terça-feira, 14 de maio de 2019

Gente fora do mapa

Não há lugar para o homem livre

Coimbra, 14 de setembro de 1961

Voltámos ao tempo das invasões, com a substituiçao dos bárbaros por ideias. O mundo dos valores parece um campo talado. Batida pelos mais contraditórios ventos da intolerância, a alma humana parece um vime a torcer-se. A nenhum espírito, por mais isento que seja, é consentida a paz do seu específico equilíbrio. Essa felicidade gozam-na apenas os bem-aventurados fiéís de qualquer das igrejas que se degladiam, políticas, religiosas, económicas, libertárias, recreativas ou outras. Como nas sociedades primitivas, ou se faz parte dum clã e se aceita o credo da comunidade, ou se perde o direito à própria vida. À vida e à morte, afinal, porque, depois dela, ainda essa mesma intolerância pode salgar, e salga, a memória do réprobo. A solidão, agora, é impossível. Não existe recanto da terra onde caiba um homem livre.
Miguel Torga, Diário 

Da inutilidade da compra de certificados

O problema do Brasil é a total independência do País Oficial em relação ao País Real. Tudo o mais é nada perto disso. A sobrevida desse País Oficial desenhado como uma privilegiatura depende dessa independência. Eles sabem que estarão mortos quando o País Real renascer. Daí ano perdido para nós ser ano ganho para eles. Já vamos em duas “décadas perdidas” desde que o país parou. Mas ele vem desacelerando desde 1988 quando a privilegiatura plantou o marco da sua independência do Brasil que foi a Constituição profeticamente chamada “dos Miseráveis”, hoje um compêndio de 250 artigos e 80 emendas, todos menos um especificamente desenhados para anular a soberania do povo que o primeiro dos seus Princípios Fundamentais afirma.

O Brasil anda perdido. Além do que já está pronto para o consumo, só importa do mundo que funciona as obsessões que o tédio e as doenças correlatas da abundância lhe infringem: os ódios de raça, de gênero, de religião e seus sub-departamentos; as deformações alimentares, os vícios, o ridículo. O componente conspiratório pesa menos do que parece. O canal preferencial dessa linha de contaminação é a arte, a escola e a imprensa vira-latas. O professor, o artista e o jornalista vira-latas integram um grupo auto referente que vive de chamar mediocridade de talento e vício de virtude (e, claro, de transformar o pertencimento ao grupo em verbas públicas e privilégios vitalícios). Tudo referir a esses temas, o preço a pagar pelas graças recebidas, é a “credencial de modernidade” com a qual sentem-se autorizados a retrucar com “carteiradas” qualquer argumento racional em contrário. Conjecturar sobre o quê e como fazer para mudar nossa realidade como outros pedaços mais humildes da humanidade fizeram não é, para eles, “aprender”, é aceitar a acusação de “lacaio”, condição que todos, aliás, estão treinados para assumir de bom grado desde que seja do feitor certo.

A elite empresarial de boa fé, imersa nesse processo de deseducação, “compra certificados” de progressismo criando cursos de capacitação e empreendedorismo em favelas e comunidades quilombolas, espalhando bandeiras do Brasil pelas ruas, financiando candidaturas de quem tope receber vagos cursos de honestidade na política… Para ser exato, não sabe o que fazer. Quer, como a maior parte dos outros brasileiros de boa fé, até os políticos, plantar aqui o resultado das profundas reformas feitas pelas sociedades “de sucesso” sem antes passar por elas.

Não é que nossas elites não acreditem na liberdade. Nunca a experimentaram. Não sabem o que é. Por isso morrem de medo dela. Não têm a menor ideia de como “a desordem” que a liberdade cria trabalha para impulsionar o crescimento, o empreendedorismo, a inovação. Com os dois pés nos estágios mais básicos do mandonismo – positivista no caso da elite política; da revolução industrial no da empresarial – nenhuma aceita com naturalidade a submissão ao povo e à alternância no poder político, uns, e à “destruição criativa” e à alternância no poder econômico, os outros. Consciente ou inconscientemente, trabalham todos contra a mudança ao tratar de proteger o povo dele mesmo, porque não existe mudança possível antes da mudança da fonte de legitimação do poder.


Em toda a parte os salários mais altos atraem as maiores ambições, os mais dispostos a tudo e, no sentido darwiniano da expressão, os mais aptos. Cria-se então uma elite que trata de perpetuar-se comprando a melhor educação, a melhor informação, a melhor medicina. Nos EUA, do final dos 70 em diante, o setor financeiro, de instrumento assessório do desenvolvimento se foi transformando, ele próprio, “no” poder, tão estratosférico foi o nivel a que chegaram os salários. Depois da crise de 2008 metade do governo passou a “emanar” … do Goldman Sachs. Os americanos “pés-duros”, porém, contam com poderosas defesas contra isso. Além da constituição mais sólida do planeta, copiaram ha mais de 100 anos, quando estiveram tão podres quanto estamos hoje, o remédio que os suíços inventaram há mais de 700 (isso mesmo, desde 1291!) para transformar escravos em senhores que os fez a maior renda per capita e o povo mais educado do mundo. O mesmo que os japoneses adotaram a partir de 1945, os coreanos desde 1954 e que o resto do mundo que funciona vai copiando hoje.

O estado brasileiro paga os maiores salários relativos do planeta. Tão altos que fora dele só restou miséria e brejo. A disputa de poder – o político e o econômico – dá-se, por isso, exclusivamente pelo controle do estado. Mas nas nossas condições de extrema fragilidade institucional a elite que se reveza no poder não se apropriou apenas do governo, apropriou-se da própria Constituição, que transformou no instrumento incontestável da sua auto-reprodução.

O único ponto fraco do “Sistema” é a ilegitimidade que a morte à míngua da economia nacional põe, agora, numa evidência impossivel de abafar. O único inimigo capaz de derrota-los é a força que a opinião pública apenas começa a desconfiar que tem e usa, ainda, a esmo, sem foco, como uma adolescente estabanada. A vitória só virá se e quando entender que, sendo o jogo institucional, é preciso definir quais instituições fazem-se necessárias para reverter dawinianamente o processo darwiniano com que se defronta. O que é preciso exigir para transformar em fator decisivo de fracasso o que antes era fator decisivo de sucesso do inimigo, e deixar que a natureza, agora atraves de um filtro de seleção positiva, faça o resto.

O povo brasileiro perde todas porque não tem representação no País Oficial. “Democracia representativa” é uma hierarquia onde os representados mandam e os representantes obedecem mas o Brasil não dispõe dos instrumentos capazes de criar uma. Isso só é possível se e quando o sistema eleitoral permite saber quem, exatamente, representa quem, e o representado traído pode demitir no ato o representante traidor.

O resto – todo o resto – é só “me engana que eu gosto”.

O 'mito' acima de todos

O tripé de credibilidade do governo está sob fogo cerrado da ala radicalizada do bolsonarismo, com o aval, quase sempre indireto, do próprio presidente, convencido pelo filho tuiteiro Carlos e por seu guru esotérico Olavo de Carvalho de que enfraquecê-lo é fortalecer um governo populista de comunicação direta com os cidadãos através das novas mídias sociais.

É através delas que guru e seguidores desencadeiam sua guerra particular contra quem possa ameaçar o “mito”. Em recente tuíte, Carlos explicita esse temor ao dizer que os elogios ao “ótimo” Paulo Guedes visam a enfraquecer seu pai. Foi assim também com o vice-presidente Hamilton Mourão, uma reserva de bom senso em meio ao caos do governo, identificado pelos radicalizados como querendo se transformar em um contraponto a Bolsonaro.

Tudo é feito premeditadamente, uma loucura aparente, com muito método. Os superministros Paulo Guedes, da Economia, e Sergio Moro, da Justiça, e os militares que fazem parte do governo precisam ser contidos como forças políticas, para que se destaque a liderança pessoal de Bolsonaro.


O governo foi montado sobre um projeto populista que pretende transferir ao presidente, e a mais ninguém, os êxitos alcançados, desde o combate ao crime e à corrupção até uma eventual melhoria da economia. E a visão do presidente e sua turma geralmente não combina com as de seus principais assessores, pois objetivam fazer um governo sem limitações institucionais, com resultados imediatos.

Não é por acaso, portanto, que, sempre que pode, Bolsonaro lamenta ter que fazer a reforma da Previdência, defende os velhinhos e os pobres, que supostamente estariam sendo prejudicados pelos estudos da equipe econômica, promete ações que não se coadunam com a economia restritiva, quase de guerra, defendida pelo ministro Paulo Guedes, como reajustar a tabela de Imposto de Renda pela inflação. Ou interferir no preço do diesel.

Também no combate ao crime organizado e à corrupção, fundamento para o então juiz Sergio Moro estar em seu Ministério, o presidente tem uma visão simplista, que não leva à estruturação de um programa efetivo como o que pretende Moro. Quem imaginava que a presença de Moro no governo seria uma garantia de que excessos seriam contidos já teve, ele inclusive, demonstrações de que há situações em que a ideologia fala mais alto.

Permitir que cada cidadão possa ter quatro armas em casa, e não duas, como sugeria Moro, é exemplar dessa postura. Ampliar as possibilidades de porte de arma, também. Quando foi divulgado o decreto sobre posse de armas, Moro fez questão de frisar que não se tratava de porte.

Agora, teve que engolir o decreto, de que tomou conhecimento pouco antes de ser divulgado. A falta de empenho do governo para manter o Coaf no ministério de Moro é também indicativa de que Bolsonaro é capaz de abrir mão de propostas coerentes, mas secundárias para o projeto político populista.

Da mesma maneira, sua dubiedade em relação aos ataques aos militares mostra que, ao contrário do que se imaginava, estava interessado apenas na aura de credibilidade que dão ao seu ministério, não nas suas ponderações ou posturas democráticas, garantidoras da estabilidade.

Houve quem temesse que tantos militares juntos favorecessem uma situação institucional precária, que levasse ao famoso “autogolpe”. O que se vê é, ao contrário, os militares se transformando em garantidores das liberdades democráticas, enquanto os bolsonaristas radicalizados os atacam.

Moro, de candidato natural à Presidência da República na sucessão de Bolsonaro, passou a ter que engolir sapos enquanto faz hora para ir para o Supremo Tribunal Federal. Foi essa a mensagem implícita da fala de Bolsonaro, ao dizer que a primeira vaga que abrir no STF será dele. Transformou-o em um subalterno sem grandeza, substituível, o que até agora parecia impensável.

Moro está sendo vítima de ataques de dentro do Congresso, porque é visto como perseguidor de político, e, no governo, de pessoas que não gostam da ideia de que, sem ele e sem o ministro da Economia, Paulo Guedes, o governo Bolsonaro acabaria. A ala radicalizada do bolsonarismo joga com outra hipótese, a de que a liderança política do “mito” dispensa avalistas. O único “super” é ele mesmo, cujo aval vem das ruas. O “mito” acima de todos.

Arte nas ruas

Glasgow (Escócia)

As estrelas e a sarjeta

Um dia disseram a Winston Churchill que era preciso cortar os custos do financiamento das artes. A Inglaterra estava em guerra. A guerra é um negócio caro.

Churchill recusou. E terá respondido: se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para quê?

O filósofo Peter Singer discorda do velho Winston. A propósito da reconstrução de Notre-Dame, Peter Singer e um seu discípulo, Michael Plant, vieram argumentar que o dinheiro doado pelos ricos para a reconstrução da catedral deveria ser usado para combater a pobreza. ("How Many Lives Is Notre-Dame Worth", Project Syndicate).

Nas 24 horas seguintes ao fogo, foi possível juntar € 1 bilhão em donativos. As estimativas dos especialistas apontam para uma reconstrução que custa € 300 milhões a € 600 milhões. Donde, quantas vidas de pobreza não poderiam ser salvas pela totalidade desse bilhão?

Curioso. Para uma alma não utilitarista (como a minha), esses valores seriam um bom pretexto para um compromisso: pagava-se a catedral e depois, com o dinheiro remanescente e com a concórdia de todos, era possível passar às questões humanitárias.

Pelos vistos, Singer e Plant não gostam de compromissos. É tudo ou nada. E a catedral? A catedral deveria ficar em ruínas para sinalizar a virtude dos contemporâneos.

Li o texto com interesse. Se o problema pudesse ser resumido a uma simples questão matemática —tiramos daqui, entregamos mais além— nada haveria a objetar. Infelizmente, o mundo é mais complexo do que Singer imagina.

Deixemos de lado algumas objeções básicas, como a ideia de que o dinheiro pertence sempre a alguém; e que esse "alguém" tem toda a legitimidade para o usar como entende.

Deixemos também de lado a evidência dolorosa de que, se o pensamento utilitarista de Singer pudesse ser aplicado retroativamente, as nossas cidades, as nossas bibliotecas, as nossas salas de concertos ficariam vazias como desertos.

O que me impressionou no texto foi a redução da nossa humanidade à sua dimensão mais básica. Ou, inversamente, a ideia de que a arte e a beleza ocupam sempre um lugar secundário em qualquer existência.

Fato: quando temos fome, os anseios da alma podem esperar. Mas, quando olhamos para a história da nossa civilização, as necessidades do corpo e da alma nunca foram entendidas como mutuamente excludentes.

O filósofo Roger Scruton, que vale sobretudo pelos seus textos sobre estética (opinião pessoal), explica isso em documentário que aconselho. O título é revelador: "Why Beauty Matters".

Durante 2.500 anos, a necessidade de beleza nunca esteve em causa: a beleza era o sinal de um mundo superior que se revelava na temporalidade dos homens; e, a partir do iluminismo, uma fonte de conhecimento que permitia aos homens serem melhores do que meras bestas.

Essa visão redentora do belo acabou por perder-se com o "desencantamento do mundo" moderno. Como explica Scruton, os valores passaram a ser justificados pela sua utilidade mais contábil. O que não é útil não vale nada. Consequências?

Sim, a escassez de beleza retira aos seres humanos uma das fontes mais importantes de consolação moral e espiritual. "Todos estamos na sarjeta", escrevia Oscar Wilde, "mas alguns de nós estão olhando para as estrelas." De que vale viver na sarjeta quando se apaga essa luz no céu?

Mas existe uma segunda privação: uma privação intelectual e até política. Quando tudo se reduz a mera contabilidade de secos e molhados, como suster conceitos intangíveis como "liberdade" ou "democracia"? Como alimentar qualquer ideal superior que precisa sempre da cultura e da arte para ganhar forma e voz?

Ironicamente, o utilitarismo progressista de Peter Singer é bastante semelhante ao filistinismo reacionário de quem defende menos verbas para cursos de humanidades e mais foco em áreas que geram "retorno imediato ao contribuinte".

Em ambos os casos, presenciamos o triunfo do utilitarismo raso, a defesa do rebaixamento do horizonte humano, a transformação do pensamento em adereço menor e até dispensável.

Usar 1 bilhão de euros para combater a pobreza teria efeitos imediatos mas circunstanciais, que se esgotariam rapidamente no tempo. Usar metade dessa verba para reerguer Notre-Dame é dar resposta à pergunta de Churchill. Se não defendemos o que de melhor os homens fizeram ou pensaram, estamos a lutar para quê?

A essa eu respondo: para nada.
João Pereira Coutinho

Desprezar a razão é catastrófico

Estamos nos acostumando a ignorar leis. Nem por isso elas deixam de existir. Os níveis de corrupção, violência e os seguidos desastres atestam um processo que começa no desprezo aos deveres mais elementares e consagram o desrespeito aos direitos fundamentais e às determinações legais mais simples.

Parece que resolvemos também revogar as leis da ciência. Espalham-se atitudes calcadas na ignorância delas. Negar a evolução das espécies. Dizer que a Terra é plana. Que não há aquecimento global nem perigo crescente nas mudanças climáticas. Que vacina é desnecessária e não funciona. Que amianto não faz mal à saúde. Que plano diretor urbano é tolice. Que desmatar não tem problema. Que se pode invadir e construir em qualquer lugar sem respeitar limites. Que defender matas, lagoas, rios e mares ou combater uso descontrolado de plásticos é coisa de hippie tontinho. Que reassentar moradores de áreas de risco é pecado político.



Mas a realidade é outra — e regida pelas leis da física. A da gravidade garante que construções desordenadas em encostas vão cair, pedras vão rolar, deslizamentos vão soterrar o que está embaixo. A da impenetrabilidade da matéria afirma que manilhas e canos entupidos com detritos não deixam passar água e levam a inundações. A ciência ensina que metal conduz eletricidade e fio desencapado pode eletrocutar. Que vazamento de combustível pode matar. Que materiais inflamáveis que liberam gases tóxicos matam quando usados em revestimentos de casas noturnas ou dormitórios de atletas. Que a resistência de materiais tem limites, drenagem com problema pode minar muros, viadutos, barragens.

A ciência tem leis. A cidade também. Construções ilegais estão fadadas a desabar.

Não é só porque as escolas não estão ensinando. É também porque não aprendemos, escolhendo só acreditar no que queremos. Mas o real se impõe. Sem respeitá-lo, sobra apenas a lei do mais forte.

A humanidade construiu civilizações sendo racional. Desprezar a razão é catastrófico.

Seguindo os breves

Já passamos por Jânio Quadros e Fernando Collor, os breves. Ambos foram impulsionados por eleitorado, em boa parte de classe média, insatisfeito com os padrões éticos vigentes na política, o primeiro brandindo uma vassoura, o segundo atacando marajás. Descuidados, ambos, do apoio parlamentar e partidário. Jânio governou por bilhetinhos, proibiu brigas de galo e biquínis, tentou um autogolpe, falhou e renunciou. Collor congelou a poupança dos outros, rivalizou com os marajás no trato com a coisa pública e renunciou sob a ameaça de impeachment.
Bolsonaro também surfou na onda anticorrupção – no caso, levantada pela Lava Jato. Como seus dois antecessores, ele tem precário suporte partidário, postura autocrática na política, uma visão em preto e branco do Brasil e governo errático. Vai pelo caminho dos dois antecessores
José Murilo de Carvalho

O bolsonarismo na prática

Não se pode analisar o governo Bolsonaro sem examinar a natureza ressentida do bolsonarismo — o desejo de forra contra o inimigo fabricado. Trata-se de dimensão fundamental, talvez mesmo aquela que amalgame os sentimentos disruptivos que decidiram a eleição de 2018.

Note-se que o ataque à universidade pública ora em curso não raro vem de gente formada pela universidade pública — contradição que é uma das marcas distintivas do rancoroso.

Abraham Weintraub, ministro da Educação, bolsonarista de primeira hora, é um ressentido. Vélez Rodríguez também o é, mas um desapetrechado para tocar a agenda de corrosão institucional. Sob a lógica reacionária que ora dirige o presidente, Weintraub, um executivo do desmonte, burocrata cujo rancor se mostra operacional, é escolha correta para o ministério, consistente com aquilo que o bolsonarismo sempre — e sem esconder — pregou para a educação pública por meio da máquina estatal: nunca um corpo com o qual mover um programa positivo de reformas sobre os tantos e tão graves problemas que há, especialmente no ensino fundamental, mas uma estrutura aparelhável dentro da qual promover a tal guerra cultural.

O bolsonarismo também depende do “nós contra eles”. É preciso ter clareza sobre a essência do projeto de poder bolsonarista e a forma como se desenvolve —para o que o Ministério da Educação é a superfície perfeita, ali onde se pode fetichizar as figuras, logo facções, do estudante vítima indefesa de doutrinação ideológica (que derivaria de um comando central comunista) e do professor prosélito esquerdista que, sob ordens do partido, corrompe inteligências e multiplica desinformados.

A compreensão desse esquema binário — forja de conflitos — é crucial ao entendimento de que há, hoje, dois ministérios da Educação: um, o público, de todo inerte e incapaz de tocar adiante a mais modesta política pública, para prejuízo de crianças e jovens os mais pobres; e o interno, um cupinzeiro no cio, aquele em que se trava a eterna guerrilha, a que mobiliza as tropas, contra os inimigos inventados, os agentes do establishment (militares incluídos), incrustados no Estado para defender os aparatos que transformaram escolas e universidades em fábricas de analfabetos petistas.


É dessa batalha fantasiosa havida dentro do ministério que emerge, para alguma expressão do ministério de fora, o senso de “balbúrdia” que explica o anúncio — para posterior recuo — do bloqueio arbitrário em parte do orçamento de um punhado de universidades federais. Weintraub não retrocedeu em seguida porque pressionado pela reação da sociedade. Diria mesmo que ele não voltou atrás, sendo ambos os movimentos —o avanço e o recuo — produtos de cálculo tipicamente bolsonarista: de início, um afago discricionário à militância cujo ódio bebe ainda melhoro sangue que jorra de poucas mas representativas cabeças, como ada UF F; depois, ante a previsível resistência, o comunicado que anula a arbitrariedade que resultara na seleção original de afetados para estender o contingenciamento de recursos, também arbitrariamente (porque sem qualquer critério), a todas as universidades —o que terá sido sempre o objetivo.

Vélez Rodríguez era um péssimo ministro — como o é Weintraub, con forme grita a inação do ministério. Não caiu porque ignorasse as funções do cargo e as responsabilidades da pasta, mas porque incapaz de desdobrar o projeto bolsonarista de desidratação de tudo quanto possa ser identificado como musculatura institucional razoavelmente autônoma — no caso da educação, claro, a universidade.

Ressalto, então, um ponto relevante, outro entre os caráteres do bolsonarismo a respeito do qual tenho escrito: a necessidade permanente de cultivar confrontos e cevar crises como semeadura para a própria subsistência. Não nos iludamos. Nenhum bolsonarista — tanto mais um antigo professor universitário — bloqueia dinheiros de universidades, no tranco, sem saber exatamente onde e por que mexe; para que mexe. Sim, é o que quero dizer: a ação espera — quer, deseja — o contragolpe; se violento, tanto melhor.

Seria o cenário dos sonhos bolsonaristas, a mais límpida maneira de sustentar o terceiro turno em que encontra seu ar: provocar a reação do que seja facilmente designado como extrema esquerda, de preferência com greves, com protestos destrutivos nas ruas, tudo quanto possa projetar polarização e ser caracterizado como movimento paralisador de um país já paralisado, e que sublinhe os que se manifestam como aqueles que, agindo em defesa de interesses pessoais e mesquinhos, jogariam contra o país, a turma que não quer ver o Brasil dar certo — o paraíso caótico, o estado de conflagração, por meio do qual o bolsonarismo, em campanha constante, melhor consegue falar, sem intermediários, à população.

Lembre-se, leitor, da revolta dos caminhoneiros e de como o bolsonarismo a instrumentalizou. Tem método.

Pensamento do Dia


A armadilha do populismo

O populismo não é novidade. É recorrente. Ele assume formas recondicionadas às circunstâncias de cada época. Mas, seu miolo sociológico é conhecido. Tem um componente de reacionarismo, idealização de um passado, sempre irreal e irrealizável. Nasce em momentos que combinam muita mudança, muita incerteza, permanente instabilidade estrutural. As transições profundas, radicais, são de grande complexidade. Difíceis de processar. Os modelos prospectivos baseados na extrapolação do presente deixam de funcionar.

São os momentos em que o presente não contém informação suficiente sobre o futuro. Setores inteiros da economia, até pouco tempo responsáveis por parcela significativa da geração de renda e emprego, desaparecem ou se transformam radicalmente.

Basta um exemplo: a indústria automobilística, centrada no motor a combustão, empregava muito, sobretudo por seus efeitos dinâmicos na economia. Ela está em metamorfose, passará a ter por centro o motor elétrico. Caem as barreiras à entrada, empresas poderosas tradicionais, como a Volkswagen, têm que investir em sua própria transformação para poderem competir com novatas, como a Tesla, em seu próprio mercado de origem, a Alemanha. Ela continuará a fertilizar outras indústrias, mas muito diferentes.

Sai a siderurgia, entra a produção de baterias, novos materiais, mais leves e mais resistentes. Os requisitos para o emprego mudam radicalmente, pelo efeito da disseminação da inteligência artificial e da robotização. Milhões de postos de trabalho serão destruídos. Milhões serão criados, mas demandando habilidades e qualificações totalmente novas. Que reação pode ter a maioria da população, prisioneira e vítima de um processo difícil de entender, prever e incontrolável? Insegurança, medo e indignação. Ela quer explicações e culpados por essa doença coletiva da transição.

Terreno fértil para o populismo, de esquerda e de direita. Ambos oferecem a mesma coisa, com sinal trocado: um inimigo unificado e claro, culpado de tudo, explicação e solução simples. Nenhuma das duas correntes tem uma proposta econômico-social que funcione. Ambas carregam uma propensão irresistível ao autoritarismo.

A esquerda tem sido incapaz de reciclar seus modelos analíticos, sua teoria da história e do conflito social. Acaba simplificando o que é complexo, optando por inimigos falsos e fáceis. Oferece soluções que não funcionam mais. Ultrapassadas, levam o populismo à esquerda para o campo do reacionarismo.

O populismo de direita nasce reacionário e tem inimigos imaginários, ou transforma fenômenos reais em espantalhos que possa queimar na pira da intolerância. Mesmo quando alega que seu modelo econômico é liberal, sua visão de mundo e sua política real são iliberais.

Os populistas de direita, protagonistas da mais recente onda política, fazem ofertas muito atraentes e prometem o irrealizável. Quando chegam ao governo, não conseguem realizar o ressurgimento que prometem. Escalam os ataques aos inimigos por eles criados, como se sua eliminação fosse resolver os problemas. Frustram a maioria e terminam no recesso da história. A massa é sempre vulnerável a essas mensagens fantasiosas e fantasmagóricas.

O que espanta é que intelectuais se deixem inebriar por essas sereias evidentes. Economistas liberais acreditam que será possível implementar um regime de livre-mercado, sob o manto de governos populistas. Rapidamente descobrem que essa direita, que não é nova, mas parece ser, reemerge apenas em momentos de profunda inflexão do processo histórico, é politicamente iliberal. Sacrifica sempre as liberdades econômicas, em favor dos impulsos populistas. Terminam todos congelando preços, subsidiando setores em situação terminam irreversível, intervindo na economia arbitrariamente.

O liberalismo, é verdade, fragmentou-se. Há uma corrente “livre-mercadista”, que admite governos iliberais. Como se fosse possível secionar liberdades econômicas das liberdades políticas. Um mundo de investidores e consumidores totalmente livres, vivendo em um ambiente competitivo, e contribuintes e eleitores constrangidos por regulações que solapam sua soberania.

O liberal autêntico continua a buscar o sonho clássico, de liberdades no mercado e na política. O “livre-mercadista”, há vários deles no governo Trump, não agregam as liberdades políticas ao seu credo econômico. Convivem melhor com governos autocráticos.

Mas também acabam descobrindo que a própria liberdade de mercado será sacrificada, se houver tensão entre política e mercado. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Chile de Pinochet. As concessões contralibertárias dos liberais redundam em desigualdade, oligarquia e oligopólio.

O socialismo perdeu a aversão às desigualdades social e economicamente produzidas, aliou-se a setores retrógrados, colaborou para a persistência e, em muitos casos, aumento das desigualdades. Perdeu a noção de quem são os aliados preferenciais e os adversários principais. Cedeu à tendência férrea da oligarquização da política.

É nesse recuo dos liberais e dos socialistas democráticos que prospera o populismo autoritário. O engano de alguns intelectuais, também é, todavia, parte da transição. O intelectual símbolo dessa malaise surgida da convivência entre um mundo que desvanece e outro que surge, foi Heidegger. Autor de uma filosofia brilhante, mas que cedeu ao canto inebriante do nazismo.

Uma das tarefas da crítica cultural, tomada no sentido que lhe deu o filósofo americano Richard Rorty, é mostrar os limites e contradições desses híbridos, que surgem como acomodação a alternativas que pouco atendem aos requisitos fundamentais de sua própria filosofia moral.

Por outro lado, somos todos, igualmente, seres da transição. Vivemos a insuficiência epistemológica crescente dos nossos modelos, a insuficiência de nossas explicações, a ineficácia estrutural de nossas soluções. Somos portadores do provisório e da dúvida. Está na hora de construirmos uma sociologia, uma política, uma economia e uma moral da transição, capaz de lançar pontes efetivas para o futuro que estaremos a construir.

Fisiologismo virou Desdêmona que nunca morre

Antes de tudo, é preciso pedir desculpas por misturar o profano —o fisiologismo— com o sublime —a literatura shakespeariana. Deve-se a ousadia à licença poética que Shakespeare se autoconcedeu para propiciar a Desdêmona um célebre suspiro post-mortem. Algumas linhas depois de ter sido sufocada por Othello, Desdêmona ganhou uma sobrevida. É como se o autor desejasse dar-lhe uma última fala digna antes de arrancá-la de cena. Ela protesta contra a própria morte, se despede e, só então, morre definitivamente.

Com o fisiologismo acontece algo parecido. Todo novo Othello que assume o Planalto anuncia a morte do toma-lá-dá-cá. Entretanto, poucos capítulos depois do início do governo —qualquer governo— o flagelo revive. Um detalhe injeta sordidez na comparação: diferentemente do que sucede com Desdêmona, o fisiologismo não morre. Ele estrebucha, protesta contra o hipotético sufocamento. Depois, levanta barricadas no Congresso, pede mais cargos, exige mais verbas e alcança a graça da sobrevida eterna.

Autoproclamado cavaleiro de uma nova ordem, Jair Bolsonaro decretou o fim do "é dando que se recebe". No mês passado, porém, autorizou Onyx Lorenzoni a entregar às bancadas estaduais listas de cargos de segundo escalão. Dias atrás, o próprio capitão encostou o umbigo no balcão para avalizar a recriação de dois ministérios que havia fundido numa única pasta. Coisa destinada a saciar o apetite do centrão. Ficou entendido que Bolsonaro é "mais do mesmo", só falta ajustar o preço.

Em 1996, em visita ao Nordeste, o então presidente Fernando Henrique Cardoso anunciara a morte do fisiologismo. A platéia ficou em dúvida: o presidente saíra da realidade ou adotara o cinismo como método de governo? Verificou-se que a segunda opção era a correta. Nessa época, o toma-lá-dá-cá ganhou um verniz sociológico. FHC evocava Max Weber e sua ética da responsabilidade como álibi para combinar modernidades como o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal com o arcaísmo das alianças promíscuas e a rendição aos maus costumes.

Na bica de obter um segundo mandato, em 2006, Lula cavalgou o mesmo discurso. Depois de um primeiro reinado em que conviveu com um consórcio parlamentar remunerado por baixo da mesa, proclamou que a maioria congressual passaria a ser assegurada por um "governo de coalizão", com metas e princípios deitados sobre o papel. A piada se desfez quando o PMDB (hoje MDB) decidiu testar a eficácia do novo modelo encaminhando a Lula uma petição de cargos –do posto de ministro da Saúde, ao comando à dos Correios e de Furnas.

Para contar toda a história, é preciso recorrer a outro personagem de Shakespeare, o rei Ricardo 3º. Preparava-se para a batalha de sua vida. O exército de Henrique, o conde de Richmond, marchava contra suas tropas. O embate determinaria o novo monarca da Inglaterra.

O rei requisitou a preparação de seu cavalo preferido. Envolto num esforço para ferrar os cavalos da tropa real, o ferreiro alegou que precisaria de tempo para providenciar novas ferraduras. Impaciente com o avanço do inimigo, o cavalariço de Ricardo pediu pressa. Deu-se o desastre.

Ajustadas as três primeiras ferraduras, verificou-se que faltavam dois pregos para a fixação da quarta. Na correria, a peça foi colocada com desmazelo. No fervor da batalha, desprendeu-se. O animal caiu. O rei foi ao chão. "Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!", bradou Ricardo 3º. Por conta de um par de pregos, perdeu-se um trono.

No embate entre os governos e o Congresso, a encrenca começou com Tancredo Neves, ainda na fase de composição da frente que prevaleceria no Colégio Eleitoral que marcou o alvorecer da redemocratização. Sentido o chão fugir-lhe dos pés, Tancredo bradou: "Meu reino! Meu reino! Uma aliança pelo meu reino!" E nasceu a Frente Liberal (ex-pefelê, hoje DEM), que se juntou ao PMDB, que se enganchou com petebês, pepês e que tais.

A morte salvou Tancredo da execução dos acordos que ele celebrou. Herdeiro dos compromissos, José Sarney honrou-os meticulosamente. Desde então, a política brasileira cavalga em trote de cavalo manco. Perde uma batalha atrás da outra. Os partidos viraram agremiações 100% financiadas pelo déficit público. E o Brasil tornou-se um belo ponto no mapa, à espera de ser transformado numa nação.

Poder de resistência



Onde há poder, há resistência
Michel Foucault

Os vencedores levam tudo

Mas que briga é aquela que tem acolá? É o filho do homem com o seu general. Não pretendo analisar uma luta interna no governo, cheia de insultos escatológicos.

Pergunto apenas se vale a pena tantos militares no governo, com ataques permanentes contra eles e uma certa ambivalência de Bolsonaro. Se a ideia é apanhar pelo Brasil, talvez não seja a melhor aposta. O risco de desgaste das Forças Armadas é grande. E os resultados até agora, desanimadores.


Os termos que certos setores do bolsonarismo colocam são, na verdade, uma armadilha. Não respondê-los significa um silêncio constrangedor para quem participa do mesmo projeto de governo. Respondê-los é cair numa discussão de baixo nível, um filme onde todos morrem no final.

A única experiência que tive com Olavo de Carvalho foi um trecho de seu livro “O imbecil coletivo”. Nele, Olavo diz que não tenho competência nem para ser sargento do Exército de Uganda ou do Zimbábue, não me lembro.

Foi há muito tempo. Minha reação foi esperar que o Exército de Uganda, ou o do Zimbábue, protestasse. Como não disseram nada, também fiquei na minha.

Todo esse vespeiro no governo Bolsonaro é também resultado da fragilidade da oposição. Mas, observando as consequências, percebo que o Congresso vai preenchendo o vazio de poder não para oferecer uma alternativa mais sensata à sociedade, mas para garantir um retrocesso no aparato de controle da corrupção. Um dos pilares da Lava-Jato é a integração das instituições. O Congresso quer impedir que a Receita Federal e o Ministério Público compartilhem informações. Numa comissão da Câmara, tiraram o Coaf das mãos de Moro, um outro desmanche dos pressupostos da Operação Lava-Jato.

E não é só o Parlamento. O STF sente-se mais tranquilo para blindar os deputados estaduais, que só podem ser presos com autorização das Assembleias. Algo que sabemos muito improvável.

Outro passo: autorizar anistia para crimes de colarinho branco, validando o decreto de Temer.

Bolsonaro se apresentou com a bandeira anticorrupção. No entanto, no mundo real, há vários indícios de retrocesso. Não houve competência nem para evitá-los, quanto mais avançar numa agenda que interessou a milhões de eleitores.

Os tropeços de Bolsonaro e dos seus ardentes defensores abrem um espaço de poder, até agora percorrido pelo Congresso com seus objetivos claros.

Enquanto isso, ele se diverte dando tiros de retórica. Ele prometeu que vai fazer de Angra dos Reis uma Cancún brasileira. São ideias de quem está no mar e pisou pouco em terra firme, nos morros e favelas de Angra.

Esta semana, houve tiroteio, dias depois da passagem do governador Wilson Witzel. Ele foi a Angra num helicóptero e disse: “Vou acabar com a bandidagem.” Deu uns tiros, inclusive em tendas de oração, felizmente desertas, hospedou-se num hotel de luxo e voltou para o Rio.

Outra fixação de Bolsonaro é acabar com a Estacão Ecológica de Tamoios, próxima ao lugar onde foi multado por pesca. Estação ecológica é de acesso limitado aos cientistas porque é uma permanente fonte de pesquisa.

No passado, critiquei publicamente o senador Ney Suassuna, que comprou um barraco de um posseiro dentro da Estação de Tamoios e nela queria construir sua mansão. Uma década depois, a ideia do senador acaba se impondo sobre a minha. Cancún implica construir muitas mansões e hotéis, e mandar para o espaço nossa riqueza biológica concentrada ali naquela unidade de conservação.

A política de meio ambiente de Bolsonaro parte da negação do aquecimento global, e em todas as áreas ambientais tem dado sinais negativos. O consolo é que há mais gente lutando para proteger seu território. No entanto, certos danos podem ser irreversíveis. O licenciamento de agrotóxicos é o mais liberal da história, num momento em que o mundo se preocupa não apenas com a saúde humana, mas também com o desaparecimento das abelhas, dos insetos e das borboletas.

O processo vai ser acentuado também no Brasil. E, sem abelhas, como é que vão polinizar nossas plantas? Dando tiros de espingarda? Se apenas brigassem entre si, os bolsonaristas provocariam menos danos que a briga permanente do governo contra a natureza.

Governos passados nos levaram a esperança e alguns bilhões de dólares. Bolsonaro ameaça levar pedaços vivos do Brasil.

Brasil das trevas


Populistas no Brasil

Estudo realizado pelo Instituto para Políticas Públicas da Universidade de Cambridge, em parceria com o jornal The Guardian, mostrou que, entre os 19 países pesquisados, o Brasil é o que tem a população mais inclinada ao populismo. A pesquisa define populismo como “uma ideologia estreita – ou seja que, se dirige só a uma parte da agenda política – que separa a sociedade em dois grupos antagônicos”, isto é, “o povo puro” contra “a elite corrupta”, e sustenta que a política deve ser “a expressão da vontade geral do povo”.

Os entrevistados identificados como inclinados ao populismo responderam que concordavam “fortemente” com as seguintes afirmações: “Meu país está dividido entre pessoas comuns e as elites corruptas que as exploram” e “A vontade do povo deveria ser o princípio mais alto na política de um país”. Na média, os populistas correspondem a 22% do eleitorado global; no Brasil, são 42%, o mais alto porcentual do ranking, seguido da África do Sul. A explicação, segundo os pesquisadores, é que ambos os países foram “devastados por anos de corrupção que deterioraram a fé não somente na classe política, como também nas instituições democráticas”. Entre os brasileiros, 84% concordam “fortemente” ou “tendem a concordar” que o seu Estado “é totalmente governado por uns poucos figurões que buscam seu próprio interesse”, índice similar para homens e mulheres, pessoas de todas as idades e eleitores dos maiores partidos.

O levantamento indica que os populistas tendem a crer que a globalização prejudicou seu padrão de vida, sua economia e a vida cultural de seu país. À esquerda ou à direita, os populistas apoiam a regulação estatal de bancos, indústria farmacêutica e empresas de tecnologia. Também fazem uso intenso das mídias sociais como fonte de notícias e meio de proselitismo, turbinando a propagação de suas teorias da conspiração características.

O reparo que se poderia fazer ao estudo é à sugestão implícita de que o populismo no Brasil só teria ganhado corpo com o bolsonarismo, quando este é, na acepção técnica do termo, um movimento reacionário, uma reação ao populismo lulopetista. Foi o mesmo jogo, com as mesmas táticas: acusação indiscriminada ao “sistema” que oprime “o povo”, o qual só eles, bolsonaristas e petistas, julgam representar; uso de ameaças superlativas (“o capital” e “o imperialismo americano”, por parte do petismo, ou “o globalismo” e “o comunismo”, por parte do bolsonarismo); reivindicação do monopólio da moralidade; e demonização dos adversários.

Conforme um levantamento do Instituto V-Dem, entre 2007 e 2017, ao longo da era petista, a democracia no Brasil se deteriorou em quatro dos cinco principais indicadores, a saber: no eleitoral (que mensura fatores como eleições limpas e liberdade de associação e expressão); no liberal (liberdades individuais e limitações judiciais e legislativas ao Executivo); no participativo (participação da sociedade civil, voto popular direto, governos locais e regionais); e sobretudo no componente deliberativo, que mede em que grau as decisões políticas são motivadas pela razão e pelo bem comum, em contraste a apelos emocionais, interesses corporativos ou coerção. Nesse quesito estamos na 104.ª posição. Só não pioramos no componente igualitário (distribuição equânime de proteção, recursos e acesso ao poder) porque já estávamos muito mal, na 108.ª posição.

Mas restringir a responsabilidade ao lulopetismo ou ao bolsonarismo seria um expediente simplista, uma típica tentação populista, além de tomar o que é um sintoma da doença pela sua causa. Afinal, os populistas não chegam ao poder pela força, mas pelo voto. O populismo que empobrece nossa cultura política é fruto de uma cultura política cronicamente pobre. A intoxicação do espírito democrático pelo populismo no Brasil, constatada pela pesquisa, é o resultado natural da incapacidade do atual sistema político de representar adequadamente os anseios da sociedade, razão pela qual movimentos que prometem liderar o “povo” contra a “elite” ganham cada vez mais espaço.
Editorial - O Estado de S.Paulo

O drama de 1,4 milhão de brasileiros na fila do INSS

Três números não saem da cabeça da desempregada Josilene Batista. Os 30 dias que se passaram desde que ficou viúva, os R$ 400 que precisa para comprar remédio todo mês, e os mais de 100 dias de espera por uma decisão do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

A espera de Josilene pela resposta do governo já dura mais que o dobro dos 45 dias previstos em lei como o limite para o INSS dar uma resposta.

Esse prazo deveria ser contado desde a data de entrega dos documentos para pedir a aposentadoria ou outro benefício até o primeiro pagamento.


Quando avalia que alguém não cumpre os requisitos, o INSS, claro, pode recusar o pedido ao benefício. Mas hoje o problema tem começado antes mesmo de uma possível negativa.

As antigas filas quilométricas nas portas das agências se tornaram uma espécie de fila virtual de pessoas que simplesmente aguardam um "sim" ou um "não" do INSS.

É por isso que a demora que Josilene enfrenta não é uma exceção. O tempo médio de espera está hoje em 135 dias - o triplo do prazo estabelecido pela lei, segundo dados do próprio órgão.

Dos 2,2 milhões de pedidos em análise pelo INSS hoje, 1,4 milhão já estão atrasados. São casos que envolvem diversos benefícios, como aposentadoria por idade, por tempo de contribuição, auxílio-doença, aposentadoria rural, entre outros.

O pedido de Josilene, feito em janeiro, foi para receber o benefício assistencial pago a idosos ou pessoas com deficiência em condição de pobreza, o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ele tem valor de um salário mínimo (R$ 998) e, diferente da aposentadoria, não dá direito a 13º e não deixa pensão para os dependentes.

Para ter direito a ele, é preciso provar que a renda familiar por pessoa é de até um quarto do salário mínimo (menos de R$ 250). Além disso, como ainda não chegou aos 65 anos para ser considerada idosa, Josilene tem que provar impedimentos (físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais) para cumprir suas atividades.

Com 51 anos, diabetes, hipertensão e apenas 20% da visão no olho esquerdo, ela conta que tem tido dificuldade até para caminhar sozinha. A última vez que Josilene trabalhou foi em um frigorífico, até 2016.

"Ninguém quer uma pessoa assim para trabalhar. Eu não consigo emprego por causa dos problemas de saúde do momento. Eu realmente espero melhorar, e aí eu posso voltar a trabalhar", diz.

Enquanto não consegue trabalhar, os R$ 89 do Bolsa Família são a única renda de Josilene, que mora na cidade de Caruaru, em Pernambuco.

O problema é que, só para comprar os remédios, ela precisa de R$ 400. São medicamentos para o "coração", como ela explica, e a insulina, já que o tipo que ela usa não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

"A gente deixa de comprar alguma coisa de comida pra comprar a medicação", diz ela, que tem precisado de ajuda financeira da filha.

A situação ficou mais difícil depois da morte do marido, Joseildo Barbosa, no começo deste ano, depois de ter tomado doses altas de remédios psiquiátricos. Eles ficaram juntos por 35 anos.

"Ele se desesperou, tomou grande quantidade de remédio e terminou falecendo por falta de socorro médico. Eu tenho todos os laudos dele, da esquizofrenia. Ele também tinha pedido benefício ao INSS, mas tinha tudo negado, mesmo tendo direito."

Josilene se mudou para a casa do filho, Josino Batista, de 32 anos.

"Depois que meu marido faleceu, o único jeito de sobreviver foi vir morar com ele. É que R$ 89 não dá pra alugar nem um quarto, imagina uma casinha."

Quando Josilene disse que pretendia voltar ao mercado de trabalho, a BBC News Brasil perguntou quais são os planos dela.

"Eu faço qualquer tipo de serviço, não dá pra escolher muito. Eu não tenho formação de computador, nada disso. Mas eu aprendo. Eu estou no mundo é pra aprender. Mas eu preciso de saúde."

Em Brasília, esqueceram do futuro

Humanos seguem para Marte no final da próxima década, anuncia a Nasa. Nessa época, a Universidade de Durham, no Reino Unido, começa a usar moléculas motorizadas, dirigidas pela luz, para perfurar individualmente células cancerosas, e destruí-las em 60 segundos.

Esses experimentos poderão ser acelerados pela novidade da IBM: um chip capaz de guardar um bit de informações num único átomo — do tamanho da moeda de um centavo — vai reter dados em volume similar ao da biblioteca musical da Apple.


Visto de Brasília, esse panorama global pautado pela fusão de tecnologias, bem como suas consequências sobre a produção, o emprego e as políticas públicas, parece distante da vida real, muito além da Via Láctea.

No Palácio do Planalto prevalece a crença de que só o atraso leva ao futuro. São raras as exceções, entre elas a equipe empenhada em retirar o Estado dos escombros fiscais.

O Judiciário se desnorteou, com um Supremo visto como adversário ou parceiro de frações políticas, como define o pesquisador Conrado Hübner.

Já o Congresso dá prioridade à vingança contra a Operação Lava-Jato.

O futuro sumiu da Praça dos Três Poderes. Poucos ali se mostram preocupados com a existência de 13 milhões de desempregados quando há milhares de vagas não preenchidas em grupos como Cyberlabs. Não se vê aflição com a dependência tecnológica, nem para facilitar a inovação em empresas como a Raízen, que extrai energia da biomassa suficiente para abastecer o Rio por um ano, ou a Embraer, que projeta, com a Uber, um carro voador elétrico.

Na asfixia política produzida em Brasília, não sobra lugar no futuro imediato para gente como Gabriel Liguori desenvolver um gel a partir de células de um paciente para criação de um coração artificial, impresso em 3-D e aplicável em transplantes. Ou ainda, para uma empresa de cartão de crédito eletrônico como a de Henrique Dubugras, 23 anos, e Pedro Franceschi, 24, que já disputa mercado com a Amex. Ambos celebram o primeiro US$ 1 bilhão da Brex, uma década antes da viagem humana a Marte.