O populismo não é novidade. É recorrente. Ele assume formas recondicionadas às circunstâncias de cada época. Mas, seu miolo sociológico é conhecido. Tem um componente de reacionarismo, idealização de um passado, sempre irreal e irrealizável. Nasce em momentos que combinam muita mudança, muita incerteza, permanente instabilidade estrutural. As transições profundas, radicais, são de grande complexidade. Difíceis de processar. Os modelos prospectivos baseados na extrapolação do presente deixam de funcionar.
São os momentos em que o presente não contém informação suficiente sobre o futuro. Setores inteiros da economia, até pouco tempo responsáveis por parcela significativa da geração de renda e emprego, desaparecem ou se transformam radicalmente.
Basta um exemplo: a indústria automobilística, centrada no motor a combustão, empregava muito, sobretudo por seus efeitos dinâmicos na economia. Ela está em metamorfose, passará a ter por centro o motor elétrico. Caem as barreiras à entrada, empresas poderosas tradicionais, como a Volkswagen, têm que investir em sua própria transformação para poderem competir com novatas, como a Tesla, em seu próprio mercado de origem, a Alemanha. Ela continuará a fertilizar outras indústrias, mas muito diferentes.
Sai a siderurgia, entra a produção de baterias, novos materiais, mais leves e mais resistentes. Os requisitos para o emprego mudam radicalmente, pelo efeito da disseminação da inteligência artificial e da robotização. Milhões de postos de trabalho serão destruídos. Milhões serão criados, mas demandando habilidades e qualificações totalmente novas. Que reação pode ter a maioria da população, prisioneira e vítima de um processo difícil de entender, prever e incontrolável? Insegurança, medo e indignação. Ela quer explicações e culpados por essa doença coletiva da transição.
Terreno fértil para o populismo, de esquerda e de direita. Ambos oferecem a mesma coisa, com sinal trocado: um inimigo unificado e claro, culpado de tudo, explicação e solução simples. Nenhuma das duas correntes tem uma proposta econômico-social que funcione. Ambas carregam uma propensão irresistível ao autoritarismo.
A esquerda tem sido incapaz de reciclar seus modelos analíticos, sua teoria da história e do conflito social. Acaba simplificando o que é complexo, optando por inimigos falsos e fáceis. Oferece soluções que não funcionam mais. Ultrapassadas, levam o populismo à esquerda para o campo do reacionarismo.
O populismo de direita nasce reacionário e tem inimigos imaginários, ou transforma fenômenos reais em espantalhos que possa queimar na pira da intolerância. Mesmo quando alega que seu modelo econômico é liberal, sua visão de mundo e sua política real são iliberais.
Os populistas de direita, protagonistas da mais recente onda política, fazem ofertas muito atraentes e prometem o irrealizável. Quando chegam ao governo, não conseguem realizar o ressurgimento que prometem. Escalam os ataques aos inimigos por eles criados, como se sua eliminação fosse resolver os problemas. Frustram a maioria e terminam no recesso da história. A massa é sempre vulnerável a essas mensagens fantasiosas e fantasmagóricas.
O que espanta é que intelectuais se deixem inebriar por essas sereias evidentes. Economistas liberais acreditam que será possível implementar um regime de livre-mercado, sob o manto de governos populistas. Rapidamente descobrem que essa direita, que não é nova, mas parece ser, reemerge apenas em momentos de profunda inflexão do processo histórico, é politicamente iliberal. Sacrifica sempre as liberdades econômicas, em favor dos impulsos populistas. Terminam todos congelando preços, subsidiando setores em situação terminam irreversível, intervindo na economia arbitrariamente.
O liberalismo, é verdade, fragmentou-se. Há uma corrente “livre-mercadista”, que admite governos iliberais. Como se fosse possível secionar liberdades econômicas das liberdades políticas. Um mundo de investidores e consumidores totalmente livres, vivendo em um ambiente competitivo, e contribuintes e eleitores constrangidos por regulações que solapam sua soberania.
O liberal autêntico continua a buscar o sonho clássico, de liberdades no mercado e na política. O “livre-mercadista”, há vários deles no governo Trump, não agregam as liberdades políticas ao seu credo econômico. Convivem melhor com governos autocráticos.
Mas também acabam descobrindo que a própria liberdade de mercado será sacrificada, se houver tensão entre política e mercado. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Chile de Pinochet. As concessões contralibertárias dos liberais redundam em desigualdade, oligarquia e oligopólio.
O socialismo perdeu a aversão às desigualdades social e economicamente produzidas, aliou-se a setores retrógrados, colaborou para a persistência e, em muitos casos, aumento das desigualdades. Perdeu a noção de quem são os aliados preferenciais e os adversários principais. Cedeu à tendência férrea da oligarquização da política.
É nesse recuo dos liberais e dos socialistas democráticos que prospera o populismo autoritário. O engano de alguns intelectuais, também é, todavia, parte da transição. O intelectual símbolo dessa malaise surgida da convivência entre um mundo que desvanece e outro que surge, foi Heidegger. Autor de uma filosofia brilhante, mas que cedeu ao canto inebriante do nazismo.
Uma das tarefas da crítica cultural, tomada no sentido que lhe deu o filósofo americano Richard Rorty, é mostrar os limites e contradições desses híbridos, que surgem como acomodação a alternativas que pouco atendem aos requisitos fundamentais de sua própria filosofia moral.
Por outro lado, somos todos, igualmente, seres da transição. Vivemos a insuficiência epistemológica crescente dos nossos modelos, a insuficiência de nossas explicações, a ineficácia estrutural de nossas soluções. Somos portadores do provisório e da dúvida. Está na hora de construirmos uma sociologia, uma política, uma economia e uma moral da transição, capaz de lançar pontes efetivas para o futuro que estaremos a construir.
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