião, ou da eleição de 2018, ocultam-se – ou mesmo apagam-se – as contradições. Apresentada – e consensuada pelos vários atores políticos – como um legado de “sucesso”, a quem pertence a Olimpíada é tudo o que passa a interessar. Em vez de disputar o país, disputa-se a festa. É nesse nível o rebaixamento do debate.
É aí que entra um conceito essencial para compreender o momento: “superação”. A Olimpíada de 2009 foi sonhada como o coroamento de um país que já se superou. Ou que já se tornou sua própria promessa, com a melhoria da qualidade de vida de dezenas de milhões e a redução das desigualdades. Uma nação que já havia pavimentado seu lugar entre as grandes economias do mundo, um Brasil de “cidadania plena”, um “país de primeira classe”. Na Olimpíada de 2016, é a superação que passa a ser a qualidade de todo um país. A qualidade em si, o moto-contínuo. O looping eterno. O pé-rapado, que continua pé-rapado, mas que arrasa na festa.
É assim que nossos atletas tornam-se sempre “histórias de superação” a serem enaltecidas. Gente como Rafaela Silva e Isaquias Queiroz. Se eles superaram todas as desigualdades e assimetrias do Brasil e tornaram-se atletas capazes de ganhar medalhas no pódio, é um orgulho para eles. Mas é imperativo lembrar que venceram apesar do Brasil. E esse fato deveria ser motivo de vergonha para o país.
Consumido pela máquina de fazer dinheiro que envolve mídia e megaeventos, o que é exceção – vencer contra tudo e contra todos – é convertido em qualidade totalizante. Assim, é o Brasil inteiro que se torna o país “da superação”. É a Olimpíada “da superação”. O que deveria ser vergonha, o fato de o país não garantir a base mínima para suas crianças e jovens desenvolverem suas potencialidades no esporte – e também na matemática e na literatura –, é convertido em orgulho nacional.
Em 2009, a questão era: veja como somos capazes de construir um país. Em 2016, a questão tornou-se: veja como somos capazes de fazer uma festa.
Não dá para tratar essa mudança de paradigma, como tantos têm tratado, como se fosse a mesma coisa. O foco, aqui, são as interpretações simbólicas dessa Olimpíada num momento tão agudo do Brasil. E o papel que exercem sobre a construção da realidade.
Quando dizem orgulhosos que a Baía da Guanabara estava maravilhosa e que o Rio continua lindo, trata-se da festa. A pergunta que trata de um país é: mas a Baía da Guanabara foi despoluída? E a resposta é não. A resposta é: a Baía da Guanabara continua cheia de merda.
Quando dizem eufóricos que nenhum atleta pegou Zika vírus, a pergunta é: mas e a população do Rio? Está salva do Zika e, mais do que do Zika, da dengue? E as mulheres que tiveram e ainda terão crianças com sérios danos cerebrais, têm e terão acesso à proteção e à saúde? Estas são as perguntas que tratam do país – e não da festa.
Qual foi o custo financeiro dessa festa (gastos ainda à espera de transparência), para um estado que decretou situação de “calamidade pública” menos de dois meses antes do megaevento, para uma cidade falida e para um país em crise? Quem mede o sucesso ou quem diz o que é sucesso? Ou sucesso para quem? Certamente não para os milhares de “removidos” para a realização das obras.
A frase no Facebook é cristalina: “Somos um país de pés-rapados, mas arrasamos numa festa”. Diante do país sem rosto, cola-se a cara gasta de sempre, a de que somos muito bons em festa. E na festa somos cordiais, alegres e hospitaleiros. Assim, tenta-se tapar buracos que já não podem ser tapados. Conflitos que já não podem ser encobertos pela “festa da miscigenação”. Mitos em decomposição.E, importante, sucesso aos olhos de quem? Quando alguém exalta que a Baía da Guanabara estava límpida, o que se entende é que a pessoa comemora o feito de conseguir esconder por duas semanas a merda dos olhos dos “gringos”, a quem interessa mostrar que seguimos bonitos por natureza. E alegres, muito alegres.
Este é um país em que as cenas de pessoas se espancando por usarem camisetas de cores diferentes se tornaram corriqueiras. Era de se prever que qualquer unidade, onde não há nenhuma, qualquer consenso, onde não há nenhum, seria agarrado por quem disputa a narrativa. É bastante fascinante que a unidade forjada, que o brasileiro único, “O” brasileiro, seja, de novo e mais uma vez, essa pessoa muito boa em festa. É bastante fascinante que os brasileiros, que – ainda bem – já não podem dizer quem são ou o que são, possam ter o conforto de uma identidade fugaz. Ainda que essa identidade seja a de “arrasar na festa”.
É também assim que se invoca, de novo e mais uma vez, o Complexo de Vira-Lata, conceito do cronista Nelson Rodrigues, grande intérprete do futebol e do Brasil do século 20. Obviamente o vira-lata é sempre o outro. A suspeita de que a Olimpíada não iria funcionar – ou “dar certo” – seria fruto da falta de autoestima dos brasileiros, que se sentiriam inferiorizados diante dos gringos. Cogita-se também a possibilidade de que o verdadeiro vira-lata seja aquele que tem como única medida o olhar dos gringos e que necessita da sua aprovação para saber se tem valor. O curioso é que, na tese da viralatização, usa-se a festa como categoria totalizante. Se em alguns casos isso pode ser só um problema cognitivo, em outros soa como má fé.O mais fascinante, porém, é que essa narrativa tem se imposto com muito pouca crítica. A Olimpíada se deu com o processo de impeachment em curso. Acabaram os jogos e começou o julgamento da presidente Dilma Rousseff no Senado. Em vez de interpretar os sentidos, disputa-se a autoria do “sucesso”. E, assim, em nome da agenda de ocasião, ou da eleição de 2018, ocultam-se – ou mesmo apagam-se – as contradições. Apresentada – e consensuada pelos vários atores políticos – como um legado de “sucesso”, a quem pertence a Olimpíada é tudo o que passa a interessar. Em vez de disputar o país, disputa-se a festa. É nesse nível o rebaixamento do debate.
É aí que entra um conceito essencial para compreender o momento: “superação”. A Olimpíada de 2009 foi sonhada como o coroamento de um país que já se superou. Ou que já se tornou sua própria promessa, com a melhoria da qualidade de vida de dezenas de milhões e a redução das desigualdades. Uma nação que já havia pavimentado seu lugar entre as grandes economias do mundo, um Brasil de “cidadania plena”, um “país de primeira classe”. Na Olimpíada de 2016, é a superação que passa a ser a qualidade de todo um país. A qualidade em si, o moto-contínuo. O looping eterno. O pé-rapado, que continua pé-rapado, mas que arrasa na festa.
É assim que nossos atletas tornam-se sempre “histórias de superação” a serem enaltecidas. Gente como Rafaela Silva e Isaquias Queiroz. Se eles superaram todas as desigualdades e assimetrias do Brasil e tornaram-se atletas capazes de ganhar medalhas no pódio, é um orgulho para eles. Mas é imperativo lembrar que venceram apesar do Brasil. E esse fato deveria ser motivo de vergonha para o país.
Consumido pela máquina de fazer dinheiro que envolve mídia e megaeventos, o que é exceção – vencer contra tudo e contra todos – é convertido em qualidade totalizante. Assim, é o Brasil inteiro que se torna o país “da superação”. É a Olimpíada “da superação”. O que deveria ser vergonha, o fato de o país não garantir a base mínima para suas crianças e jovens desenvolverem suas potencialidades no esporte – e também na matemática e na literatura –, é convertido em orgulho nacional.
Visão delirante
O pronunciamento de defesa da presidente afastada Dilma Rousseff serve para resumir a visão parcial que têm ela e companheiros do processo de deterioração da economia e do quadro social do país, de que são responsáveis.
Na visão de Dilma, a crise surge do nada em 2015, com a consequente queda da arrecadação. Na sua versão dos fatos não existe o estelionato eleitoral praticado por ela e aliados, na campanha de 2014, jogando para debaixo do tapete a gravidade da situação fiscal e mantendo a inflação artificialmente baixa, por meio do condenável represamento de tarifas.
Como esperado, Dilma recusa a acusação de que atropelou o Congresso na edição de decretos de gastos,sem a aprovação do Legislativo, e argumenta, como fez sua defesa durante todo o processo, que seu governo cumpriu a meta estabelecida para 2015. Esquece-se, como sua defesa, que a meta teve de ser alterada no final do ano. Ou seja, alterou-se o tamanho do gol para a bola entrar, depois do jogo iniciado e prestes a acabar.
Dilma também não consegue se defender da acusação das “pedaladas”, o artifício de transferir rombos do Tesouro para bancos oficiais, ao não ressarci-los pelos subsídios distribuídos, uma operação mascarada de crédito à União, vetada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Um ato, bem como os créditos abertos sem aprovação do Congresso, considerado crime de responsabilidade, punido por impeachment.
A presidente afastada desafia a prudência ao misturar momentos históricos muito diversos, ao se comparar a Getúlio Vargas, a Juscelino Kubitschek e a João Goulart. Mas vale tudo para insistir na farsa do “golpe”. Também é insensata a tentativa da presidente afastada em comparar o julgamento pelo qual passou na Justiça Militar, na ditadura, com o atual, tramitando dentro de todas as normas estabelecidas em leis e na Constituição.
Dilma sequer enrubesceu ao insistir na farsa, mesmo na presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski.
O pronunciamento da presidente afastada visa também a reforçar uma “narrativa” pela qual, aprovado, o impeachment terá sido uma conspiração das “elites” feita sob o “silêncio cúmplice da mídia”. Trata-se de um delírio conveniente, para encobrir o desrespeito, comprovado de forma sólida, da Constituição e da Lei de Responsabilidade.
Ora, tudo transcorre dentro do estado democrático de direito, substituindo-se, pelo Congresso, e garantido todo o direito de defesa, uma presidente que cometeu crimes de responsabilidade pelo seu vice, eleito em chapa única pelos mesmo 54 milhões de votos. Simples assim.
Editorial - O Globo
Na visão de Dilma, a crise surge do nada em 2015, com a consequente queda da arrecadação. Na sua versão dos fatos não existe o estelionato eleitoral praticado por ela e aliados, na campanha de 2014, jogando para debaixo do tapete a gravidade da situação fiscal e mantendo a inflação artificialmente baixa, por meio do condenável represamento de tarifas.
Dilma também não consegue se defender da acusação das “pedaladas”, o artifício de transferir rombos do Tesouro para bancos oficiais, ao não ressarci-los pelos subsídios distribuídos, uma operação mascarada de crédito à União, vetada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Um ato, bem como os créditos abertos sem aprovação do Congresso, considerado crime de responsabilidade, punido por impeachment.
A presidente afastada desafia a prudência ao misturar momentos históricos muito diversos, ao se comparar a Getúlio Vargas, a Juscelino Kubitschek e a João Goulart. Mas vale tudo para insistir na farsa do “golpe”. Também é insensata a tentativa da presidente afastada em comparar o julgamento pelo qual passou na Justiça Militar, na ditadura, com o atual, tramitando dentro de todas as normas estabelecidas em leis e na Constituição.
Dilma sequer enrubesceu ao insistir na farsa, mesmo na presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski.
O pronunciamento da presidente afastada visa também a reforçar uma “narrativa” pela qual, aprovado, o impeachment terá sido uma conspiração das “elites” feita sob o “silêncio cúmplice da mídia”. Trata-se de um delírio conveniente, para encobrir o desrespeito, comprovado de forma sólida, da Constituição e da Lei de Responsabilidade.
Ora, tudo transcorre dentro do estado democrático de direito, substituindo-se, pelo Congresso, e garantido todo o direito de defesa, uma presidente que cometeu crimes de responsabilidade pelo seu vice, eleito em chapa única pelos mesmo 54 milhões de votos. Simples assim.
Editorial - O Globo
Deposição de Dilma aumentará sangria de Lula
A história vive atrás de algo capaz de resumir uma época, seja a delação da Odebrecht ou a fatura do cartão de crédito internacional da mulher de Eduardo Cunha. Os brasileiros do futuro talvez escolham como um desses momentos marcantes a presença de Lula nas galerias do Senado como espectador do discurso de autodefesa de Dilma Rousseff no processo de impeachment.
Dirão que foi um momento histórico porque, assim como seu governo já tinha cronologicamente acabado em dezembro de 2010, só então, cinco anos e meio depois de Lula ter usado sua superpopularidade para içar um poste à poltrona de presidente da República, o mito foi mesmo enterrado.
Depois de passar à história como primeiro presidente a fazer a sucessora duas vezes, Lula se reposiciona diante da posteridade como um criador que foi desfeito pela criatura. Hoje, o impeachment é visto como um pesadelo do qual Dilma tenta acordar. No futuro, dirão que a deposição de Dilma foi uma trama de Lula contra si mesmo.
Seu estilo de governar manipulando opostos e firmando alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões se revelaria uma rendição à oligarquia empresarial. A pseudo-esperteza de vender uma incapaz como supergerente produziu um conto do vigário no qual a maioria do eleitorado caiu.
Restou a imagem de um Lula que —convertido em réu por um juiz da primeira instância de Brasília e em indiciado pela Polícia Federal em Curitiba— vai às galerias do Senado na condição de detrito. Destituído de seus superpoderes, apenas observa o derretimento de sua criatura, na luxuosa companhia de Chico Buarque, autoconvertido em inocente inútil. O ex-mito virou um personagem hemorrágico.
Dirão que foi um momento histórico porque, assim como seu governo já tinha cronologicamente acabado em dezembro de 2010, só então, cinco anos e meio depois de Lula ter usado sua superpopularidade para içar um poste à poltrona de presidente da República, o mito foi mesmo enterrado.
Seu estilo de governar manipulando opostos e firmando alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões se revelaria uma rendição à oligarquia empresarial. A pseudo-esperteza de vender uma incapaz como supergerente produziu um conto do vigário no qual a maioria do eleitorado caiu.
Restou a imagem de um Lula que —convertido em réu por um juiz da primeira instância de Brasília e em indiciado pela Polícia Federal em Curitiba— vai às galerias do Senado na condição de detrito. Destituído de seus superpoderes, apenas observa o derretimento de sua criatura, na luxuosa companhia de Chico Buarque, autoconvertido em inocente inútil. O ex-mito virou um personagem hemorrágico.
Incompetência também prejudica
Uma presidente no banco dos réus
A senhora que ocupa o banco dos réus no Senado Federal enquanto desabafo nestas linhas o meu aborrecimento cívico foi mais um sinistro na longa cadeia de infortúnios que o presidencialismo vem causando ao país. Nunca se supôs que fosse tão longe. Menos ainda era imaginável que inusitada maré de azares e artifícios permitisse a Lula eleger e reeleger Dilma Rousseff. Que possibilidade teria a senhora do banco dos réus de chegar à presidência, não fosse a unção proporcionada por Lula? Nenhuma! A gestão de Dilma é produto de uma conjunção fatal, urdida nos mais obscuros desvãos do universo.
Mas não foram apenas forças oblíquas e fatídicas as tecelãs dos fios que nos arrastam ao dia 29 de agosto. Não! Até nossas míseras e mal concebidas instituições acabaram por trazer à superfície o submundo do governo petista, numa continuidade que remonta ao início do primeiro mandato de Lula e ao mensalão, que outra coisa não foi senão a primeira pipoca a explodir na escabrosa pipoqueira da gestão petista nos negócios nacionais. Foi desse submundo que vieram, para as campanhas eleitorais dos partidos ligados ao governo, especialmente para as eleições presidenciais, os recursos tomados pelo aparelho criminoso que conjugou esforços para consolidar seu projeto de poder. No conjunto da obra, sobre a qual a senhora do banco dos réus não quer ouvir menção, não podemos desconsiderar a ilegitimidade dos meios financeiros que foram proporcionados ao partido. Nem o desequilíbrio que isso proporcionou às suas campanhas mediante a laboriosa e continuada ação de tesoureiros, operadores, doleiros e marqueteiros.
Percival Puggina
É golpe?
A defesa da presidente afastada e a própria presidente afastada, não fossem bastante técnica e materialmente comprovados os equívocos dos lançamentos contábeis voluntários junto à determinação de praticá-los, apela para a consciência de seus juízes (na Câmara dos Deputados e no Senado Federal) para a alternativa muito cômoda de que o processo que ora tramita na Câmara Alta compõe golpe político. Assim tentaram seus procuradores, vigorosamente na primeira etapa, e alguns membros (áulicos, melhor dizendo) entoaram em altas vozes em seus respectivos votos que, de fato, aquele procedimento configurava golpe. Não atinam seus prosélitos que esta manifestação solerte repercute mal para o país no concerto das nações.
Quer seja decretada a procedência da pronúncia ou não, o processo a que se submeteu D. Dilma é, primeiramente, constitucional, e o convencimento de seus juízes deriva de uma conclusão política porque a Lei Maior assim o quer. Se um suposto golpe tem raiz constitucional, então seu curso não configura golpe. Em segundo lugar, a apreciação da acusação na primeira fase envolveu, além da dissecação de sua procedência, minuciosamente demonstrada por atos e documentos exibidos e apontados pelo insuspeito prof. Miguel Reale (por isto mesmo recrutado por Lula para seu ministério), também representa um paralelo político, que é o motor do processo. Não se nega, pela verdade, que parlamentares não simpáticos à presidente afastada aproveitam-se da circunstância para contribuir para torcer para sua queda, também estimulados por seus eleitores ou mesmo atendendo à conveniência de cada qual. Mas, em síntese, o que provocou o pedido de impedimento foram fatos relatados e provados ou apontados como de rebeldia do Executivo às balizas orçamentárias e fiscais em vigor no ordenamento jurídico da República.
O processo ainda em curso no Senado Federal teve origem em petição longa e minuciosa subscrita por ninguém menos que o ilustre homem público Hélio Bicudo (que tão somente interpretou o sentimento das ruas), não apenas um cidadão do mais alto conceito, mas membro respeitável da fundação do Partido dos Trabalhadores, intelectual que elegeu os ideais programáticos da legenda e que, até indignar-se ou rebelar-se contra as ações partidárias erráticas daquela agremiação, constituía uma voz ouvida e respeitada das facções do PT. Começa por aí a legitimidade do processo movido contra a presidente afastada. Seu acusador original, todos sabemos, está acima de interesses pessoais, e elaborou o pedido sob o manto de sua formação cívica.
Ainda, para desfazer o alarido de que o acolhimento do pedido pela Câmara dos Deputados resultou de retaliação ou vingança de seu presidente por animosidade circunstancial a D. Dilma, também não prevalece, porque o deputado Eduardo Cunha já havia recebido dezenas de petições de igual fim, até com teores diferentes, e não as despachara; a de Hélio Bicudo ainda aguardou tempo, até que o presidente, presumível ou discricionariamente aguardava decisões e atos de D. Dilma que viessem a dissipar a desconfortável posição política em que a presidente se encontrava.
Contudo, o elemento fundamental que distingue o procedimento ora em tramitação para o de golpe é que a acusação não surgiu das sombras, não atacou pela noite, mas à luz solar, provinda de uma autoridade que preside o parlamento, todo ele eleito pelo povo. Não houve coação para que se deferisse a petição de Hélio Bicudo, o presidente da Câmara atuou em juízo subjetivo, que lhe é imputado pelo regimento. O processo transcorreu sem atropelos naquela casa e, por fim, alcançou o plenário, em que os que o compunham, membros de todos os matizes ideológicos, eleitos pelo povo, votaram livremente, pública e solenemente, à luz das câmeras, sem notas destoantes que merecessem queixa por qualquer irregularidade. E a sessão que deferiu o impedimento foi delirantemente aplaudida pelas ruas, que lhe deram impulso e força. Já a ocorrência de golpe identifica-se, primeiramente, pela surpresa, filha da trama e da urdidura. Assim foi o golpe de 64, em que seus executores planejaram sua execução em surdina, sem participação popular, e avançaram militarmente para ocupar pontos estratégicos sem consultar o povo, sponte sua, afastando as até então autoridades e provendo os postos ocupados a seu alvedrio e conveniência. Aí sim, estava materializado o golpe, que veio a durar 20 anos.
Os defensores da tese de golpe estão à mingua de fatos relevantes e longe da verdade.
O tempo o dirá.
José Maria Couto Moreira
Quer seja decretada a procedência da pronúncia ou não, o processo a que se submeteu D. Dilma é, primeiramente, constitucional, e o convencimento de seus juízes deriva de uma conclusão política porque a Lei Maior assim o quer. Se um suposto golpe tem raiz constitucional, então seu curso não configura golpe. Em segundo lugar, a apreciação da acusação na primeira fase envolveu, além da dissecação de sua procedência, minuciosamente demonstrada por atos e documentos exibidos e apontados pelo insuspeito prof. Miguel Reale (por isto mesmo recrutado por Lula para seu ministério), também representa um paralelo político, que é o motor do processo. Não se nega, pela verdade, que parlamentares não simpáticos à presidente afastada aproveitam-se da circunstância para contribuir para torcer para sua queda, também estimulados por seus eleitores ou mesmo atendendo à conveniência de cada qual. Mas, em síntese, o que provocou o pedido de impedimento foram fatos relatados e provados ou apontados como de rebeldia do Executivo às balizas orçamentárias e fiscais em vigor no ordenamento jurídico da República.
Ainda, para desfazer o alarido de que o acolhimento do pedido pela Câmara dos Deputados resultou de retaliação ou vingança de seu presidente por animosidade circunstancial a D. Dilma, também não prevalece, porque o deputado Eduardo Cunha já havia recebido dezenas de petições de igual fim, até com teores diferentes, e não as despachara; a de Hélio Bicudo ainda aguardou tempo, até que o presidente, presumível ou discricionariamente aguardava decisões e atos de D. Dilma que viessem a dissipar a desconfortável posição política em que a presidente se encontrava.
Contudo, o elemento fundamental que distingue o procedimento ora em tramitação para o de golpe é que a acusação não surgiu das sombras, não atacou pela noite, mas à luz solar, provinda de uma autoridade que preside o parlamento, todo ele eleito pelo povo. Não houve coação para que se deferisse a petição de Hélio Bicudo, o presidente da Câmara atuou em juízo subjetivo, que lhe é imputado pelo regimento. O processo transcorreu sem atropelos naquela casa e, por fim, alcançou o plenário, em que os que o compunham, membros de todos os matizes ideológicos, eleitos pelo povo, votaram livremente, pública e solenemente, à luz das câmeras, sem notas destoantes que merecessem queixa por qualquer irregularidade. E a sessão que deferiu o impedimento foi delirantemente aplaudida pelas ruas, que lhe deram impulso e força. Já a ocorrência de golpe identifica-se, primeiramente, pela surpresa, filha da trama e da urdidura. Assim foi o golpe de 64, em que seus executores planejaram sua execução em surdina, sem participação popular, e avançaram militarmente para ocupar pontos estratégicos sem consultar o povo, sponte sua, afastando as até então autoridades e provendo os postos ocupados a seu alvedrio e conveniência. Aí sim, estava materializado o golpe, que veio a durar 20 anos.
Os defensores da tese de golpe estão à mingua de fatos relevantes e longe da verdade.
O tempo o dirá.
José Maria Couto Moreira
Preocupação mata todos os dias e nos impede de viver
Aos que creem, falta compreender o famoso “não vos preocupeis com o dia de amanhã”. Somos viciados em sofrer por antecipação, viver de forma atribulada e aflita. A cada ano ou década, aceleramos nossa mente ao extremo e, masoquistas que somos, obsessivamente acumulamos e retransmitimos notícias ruins, tragédias, dramas que sangram nossos corações e secam nosso afeto. Afinal, qual o sentido da vida? Por que tanto apego? Por que tanto medo de morrer ou perder alguém amado se cada vez mais reclamamos de tudo e de todos? Já afirmei que a preocupação é o mais devastador câncer mental que existe. Afinal, há mais de 30 anos ouço no consultório, em palestra ou na vida social “doutor, eu morro de preocupação de perder meus filhos” ou “morro de preocupação com o futuro, de adoecer, de perder emprego, quando meus filhos saem, de ter câncer” e toda uma mortandade mental constante e torturante.
Segundo a física quântica, pensar equivale a agir, assertiva que nos leva à conclusão de que preocupados morrem a cada pensamento que emitem nesse sentido. Um verdadeiro velório eletroquímico-cerebral. “Meu filho não chegou até agora, e se ele sofreu acidente – ou usou droga, foi preso, sequestrado e outros dramas piores?”. Ora, o coitado do cérebro é um mero escravo da mente, que busca adaptar o corpo às mudanças ambientais ou psíquicas. A mente é geradora dos softwares, o cérebro apenas os roda, é um hardware.
Triste o mundo mental dos preocupados, diria, que infernal. Afinal, vivem morrendo e renascem sempre com as preocupações torturando-os com chicotes de culpa, de ciúmes, de raiva, de perfeccionismo, de obrigações e deveres, do medo de errar, de ser mal falado, de envelhecer, de engordar ou sei lá mais o quê. Ser traído? Pecar? O que não falta é fantasma para assombrar sua pesada existência. E se for para o inferno? Bobo, já vive nele. Tem dinheiro? É melhor se preocupar, afinal, e se perco? E se os herdeiros brigarem, gastarem tudo e morarem debaixo da ponte? Não tem dinheiro? Como fechar o mês e sair do Serasa? Tem trabalho? E se perder? Não tem? E se não achar?
Fico pensando em uma versão de olimpíadas de preocupação. Afinal, todos acham que seus problemas são os piores do mundo. Que nada! Não vale nem bronze. Ou uma feira persa de preocupações: “olha aí, minha gente, troco as preocupações com dois filhos adolescentes por preocupação de ficar solteira”. Ou ainda: “troco preocupação de envelhecer por preocupação com corpo gordinho”.
Enfim, somos a civilização que vive morrendo de medo e preocupação e ressuscitando a cada dia para viver de novos medos e preocupações. E sabe o que é pior? A maioria de nós ainda se diz pessoas de fé. Ora, quem tem fé não se preocupa. Tudo passa, o tempo cura. Não é à toa que no cemitério do Bonfim, em BH, está escrito em latim “Aos mortos, dos que vão morrer”. Por falar nisso, bem-vindos à vida, os que não temem a morte.
Triste o mundo mental dos preocupados, diria, que infernal. Afinal, vivem morrendo e renascem sempre com as preocupações torturando-os com chicotes de culpa, de ciúmes, de raiva, de perfeccionismo, de obrigações e deveres, do medo de errar, de ser mal falado, de envelhecer, de engordar ou sei lá mais o quê. Ser traído? Pecar? O que não falta é fantasma para assombrar sua pesada existência. E se for para o inferno? Bobo, já vive nele. Tem dinheiro? É melhor se preocupar, afinal, e se perco? E se os herdeiros brigarem, gastarem tudo e morarem debaixo da ponte? Não tem dinheiro? Como fechar o mês e sair do Serasa? Tem trabalho? E se perder? Não tem? E se não achar?
Fico pensando em uma versão de olimpíadas de preocupação. Afinal, todos acham que seus problemas são os piores do mundo. Que nada! Não vale nem bronze. Ou uma feira persa de preocupações: “olha aí, minha gente, troco as preocupações com dois filhos adolescentes por preocupação de ficar solteira”. Ou ainda: “troco preocupação de envelhecer por preocupação com corpo gordinho”.
Enfim, somos a civilização que vive morrendo de medo e preocupação e ressuscitando a cada dia para viver de novos medos e preocupações. E sabe o que é pior? A maioria de nós ainda se diz pessoas de fé. Ora, quem tem fé não se preocupa. Tudo passa, o tempo cura. Não é à toa que no cemitério do Bonfim, em BH, está escrito em latim “Aos mortos, dos que vão morrer”. Por falar nisso, bem-vindos à vida, os que não temem a morte.
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