quinta-feira, 10 de junho de 2021

Governo das sombras

Os últimos dias revelaram dados concretos para confirmar o que já se intuía: Bolsonaro é um personagem político que se movimenta mais à vontade nas sombras, à margem das instituições oficiais. Gabinete paralelo na Saúde, gabinete do ódio no Planalto, ação paralela no TCU e por aí vai. Temos um chefe de governo que tenta montar uma estrutura extraoficial que interfere na ação de sua equipe formal quando lhe interessa, muitas vezes criando obstáculos à consecução de programas de governo, como no caso do combate à corrupção.


A interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, para controlar as informações que lhe convêm, é um caso típico dessa estrutura paralela. Alexandre Ramagem, delegado que Bolsonaro queria ver à frente da Polícia Federal, tornou-se íntimo da família e, não podendo, por interferência do STF, nomeá-lo, colocou-o na Abin, de onde alimenta um sistema informal de informações de que Bolsonaro se orgulha.

Funcionários do governo que vão à CPI dão uma versão dos fatos que a realidade desmente. Caso especial é o ex-secretário executivo do Ministério da Saúde na era Pazuello, Elcio Franco, que assumiu, como se fossem oficiais, políticas públicas que deveriam estar banidas por decisão científica. Disse com todas as letras que a gestão a que serviu considerava que o tratamento precoce era uma maneira adequada de combater a Covid-19.

O que o governo escondia até então transformou-se, na boca de um membro do alto escalão do Ministério da Saúde, em política de governo. É difícil acompanhar esses depoimentos sem ver que é tudo uma farsa para encobrir as ações de fato do governo, como atrasar a compra das vacinas e apostar na imunidade de rebanho.

Acredito que a CPI já está constatando uma situação de inação proposital do governo. Essa questão do gabinete paralelo na Saúde é interessante. Uma assessoria informal de pessoas qualificadas não traz problema nenhum, os presidentes devem conversar com várias pessoas, não ficar apenas com a visão de seu ministro. Presidente e ministros podem ouvir quem quiserem, mesmo que não seja do governo. O problema é montar um esquema paralelo para desmentir e boicotar a própria política oficial. Não é possível recomendar uma medicação oficialmente dada como ineficaz, como o gabinete paralelo fez com a cloroquina.

Está ficando provado que o governo alimentou uma corrente minoritária da medicina para impor uma política de saúde no Brasil que não poderia ser assumida por ser ilegal. Outro gabinete paralelo é o que funciona no Palácio do Planalto para orientar e alimentar a trama de intrigas e fake news que é a base da mobilização social nas redes sociais.

O caso do pedido de arquivamento, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, das investigações sobre ações antidemocráticas é exemplar de como o presidente age. Tentado pela possibilidade de ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal, agora ou mais adiante, Aras procura garantir pelo menos sua recondução ao cargo. Não viu nenhuma transgressão onde as investigações, liberadas pelo ministro do STF Alexandre de Moraes a bem da sociedade, mostraram uma vasta rede de financiadores de ações ilegais por parte de empresários e seguidores de Bolsonaro.

Um submundo criminoso que funciona com o apoio da parte escura do governo, que vai tomando conta dos diversos setores. O ministro da Justiça, Anderson Torres, deu apoio público ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, investigado pela Polícia Federal, subordinada à Justiça, por corrupção num caso de contrabando de madeira.

Como se não bastasse, revela-se um escabroso caso de atividade ilegal no Tribunal de Contas da União (TCU), em que um servidor inseriu no site oficial do órgão, sem autorização, um estudo seu em que especula a hipótese de que as mortes por Covid-19 tenham sido muito menores do que se alardeia. O estudo em questão, citado pelo presidente Bolsonaro como trabalho oficial do TCU, não tem chancela oficial nem faz parte de nenhum trabalho formal do tribunal. Seu autor é um amigo dos filhos de Bolsonaro, e o presidente soube dele pelo pai, um militar seu amigo. É assim que a banda toca hoje no Brasil.

Pensamento do Dia

 


O Brasil não é só Bolsonaro

Nos últimos 12 anos, por três vezes o Brasil foi tema de uma reportagem especial da Economist, a principal revista de negócios do mundo. Na primeira vez, a previsão se mostrou errada: em 2009, o Cristo na capa alçava voo como um foguete. O Brasil decola era a manchete – a ascensão do país a uma potência mundial política e econômica parecia possível na época, embora, como sabemos, isso não tenha acontecido.

A segunda previsão foi profética. Em 2013, o Cristo aparecia se desintegrando na capa. "O Brasil estragou tudo?", perguntava a Economist. Isso se revelou uma sábia previsão. Na época, o verdadeiro colapso do país em tal magnitude não poderia ser previsto.

A manchete na capa mais recente é A década sombria do Brasil. O Cristo recebe ventilação artificial. E é realmente um quadro extremamente sombrio o que a Economist pinta ao longo de dez páginas, sem ousar fazer uma previsão desta vez. O título da reportagem diz tudo: À beira do abismo.


O surpreendente nesta análise é que a Economist, como publicação de referência do capitalismo liberal e da economia global, geralmente coloca a economia no centro de sua análise – para depois explicar as influências sociais, políticas ou tecnológicas que fazem com que um país não cresça, por exemplo.

No caso do Brasil, desta vez é diferente. A correspondente Sarah Maslin descreve os desafios assustadores da estagnação econômica, polarização política, degradação ambiental, regressão social e o pesadelo da covid-19. No texto, ela argumenta principalmente em termos políticos.

Ela vê o presidente Jair Bolsonaro como o culpado e a principal razão da pior crise do Brasil desde 1985, quando o país voltou à democracia. Bolsonaro, diz ela, não está interessado em reformas: ele quer destruir as instituições. "Antes da pandemia, o Brasil estava sofrendo numa década com problemas políticos e econômicos. Com Bolsonaro como seu médico, agora está em coma."

A Economist adverte sobre os graves danos que o Brasil enfrentará se Bolsonaro permanecer na presidência por mais quatro anos. O risco é real: 30% dos brasileiros apoiam a política do populista de direita.

Tudo isso é verdade. Ainda assim, é importante não esquecer: o Brasil não é apenas Bolsonaro. Trinta por cento dos brasileiros é muito, mas eles são uma minoria. O Brasil tem uma sociedade civil ativa, um Judiciário pronto para se defender, apesar de todas as suas falhas, e uma mídia vigilante. Tem negócios inovadores, mercados financeiros sólidos, sua própria base industrial. O Brasil tem uma vibrante cultura de startups, ao lado de produtores de commodities e energia que são líderes mundiais. A sociedade é jovem, há uma classe média. O país possui meia dúzia de centros políticos e econômicos.

Minha previsão, portanto, é que o Brasil também pode sobreviver a Bolsonaro. Mesmo que mais quatro anos possam causar danos irreparáveis ao país, por exemplo, no meio ambiente, educação ou pesquisa e desenvolvimento. Sem mencionar os danos sociais.

De minha parte, assino embaixo da conclusão da Economist: será difícil mudar o rumo do Brasil enquanto Bolsonaro for presidente. A prioridade mais urgente é derrotá-lo nas urnas.

A isso, não há mais nada a acrescentar.
Alexander Busch

Algo está errado quando presidente usa falsidade para provar que está certo

Pessoas que têm a cabeça dura não se dão conta de que o pescoço é uma das partes mais encantadoras do corpo humano. Graças à rotatividade do pescoço, mesmo as cabeças mais maciças podem analisar o mundo de vários ângulos, sem maniqueísmo. Poucas verdades absolutas resistem a uma guinada de pescoço.

Numa pandemia em que os gestores públicos brigam entre si, favorecendo a proliferação do vírus, o cidadão que paga a conta do desastre sanitário deve notar que todo fato comporta três versões: a do presidente da República, a dos seus opositores e a versão verdadeira.

Acossado pela CPI da Covid, que ilumina os calcanhares de vidro do governo, Bolsonaro age como se considerasse que os fatos são volúveis. Ele não acha justo que uma nação se submeta aos fatos sem poder reagir. É como se o presidente perguntasse: por que o país deve conviver com a contagem ascendente de mortos por covid se o vírus não teve nenhum respeito pela teoria de que a pandemia era uma "gripezinha", que já estava no "finalzinho"?


Na última segunda-feira, Bolsonaro achou que seria uma boa ideia remodelar os fatos. O presidente insinuou, no cercadinho do Alvorada, que governadores estão inflando o número de mortos por covid para arrancar mais dinheiro do Tesouro Nacional. Atribuiu a hipotética informação a uma auditoria do Tribunal de Contas da União. Verificou-se que não havia auditoria, mas um relatório clandestino enfiado sorrateiramente por um auditor no sistema do TCU, sem vínculo formal com nenhum processo.

A, o governo demorou a entrar na corrida mundial por vacinas. B, a escassez de vacinas empurra o Brasil para uma terceira onda de contágio do coronavírus. C, o número de mortos roça a casa dos 480 mil, com viés de alta. Numa conjuntura tão adversa, um presidente que acha que pode recorrer a falsidades para demonstrar que está certo prova que alguma coisa está mesmo muito errada.

Identificado, o auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques foi afastado preventivamente de suas funções. Será alvejado por um processo administrativo e por um inquérito da Polícia Federal. Suspeita-se que o personagem seja ligado aos filhos de Bolsonaro.

É uma pena que a paz de espírito nacional não possa ser restaurada por meio de falsas auditorias. Infelizmente, os fatos não deixam de existir porque são ignorados. A realidade do Brasil continua sendo de uma simplicidade hedionda. É simples como o ABC.

A agonia do poder civil

A submissão do Comandante do Exército ao Presidente da República em matéria de economia interna da Força e sua recusa em aplicar até mesmo uma penalidade simbólica a um general da ativa que participou ostensivamente de manifestação política-eleitoral é um evento muito importante e de consequências não completamente previsíveis.

A conduta do General foi inequívoca e inequívocas são as disposições do código disciplinar, não havendo, portanto, qualquer dúvida sobre as razões deste julgamento. O Comandante do Exército tomou uma atitude política.


Desde a proclamação da República as intervenções militares na política brasileira têm sido mais regra que exceção. Neste ponto compartilhamos o mesmo destino de quase todos os países latino-americanos, para não dizer da maioria dos países subdesenvolvidos.

Quaisquer que sejam os motivos para essas intervenções, elas jamais resolveram os verdadeiros problemas do país, sempre enfraqueceram a democracia e corromperam o Poder civil.

Seria injusto afirmar que os militares no Brasil decidiram sempre sozinhos quando e como intervir. Na maioria das vezes eles foram instigados por políticos civis com dificuldades de chegar ao Poder por meio do voto democrático. Nesse sentido a ação militar quase sempre tem origem na política civil.

Olhando em retrospecto constato que ao longo de toda a minha vida os militares, ou estiveram no Poder ou foram uma sombra sempre presente para interferir no livre funcionamento da vida democrática. O quadro somente se modificou após a Constituição de 1988, que nos garantiu mais de 30 anos de hegemonia incontestada do Poder Civil.

O grau de interferência militar na vida política tem alta correlação com o nível de prosperidade e de civilização dos países.

Nos Estados Unidos, nos meses finais do governo Trump, o mais alto chefe militar na hierarquia esteve presente passivamente num ato político do Presidente nos jardins da Casa Branca. Imediatamente ele emitiu uma nota desculpando-se com a nação e afirmando com todas as letras que não deveria estar ali.

Tenho temor de que em muitos aspectos o Brasil esteja próximo de reviver situações que julgávamos sepultadas para sempre. Esta fuga em direção ao passado vem assombrando muitas nações ultimamente e são um sintoma universal de mal-estar com a evolução cultural e a civilização, ao qual não podemos nos associar.

O Brasil tem vocação para ser contemporâneo do futuro e não merece semelhante destino, pois a nostalgia é um dos piores sentimentos que podem alimentar a ação política.

Apesar dos últimos malogros e das ameaças que rondam o horizonte, ainda somos um país com possibilidades quase infinitas. Basta apenas não ter medo da mudança e do progresso com todas as suas faces.

Vivemos um dos piores momentos de nossa história. Desde 2014 a economia não cresce e aumentam o desemprego e a pobreza. Se as previsões se confirmarem, somente em 2023 voltaremos ao nível de renda de 2011, enquanto o resto do mundo seguiu crescendo.

Esse quadro só pode ser enfrentado e vencido por meio da política democrática. A divisão da sociedade e a polarização política só aproveitam aos maus brasileiros que olham o Estado como fonte de poder e de riqueza pessoal.

O governo se afasta cada vez mais do que temos de melhor em nossa história e em nossa sociedade. Ao militarizar as áreas mais civis do Governo, como o Ministério da Saúde, o Gabinete Civil, a Petrobrás e tantos outros setores, além de buscar envolver as Forças Armadas no seu dispositivo político, o atual Governo parece estar a caminho de um divórcio litigioso com a nação.

Até há pouco tempo os comandantes militares e o Ministro da Defesa demarcaram com firmeza o espaço entre governo, política e instituições militares. Foram todos demitidos sem explicação.

O que vem pela frente tornou-se agora claro para quem quer enxergar. Se o poder civil permanecer calado e submisso, como está, a democracia brasileira pode não sobreviver. E com ela, todos os nossos sonhos.