sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro no mundo da lua

O presidente Jair Bolsonaro, como um valentão na hora do recreio, chamou o País para a briga. Descontrolado como poucas vezes se viu em sua vergonhosa Presidência, classificou como “maricas” os milhões de brasileiros que se preocupam com a pandemia de covid-19.

Donde se depreende que corajoso, para Bolsonaro, é quem ignora as medidas de proteção contra a pandemia, pois, afinal, segundo suas próprias palavras, “todos nós vamos morrer um dia”. Ou seja, o presidente da República está explicitamente incitando seus governados a correr risco de morte.

Mas não ficou só nisso. Bolsonaro questionou a inteligência dos eleitores que apoiam prefeitos “que fecharam as cidades” – isto é, que tomaram providências para conter a pandemia: “Por que esses caras estão bem na frente nas pesquisas, meu Deus do céu?”.

E tudo isso depois de celebrar um suposto revés na pesquisa da vacina desenvolvida pela China em parceria com São Paulo, Estado governado por seu maior desafeto, João Doria.

Quase nada escapou da logorreia de Bolsonaro. Ele atacou os jornalistas, chamando-os de “urubuzada”, tornou a questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas nas eleições brasileiras e ainda fez piada grosseira com as movimentações políticas de centro para enfrentá-lo nas eleições de 2022: “Aí vem a turminha aí falar de ‘ah, queremos um centro, nem ódio pra lá nem ódio pra cá’. Ódio é coisa de maricas, pô. Meu tempo de bullying na escola era na porrada”.


Completou a glossolalia queixando-se de que é responsabilizado “por tudo o que acontece no Brasil” e que a Presidência é uma “biboca” que “tem criptonita ou um formigueiro”. Emendou criticando os que querem seu lugar “falando besteira o tempo todo, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo os familiares o tempo todo”. A menção aos “familiares” não foi gratuita: sempre que o cerco judicial ao filho Flávio Bolsonaro no escândalo das rachadinhas se aperta, o presidente perde as estribeiras.

Mas a prova cabal de que o equilíbrio de Bolsonaro depende cada vez mais das fases da Lua foi sua tresloucada ameaça de declarar guerra aos Estados Unidos. O presidente queixou-se das cobranças feitas por Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, a respeito da proteção da Amazônia e, após questionar “como é que podemos fazer frente a tudo isso”, amparou-se no seu chanceler Ernesto Araújo, outro selenita, para declarar: “Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona”. Custa a crer que os militares que estão no entorno de Bolsonaro não se envergonhem de seu “capitão” ante tamanho desatino, que enxovalha a Presidência da República.

Se tudo isso somado não constitui clara afronta ao decoro do cargo, ou seja, crime de responsabilidade passível de impeachment, como determina o artigo 7.º da Lei 1.079, é difícil saber o que mais seria. Mas Bolsonaro desafia os brasileiros e suas leis há muito tempo, desde a época em que, como deputado, violava o decoro a cada vez que abria a boca, sem contudo ser punido. E não será agora, pelo menos enquanto estiver sob a proteção do notório Centrão – que, em troca, coloniza um governo sem rumo, cujo símbolo maior é a inépcia de um ministro da Economia que deu agora de falar em risco de “hiperinflação” em razão da escalada da dívida que lhe cabe, e a seu chefe, administrar.

Mas os brasileiros não responderão a mais esse repto do sr. Bolsonaro, pois têm mais o que fazer do que dar atenção a um presidente que se comporta como o buliçoso da turma do fundão. Há uma pandemia a enfrentar, uma economia a recuperar e um País a reconstruir. “Entre pólvora, maricas e o risco de hiperinflação, temos mais de 160 mil mortos, uma economia frágil e um Estado (o Amapá) às escuras”, lembrou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que completou: “Em nome da Câmara dos Deputados, reafirmo o nosso compromisso com a vacina, a independência dos órgãos reguladores e com a responsabilidade fiscal”. Para nossa sorte, nem todos em Brasília estão no mundo da lua.

De que é feito um 'Mito'


A política é constituída por homens sem ideais e sem grandeza
Albert Camus

Na boca do mundo

A mistura de ignorância com empáfia numa mente desequilibrada jogou o Brasil no ridículo internacional ao ameaçar os Estados Unidos com uma guerra, devido à possibilidade de sanções econômicas por causa do desmatamento da Amazônia.

O presidente Bolsonaro vive se queixando de que sua vida está “uma desgraça” (e a dos brasileiros?), e parece por esses dias mais fragilizado do que normalmente. Transformar o país que governa em motivo de piada no mundo, no entanto, é arriscar-se na linha que separa a sanidade mental da simples gafe.

A paráfrase que fez do conceito de guerra de Carl Von Clausewitz é uma humilhação para os generais brasileiros que fizeram a preparação acadêmica que faltou a Bolsonaro, um tenente que foi promovido a capitão quando foi para a reserva, depois de uma expulsão branca por ser um militar incompatível com a instituição do Exército.



“Quando falta saliva, tem que ter pólvora” é a simplificação vulgar que Bolsonaro fez da definição de guerra de Clausewitz, especialista em estratégias e autor do mais famoso tratado sobre o tema no Ocidente: “Sobre a Guerra” (do alemão Vom Kriege), publicado em 1832, depois de sua morte.

“A guerra é a continuação da política por outros meios” é uma frase que resume bem o que Clausewitz pensava sobre a guerra, que o vice-presidente General Hamilton Mourão chamou de “antigo aforismo”, na tentativa de dar um lustro nas bobagens que o presidente disse.

O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, durante um debate na campanha, disse que buscaria "organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia". Afirmou também que o Brasil pode enfrentar "consequências econômicas significativas" se não parar de "destruir" a floresta.

Bolsonaro sentiu-se ofendido, disse que não queria esmolas, e várias vezes já se referiu a essa “ameaça” para justificar porque ainda torce pela vitória de Trump: “É isso que vocês querem para o Brasil?”perguntou recentemente a um grupo de apoiadores."

No discurso em questão, Bolsonaro não se referiu diretamente a Biden, mas a um “um grande candidato à chefia de Estado” ( para Bolsonaro, assim como para Trump, a eleição americana ainda não terminou) que ameaça o Brasil com sanções econômicas: “E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto [Araújo, ministro das Relações Exteriores]? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão, não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem que saber que tem. Esse é o mundo. Ninguém tem o que nós temos", declarou.

Muitos se lembraram de filmes associados a essa pataquada, como o “O Incrível Exército de Brancaleone”, com Vittorio Gassman, ou “O rato que ruge”, com Peter Sellers. O primeiro trata das alucinações de um grupo de maltrapilhos que se armam para uma guerra na Europa medieval. O segundo, de um país periférico que declara guerra aos Estados Unidos para receber algum auxílio financeiro, e acaba ganhando.

Eu fiquei mais preocupado ao me lembrar do general ex–ditador argentino Leopoldo Galtieri, que declarou guerra à Inglaterra em 1982 ao tomar militarmente as Ilhas Malvinas, hoje definitivamente Falklands. A decisão teria sido tomada em meio a um tremendo porre de uísque, bebida frequente do General.

Assim como o país fictício de “O rato que ruge”, o Grão Ducado de Fenwick, também a Argentina estava em crise econômica gravíssima, e a ditadura militar estava prestes a cair. No dia 30 de março daquele ano, 40 mil pessoas estavam na Praça de Mayo, em frente à Casa Rosada, pedindo o fim da Ditadura. A invasão das Malvinas deu-se três dias depois, numa manobra para tentar unir o país contra um inimigo externo.

“Que venga el principito", gritavam os argentinos nas ruas diante da notícia de que o Príncipe Andrew estava no porta-aviões Invencible, como co-piloto de helicóptero. Deu certo durante poucos dias, pois, ao contrário do que o General Galtieri imaginava, a primeira-ministra Margareth Thatcher ordenou o envio de tropas às Malvinas, e a Argentina foi humilhada militarmente.

Ao que me consta, Bolsonaro não bebe. Mas anda muito estressado. Só faltava essa loucura para humilhar mais ainda os generais que se atrelaram a seu governo, a cada dia mais insustentável.

Bêbado a uma hora dessa?

Desculpem-me a analogia. Tem certas coisas no Brasil que não escapam da gozação, mesmo quando são muito sérias e preocupantes. Por exemplo, o namoro de Getúlio Vargas com o fascismo de Benito Mussolini, o ditador da Itália, e o nazismo de Adolf Hitler, da Alemanha, cujo ponto alto foi a entrega da judia alemã Olga Benário, a esposa do líder comunista Luís Carlos Prestes, grávida de sua filha Anita Prestes, à Gestapo. Olga foi morta na câmara de gás do campo de extermínio de Bernburg, mas sua filha foi resgatada antes disso, depois de uma grande campanha internacional. Hoje é professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nessa época, em plena ditadura Vargas, havia uma luta surda entre o ministro da Guerra, Góis Monteiro, e o chefe de Polícia do Distrito Federal, Filinto Muller, que defendiam uma aliança com o Eixo, de um lado, e o chanceler Oswaldo Aranha e o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, que articulavam a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Estados Unidos e seus aliados da Europa, de outro.

O repórter David Nasser, no livro "Falta alguém em Nuremberg", traça o perfil da equipe de Filinto Muller, “recrutados entre a escória do Exército”: capitão Felisberto Batista Teixeira, delegado especial de Segurança Política e Social: capitão Afonso de Miranda Correia, delegado auxiliar; tenentes Emílio Romano, chefe da Segurança Política, e Serafim Braga, chefe da Segurança Social, e, ainda, o tenente Amaury Kruel e seu irmão, capitão Riograndino Kruel, ambos da inspetoria da Guarda Civil, “indivíduos cujo servilismo ao governo e brutalidade com os presos” contribuíram, segundo Nasser, para as violações dos direitos humanos ocorrida na época. No Estado Novo, segundo o historiador Cláudio de Lacerda Paiva, “quem censurava era Lourival Fontes, quem torturava era Filinto Muller, quem instituiu o fascismo foi Francisco Campos, quem deu o golpe foi Dutra e quem apoiava Hitler era Góis Monteiro”.

É justamente nessa época que começa a gozação com o Góis Monteiro, dentro do próprio governo. Alagoano de São Luís do Quitunde, fora o comandante militar da Revolução de 1930 e chefiou as tropas federais que combateram a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Na época em que foi ministro da Guerra (1934 e 1935), elaborou a Doutrina de Segurança Nacional que inspirou várias leis da ditadura de Vargas e do regime militar. Em 1937, articulou o golpe do Estado Novo, sendo um dos responsáveis pelo famoso Plano Cohen, que serviu de pretexto, planejamento de uma revolução comunista forjado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho. Góis Monteiro deu de presente ao temido deputado fluminense Tenório Cavalcanti a sua famosa “Lurdinha”, uma metralhadora alemã MP-40.

Apesar de todo o seu poder, Góis Monteiro não escapou da gozação até mesmo entre os colegas de farda. No auge da luta para o Brasil entrar na guerra contra o nazifascismo, seus adversários políticos se divertiam com a seguinte piada contada nos corredores do Palácio do Catete e nos bares do Rio de Janeiro: Góis Monteiro resolvera conhecer de perto o treinamento das tropas do Eixo. Na Alemanha, um oficial nazista formou um pelotão das SS e mandou que um oficial demonstrasse sua disciplina e amor a Hitler: “Tenente Fritz, tiro na cabeça!”. O jovem oficial disparou a Luger e caiu morto sem dizer um ai, enquanto a tropa fazia a tradicional saudação nazista: “Heil, Hitler!”. Gois Monteiro ficou impressionadíssimo.

No Japão, visitou o porta-aviões do almirante Yamamoto, que formou o esquadrão de pilotos e mandou que um deles dedicasse sua vida ao Imperador: “Capitão Tanaka, seppuku!”. O camicase, como autêntico samurai, sacou seu espadim e rasgou o abdômen; imediatamente, seguindo o ritual de honra, o líder da esquadrilha, num golpe certeiro, cortou sua cabeça com a espada, para evitar maior sofrimento. “Banzai!”. Foi demais para Góis Monteiro: mareado, vomitou.

De volta ao Palácio do Catete, o ministro da Guerra passou a noite em claro e mandou tocar a alvorada às 5 horas da manhã, uma hora mais cedo. Aguardou os Dragões da Independência nos jardins, cantarolando: “A voz do despertar/ Chega a nós/ Que a missão a se cumprir/ É função do que sentir/ Sentir/ Que ela vem dizer/ Com seu repercutir/ / O que é o dever/Quem entender/ Clarim tocar/ Antes do amanhecer/ Tem que se inflamar (…)”. Assustada e sonolenta, a tropa formou desengonçada, às pressas, com a farda mal-abotoada, rabos de cavalo dos capacetes embaraçados, sem saber o porquê da antecipação da alvorada. Góis Monteiro deu a voz de comando: “Primeiro pelotão, sentido!”. O sargento Tião, homem-base na formatura, soldado casca-grossa, já havia percebido a voz pastosa do general quando ele cantava, desconfiou que havia algo errado. Quando o general enrolou a língua no “Apresentar-armas”, Tião se deu conta de que a situação era crítica: “Vixe, está bebado!”. Levou o general para a cama, antes que ele fizesse mais besteira, sem saber de suas sinistras intenções.

As riquezas dos maricas

Era óbvio e esperado que, ao perder a aposta feita em Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro fosse incluído na coluna “perdedores” em todas as listas de governantes que se deram mal com a vitória de Joe Biden. Não são poucos, e incluem países tão diferentes entre si como Israel, Arábia Saudita, Turquia, Reino Unido e Hungria. Mas o que a língua solta do presidente está produzindo é uma rápida perda da própria autoridade

A popularidade que resulta de auxílios emergenciais é tão efêmera quanto a duração desses auxílios, e até aqui o governo não conseguiu dizer como vai incluir uma renda básica no Orçamento do ano que vem (que, aliás, não foi votado). Sim, é popularidade que pode ser reconquistada, ainda que a custo literalmente alto para os cofres públicos – e enquanto a economia não sofrer desarranjos maiores, fantasma que o próprio ministro Paulo Guedes anda alimentando.



Com autoridade é diferente. Um presidente não precisa necessariamente ter grande autoridade para ser popular, mas precisa ser levado a sério para governar. A autoridade de Bolsonaro está sendo diluída por ele mesmo ao cair no ridículo, um ácido capaz de corroer qualquer pedestal. Personagens que dizem coisas “folclóricas”, toscas, ofensivas, desvinculadas da realidade, abusivas ou mentirosas avançam até o ponto em que afundam nas próprias palavras.

A briga de Bolsonaro com a vacina “chinesa” conseguiu gerar desconfiança em qualquer vacina, justamente quando os especialistas alertam para o fato de que o Brasil provavelmente enfrentará uma segunda onda de covid-19, tal como acontece no momento na Europa e nos Estados Unidos. E a politização afeta a confiança em duas instituições essenciais para saúde pública: as que produzem a vacina (como o Instituto Butantan) e as que regulam sua aplicação (como a Anvisa). O resultado geral é péssimo para todos os governantes e causou séria apreensão nos governadores.

Da mesma maneira, pode-se argumentar indefinidamente sobre quem atrasa mais a aprovação das reformas que lidem com a questão fiscal, se é o Congresso ou se é a equipe do Ministério da Economia. Mas, no sistema político brasileiro, é o presidente quem tem o poder de ditar a agenda política, e a pergunta cada vez mais pesada no ar é se alguém sabe o que Bolsonaro pretende além de manter popularidade a um custo que a passagem do tempo só torna mais caro do ponto de vista fiscal.

O grau de isolamento internacional do Brasil por conta das apostas de Bolsonaro é inédito, ainda que lhe reste o consolo de estar na companhia de países como China, Rússia e México, que até aqui se recusam a parabenizar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais. Ocorre que esses três países tem contenciosos importantíssimos com os Estados Unidos, enquanto Bolsonaro está aparentemente ávido para encontrar um: a Amazônia.

Biden mencionou US$ 20 bilhões de possível ajuda, o agronegócio tecnológico e nossa matriz energética têm tudo para ganhar num impulso rumo à economia “verde”, mas o presidente prefere falar de “pólvora” quando esgotar a diplomacia em relação à pressão americana em questões ambientais. No caso brasileiro, nossa diplomacia esgotou-se ao exercer a ridícula opção preferencial de se subjugar a Donald Trump. Os que realmente possuem “pólvora”, como China e Rússia, não ficam falando disso.

De qualquer forma, faltou Bolsonaro esclarecer como pretende usar eventualmente pólvora para enfrentar os malandros de olho nas nossas riquezas, se ele considera que preside um país de maricas.