terça-feira, 14 de julho de 2020

O interesse amazônico

Henry Ford estava de bom humor no dia 9 de janeiro de 1928 na inauguração da Exposição Industrial Ford acompanhado pelo filho Edsel e pelo amigo Thomas Edison, em Nova Iorque. Ele comemorava o lançamento do Ford modelo A, que substituiu o famoso modelo T. Na entrevista coletiva, anunciou que havia obtido a concessão da área de 14.568 quilômetros quadrados, tamanho semelhante ao estado do Tennessee, nas margens do rio Tapajós, afluente do Amazonas, a mil quilômetros do oceano Atlântico.

Ali surgiu a Fordlândia.

O interesse estrangeiro pela Amazônia é antigo. Desde que Francisco Orellana, em 1542, desceu o rio a partir de Quito, no Equador, até Belém do Pará, olhos europeus revelaram cobiça por aquela área. Franceses por exemplo manifestaram interesse em tomar o Amapá. Ingleses andaram por toda a região até descobrir o látex, quando encontraram um grupo de índios praticando esporte parecido com o futebol. A novidade era a bola que tinha elasticidade e quicava no solo sem perder sua forma original.

Os ingleses encontraram as mudas da seringueira, que foram contrabandeadas para a Malásia, região com clima tropical semelhante ao amazônico. A borracha asiática exterminou a produção brasileira que proporcionou período de extraordinário crescimento às cidades de Manaus e Belém. Mas, Henry Ford decidiu que ele produziria a borracha para equipar seus carros.

O primeiro ato de sua conquista da Amazônia foi promover um incêndio devastador. Ele precisava abrir espaço para fazer a sua plantação e construir a Fordlândia. Apesar do vultoso investimento, deu tudo errado. Depois da morte de Henry Ford, seu neto Henry Ford II devolveu as terras ao governo do Pará.

Miguel Villalba Sánchez
A floresta constitui uma espécie de desafio a aventureiros de todos os matizes. Ela provê ingredientes importantes para a medicina no mundo, além de animais exóticos, peixes diferentes e culinária sensacional. Sua paisagem é única no ocidente. Não há nada igual. Aos trancos e barrancos ela foi preservada. Nas grandes planícies norte-americanas o homem branco exterminou flora e fauna e acabou com os indígenas. O general Custer dizia que índio bom é índio morto.

Agora a pressão vem de outra forma. O vice-presidente Hamilton Mourão organizou reunião com investidores estrangeiros. Sugeriu que eles financiem projetos na área de meio ambiente no Brasil. Os empresários, no entanto, não se comprometeram a investir e pediram que o governo mostre resultados no combate ao desmatamento da Amazônia.

Entre os projetos apresentados aos investidores estavam alguns financiados por meio do Fundo da Amazônia, o Floresta Mais e o Adote um Parque, pelo qual serão ofertados mais de cem parques nacionais para empresas privadas interessadas em manter e conservar esses espaços.

O governo brasileiro é largamente criticado pela sua política de meio ambiente. Grandes fundos investidores enviaram mensagem a embaixadas brasileiras manifestando preocupação com o avanço do desmatamento na Amazônia. Empresários brasileiros perceberam que estrangeiros ameaçam retaliar produtos brasileiros no exterior por causa da falta de defesa do meio ambiente. O assunto é delicadíssimo. Fazendeiros norte-americanos não hesitam em afirmar que ‘farms here, forest there’. Fazendas aqui, florestas lá. Mais claro impossível.

O vice-presidente da República Hamilton Mourão é o presidente do Conselho Nacional da Amazônia. Ele organizou encontro virtual com dez dos maiores investidores, que possuem cerca de US$4,5 trilhões em caixa. Abriu-se a mesa de negociação. A única medida objetiva foi a promessa de proibir queimadas no período da seca, ou 120 dias, tanto na Amazônia quanto no Pantanal.

As duas partes têm suas razões. Mas, o vice-presidente, que conhece bem a Amazônia precisará de muita habilidade para caminhar neste território. O interesse nacional tem muito dinheiro por trás. Há garimpeiro porque há ouro. E os estrangeiros não defendem a Amazônia só para fotografar jacaré. Há interesse econômico.

A Secretaria de Comunicação Social (Secom) prepara campanha de relações públicas com a agência Hill+Knowlton na Europa para melhorar a imagem do Brasil junto aos veículos de imprensa europeus preocupados com a gestão das políticas de meio ambiente no Brasil. A agência pretende colocar como porta-voz do governo brasileiro o notório ministro Ricardo Salles. Difícil dar certo. No projeto de comunicação há previsão de entrevista do ministro Ernesto Araújo, adversário da globalização. No momento de recuperação da economia brasileira, o risco é enorme. O Brasil não precisa passar por essa pandemia de obscurantismo.

O general Mourão arranjou uma boa briga.
André Gustavo Stumpf

Um sentido para a tragédia

Marco De Angelis
O Brasil chegou a 72.100 mortos por covid-19 no fim de semana passado, de acordo com os dados oficiais. Este morticínio sem precedentes na história recente do País será reduzido a um buraco de dor e indignação na alma nacional se dele a Nação não for capaz de extrair algum sentido e unir todas as suas forças para empreender as mudanças necessárias à melhoria da qualidade de vida de milhões de cidadãos desassistidos e, assim, tornar esta terra um lugar menos hostil para viver com pouco ou quase nenhum dinheiro.

Todos foram atingidos pela pandemia, é fato, mas ela se mostrou particularmente cruel para as camadas mais pobres da sociedade, tanto do ponto de vista sanitário como econômico. Aos milhões de desvalidos cuja renda advém do trabalho informal não foi dado se proteger da exposição ao novo coronavírus por meio do trabalho remoto. Ou mesmo quando empregados formalmente, muitos exercem funções que não permitem o chamado home office. Muito longe disso.

As péssimas condições de habitação dos cerca de 20 milhões de brasileiros que vivem nas favelas País afora nem sequer tornam fisicamente possível a prática do distanciamento social, tão preconizada pelas autoridades sanitárias como forma eficaz de conter o avanço da covid-19. A propósito, em maio o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou relatório mostrando que no ano passado havia no País 5,12 milhões de habitações nos chamados “aglomerados subnormais”, termo técnico para as velhas favelas. O número é 60% maior do que o apurado no Censo de 2010 (3,22 milhões de lares), dando a dimensão de nossa decadência social na última década e, agora, do altíssimo risco sanitário a que estão expostos os que vivem em condições sub-humanas.

Em que pese o inquestionável valor do Sistema Único de Saúde (SUS), sem o qual a história da pandemia de covid-19 no Brasil certamente seria outra, muitíssimo mais sombria, também são os mais pobres que estão sujeitos às limitações de atendimento pelo sistema público de saúde quando adoecem.

A pandemia expôs mazelas intratadas há muitas décadas. Passa da hora de a Nação unir esforços para superá-las. Do contrário, um quadro que hoje já se revela desumano haverá de piorar muito no momento pós-pandemia, quando todos os seus efeitos nocivos serão sentidos em sua inteireza. Um estudo conduzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) indica que a pandemia jogará cerca de 15 milhões de brasileiros na pobreza, ou seja, o segmento que vive com uma renda inferior a US$ 5,50 por dia. Na América Latina, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres, serão 45 milhões vivendo nestas condições após a fase mais aguda da pandemia.

A sociedade e as três esferas de governo precisam olhar com muito mais atenção para os milhões de brasileiros que estão alijados da cidadania e da dignidade por falta de meios de sustento. Se parece ser consensual que em muitas localidades já não é possível acabar com a existência das favelas, é mais do que hora de adotar políticas públicas que assegurem a seus moradores as condições que lhes permitam viver com segurança, inclusive segurança patrimonial, por meio da regularização dos títulos de propriedade nesses locais. É imperioso também pensar em soluções urbanísticas para mitigar os riscos à vida nas favelas, não só os riscos relacionados à violência urbana, urgentes, sem dúvida, mas também os relativos às residências com pouca ou nenhuma resistência a intempéries e expostas a toda sorte de ameaças sanitárias.

A Nação precisa encontrar um sentido transformador na pandemia. Em conversa com Luciano Huck, publicada pelo Estado, Thomas Friedman, do New York Times, alertou que “pandemias financeiras e biológicas expõem governos que não estão à altura do desafio”. É responsabilidade de cada cidadão refletir sobre isso.

Pensamento do Dia


Killer parasite, Brady Izquierdo Rodríguez

Gilmar se antecipa à estratégia bolsonarista

O mais recente episódio de confrontação entre os poderes, a ameaça do Ministério da Defesa de representar judicialmente contra Gilmar Mendes, originou-se da estratégia do ministro do Supremo Tribunal Federal de levantar barreiras à escalada com a qual o presidente Jair Bolsonaro busca responsabilizar a Corte, governadores e prefeitos pelos danos à saúde dos brasileiros e à economia do pais.

Já corria 1h30 do debate promovido no sábado à tarde pelo Instituto de Direito Privado (IDP), do qual é sócio, quando o ministro disse que não seria mais possível tolerar o que se passa no Ministério da Saúde: “É péssimo para a imagem das Forças Armadas. O Exército está se associando a este genocídio”.

Gilmar Mendes foi secundado por dois dos palestrantes, o médico Drauzio Varella, que disse que a entrada dos militares no Ministério da Saúde “não honra as Forças Armadas do Brasil”, e pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, para quem a intervenção de militares na Pasta, substituindo todo o corpo técnico, é tão ou mais sério que uma intervenção do governo na Polícia Federal. O general Eduardo Pazuello, que responde pela Pasta desde 15 de maio, com a saída do ex-ministro Nelson Teich, preencheu todo o segundo escalão com nomes egressos das Forças Armadas.

A resposta do Ministério da Defesa veio, por nota, na tarde do domingo. Nesta nota, assinada pela assessoria de comunicação, a Pasta se limita a prestar informações sobre o envolvimento das Forças Armadas no combate à pandemia, como, por exemplo, o contingente de 34 mil militares, maior, como costumam lembrar, do que aquele enviado à Segunda Guerra Mundial.

Nesta segunda, porém, veio uma nota mais dura. Assinada pelo ministro Fernando Azevedo e Silva, além dos três comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os signatários, nesta segunda nota, se dizem “indignados” pelos comentários do ministro do Supremo: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana”.

O texto cita a lei do genocídio (2.889), de 1956, para dizer que se trata de crime “gravíssimo”, no âmbito nacional, como na justiça internacional, o que, “é de pleno conhecimento de um jurista”. A nota conclui pela afirmação de que as Forças Armadas, incluindo a Marinha, o Exército e a Força Aérea, “estão completamente empenhadas justamente em preservar vidas”. E informa que o Ministério da Defesa encaminhará representação ao Procurador-Geral da República para a “adoção das medidas cabíveis”.


O presidente Jair Bolsonaro não se manifestou, mas o vice, Hamilton Mourão, que já subscreveu críticas ao Supremo Tribunal Federal, reagiu com a linguagem do polo, esporte do qual é adepto: “Gilmar Mendes não foi feliz. Ele cruzou a linha da bola. Atribuir essa culpa ao Exército é forçar uma barra”.

Apesar de dura, a resposta da Defesa se destaca por não incluir o comandante-em-chefe ao lado das Forças Armadas, no empenho em preservar vidas, e citar um recurso a um instrumento da democracia (representação judicial), em contraposição às ameaças veladas que o ex-comandante do Exército, Eduardo Villas-Boas, fazia ao Supremo.

Apesar da nota dura, a cúpula das Forças Armadas já havia concluído que uma parte da fatura da pandemia cairia em seu colo. Por isso, a permanência do general Pazuello como ministro-interino desagrada a instituição. Um general próximo ao comandante Edson Leal Pujol diz que o Exército não responde pela decisão do general de aceitar o cargo.

Pazuello está sendo pressionado a tomar o mesmo rumo do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, que gostaria de encerrar sua carreira como comandante militar do Leste, no Rio, mas irá para a reserva antes do que desejava. A transferência deverá ser efetivada até sexta-feria. Restaria ainda Flávio Rocha, almirante quatro estrelas da Marinha, que hoje exerce o cargo de secretário de Assuntos Estratégicos, subordinado diretamente à Presidência da República.

A nota marca ainda uma reaproximação do ministro da Defesa e dos comandantes militares, estremecidos desde que Azevedo e Silva referendou, em nome deles, a participação do presidente em manifestações de apoio em plena pandemia. Desta vez, foram os comandantes que fizeram questão de subscrever a nota em resposta ao ministro do Supremo.

Indagado se Pujol voltaria a receber Gilmar Mendes, como o fez há um mês, um general do gabinete do comandante disse: “O ministro está em Portugal e nós estamos aqui trabalhando pelo povo brasileiro”.

Desde ontem, Azevedo e Silva e o ministro Dias Toffoli, a quem assessorava antes de ir para o governo Bolsonaro, têm discutido uma forma de pacificar a tensão entre Supremo e Forças Armadas, a partir da percepção comum de que Gilmar Mendes exagerou nas tintas.

De Portugal, onde não fez mais declarações, o ministro tem dito a quem o procura para comentar o episódio, que já havia alertado, no plenário do Supremo, sobre a armadilha que Bolsonaro preparara para as Forças Armadas, ao usá-las para um papel, no Ministério da Saúde, que nenhum médico ou profissional que preze por sua reputação, se presta a cumprir.

A opinião foi referendada, no Valor, por Maria Elizabeth Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar: “É cômodo para o presidente escolher militares para compor o alto escalão, preenchendo lacunas que, politicamente, talvez ele não conseguisse manejar. São pessoas que nunca vão confrontá-lo, pois ele é o chefe supremo das Forças Armadas”.

Gilmar Mendes tampouco está isolado na sua Corte. O ministro Luis Roberto Barroso já disse que o presidente Jair Bolsonaro, ao povoar o governo de militares, está levando o Brasil a uma “chavização” da política, o seja, transformando o país numa Venezuela de Hugo Chávez.

Desde que chegou a Portugal, Gilmar Mendes tem ficado impressionado com as referências negativas da imprensa europeia ao Brasil. Chegou a comentar que o presidente Jair Bolsonaro não deve pisar na Europa sob o risco de ser notificado pelo Tribunal Penal Internacional.

É na reação a este cerco que o ministro firmou convicção de que Bolsonaro jogará, cada vez mais, sobre o Supremo e os governadores, a responsabilidade pelos crimes da pandemia. Bolsonaro nunca aceitou a decisão da Corte de que a União não podia impor aos Estados as diretrizes para o combate à covid-19, como o uso da cloroquina, uma vez que a Constituição prevê a gestão compartilhada para o Sistema Único de Saúde.

No Supremo não se descarta que governadores que hoje se veem prejudicados por uma distribuição sem critérios técnicos dos recursos da Saúde, venham a interpelar a Corte com uma Ação de Preceito Fundamental, contra o Ministério. Foi sob este fogo cruzado que os militares, pela presença de um general da ativa no comando da Pasta, se colocaram.

Ao acusar os militares de terem se deixado usar pelo presidente no que chamou de “genocídio”, o ministro pagou pra ver o que será a reação fardada quando a acusação for formalizada contra o presidente. Na nota, os militares saem em defesa da corporação mas não estendem a blindagem ao presidente.

Tem método



A estupidez dos políticos brasileiros não é aleatória, não ocorre ao acaso
Leandro Narloch

Com quem as Forças Armadas preferem se associar

Fica combinado assim: este é o governo que mais emprega militares da ativa e da reserva desde o fim da ditadura de 64, mas nem por isso as Forças Armadas o apoiam ou com ele se confundem. As Forças Armadas são uma instituição do Estado.

O fato de serem militares todos os ministros com gabinetes no Palácio do Planalto não quer dizer nada, tampouco que o presidente seja um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina, e o vice-presidente um general da reserva.

Há quase 3 mil militares em demais escalões da administração pública federal – só no Ministério da Saúde, comandado por um general de brigada, são mais de 20. Fez-se uma versão branda da reforma da Previdência só para beneficiar os militares. Mas, e daí?


Quer dizer nada. Como nada quer dizer um reajuste salarial que está sendo concedido aos oficiais das três armas no momento em que falta ao governo dinheiro para gastar com a pandemia que já matou quase 73 mil brasileiros e infectou mais de 1,8 milhão.

Por sinal, quando assumiu o Ministério da Saúde como ministro interino, o general Eduardo Pazuello, especialista em logística, herdou 14 mil mortos dos que o antecederam no cargo. Tentou esconder os números sobre mortos e contaminados.

Não se acanhou de regulamentar o uso da cloroquina no tratamento de doentes, embora no resto do mundo a droga tenha sido desprezada porque não serve para a cura do vírus. A remessa de remédios e equipamentos aos Estados também não funcionou.

Do contrário, o coronel, braço direito do general, não teria orientado governadores e secretários de Saúde a irem às compras mesmo pegando preços superfaturados. Aconselhou-os a pagarem o quanto for, denunciando depois os vendedores à justiça.

É por tais razões que as Forças Armadas reagiram com uma dura nota assinada por seus três comandantes, além do general que é ministro da Defesa, à crítica do ministro Gilmar Mendes de que o Exército associou-se ao genocídio do Covid-19.

“Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. É uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, diz a nota.

Gilmar não atacou o Exército. Atacou o governo por associar sua imagem à imagem do Exército na política genocida de combate ao coronavírus. O Ministério da Defesa pedirá à Procuradoria-Geral da República “a adoção de medidas cabíveis” contra Gilmar.

Há poucos meses, os militares se revoltaram com a comparação feita pelo ministro Celso de Mello, colega de Gilmar no Supremo Tribunal Federal, entre o momento que o Brasil atravessa com o momento que antecedeu a ascensão do nazismo na Alemanha.

Se apenas o governo tivesse ficado furioso com a comparação feita por Celso e a crítica feita por Gilmar, seria compreensível. Mas por que as Forças Armadas reagiram tão mal às palavras dos dois ministros se elas nada têm a ver com o governo?

A continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de “instituições do Estado”, como está na Constituição, não passa de letra morta.

Hora do toque de retirada

Pode-se criticar o tom do comentário, mas o juiz Gilmar Mendes tem razão na essência da crítica ao envolvimento das Forças Armadas, sobretudo o Exército, na anarquia governamental de Jair Bolsonaro. 

O erro original foi cometido na campanha de 2018, quando o então deputado, ex-capitão paraquedista, informou ao Forte Apache — o QG do Exército em Brasília— sobre o plano de saltar da planície política para o topo do poder no Planalto. 


Um dia, talvez, seja resgatada a memória das conversas e a extensão do respaldo do comando do Exército ao candidato. Sabe-se que nem tudo obedeceu ao protocolo, mas há reconhecimento da eterna gratidão do beneficiário em discurso: “Obrigado, comandante (Eduardo) Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por (eu) estar aqui.” 

O generalato sabe o que fez nas quatro estações eleitorais de 2018 ao abstrair o passado do ex-capitão, preso e processado por anarquia pelo Exército 33 anos antes, por um plano de bombas na Vila Militar, no Rio. 

O projeto era reescrever o passado, a história do regime militar de 1964, numa nova hegemonia fardada, com aumento do orçamento total (de 1,5% para 2% do PIB). Permitiu-se a Bolsonaro enquadrar o governo numa moldura militarista e transformar as Forças Armadas em peças do seu jogo predileto, a confusão institucional. É eloquente a imagem do comício no portão do Forte Apache, com o presidente incitando aliados que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo.

O resultado está na ocupação da Saúde, com laboratórios militares (R$ 520 milhões para produzir 1,2 milhão de doses de cloroquina) engajados na politização de um vírus, moldada para a campanha de reeleição. 

Pode-se ver exagero do juiz Gilmar Mendes ao dizer que “o Exército está se associando a esse genocídio” (o desgoverno na pandemia). Se há crime — no caso, gravíssimo — será revelado em breve. Nada oculta o óbvio: as Forças Armadas se meteram numa confusão institucional com Bolsonaro. É hora do toque de retirada.

Imagem do Brasil derrete no exterior e salienta “crise ética e de falência de gestão” com Bolsonaro

A notícia de que o presidente Jair Bolsonaro contraiu a covid-19 deu a volta ao mundo, repercutindo nos principais veículos internacionais, que ressaltaram o histórico de declarações negacionistas do presidente brasileiro sobre a pandemia do coronavírus. Desde o início da crise sanitária, a cobertura sobre o comportamento de Bolsonaro, que defende que há um alarmismo sobre a pandemia e que o coronavírus é uma “gripezinha”, tem ganhado mais espaço no noticiário internacional e acelerado um desgaste da imagem do Brasil no exterior, segundo um estudo da consultoria Curado & associados.


O levantamento, que analisou as publicações de sete veículos internacionais de diferentes linhas editoriais, mostrou que essa percepção negativa do país piorou do primeiro trimestre para o segundo, e mostra uma “crise ética e de falência de gestão” do Governo. O tema da pandemia foi responsável por 68% do total da cobertura negativa no segundo trimestre, seguido pela cobertura da demissão do ex-ministro de Justiça Sergio Moro (10%) e da devastação da Amazônia (8%). O estudo mostra que a cobertura da gestão brasileira da covid-19 pela imprensa internacional cresceu 146% no segundo trimestre.

“A cobertura da crise sanitária agravou a percepção de um Governo irresponsável, de uma gestão sem liderança, cheio de declarações negacionistas sobre a doença. A notícia sobre o presidente ter testado positivo para o coronavírus, por exemplo, teve ampla cobertura pela forma desrespeitosa em que ele fez o anúncio”, diz Olga Curado sócia-fundadora da consultoria. Após informar que tinha contraído a doença durante entrevista coletiva com jornalistas no Palácio da Alvorada, o presidente tirou a máscara que usava. O mandatário brasileiro também seguiu insistindo que a infecção pelo novo vírus só é perigosa para idosos e pessoas com doenças prévias. Entre os veículos pesquisados estão o francês Le Monde, a revista inglesa The Economist, a alemã Der Spiegel e a edição espanhola do EL PAÍS.

A consultora ressalta, no entanto, que, desde o ano passado, as críticas sobre as políticas ambientais de Bolsonaro também permeiam bastante o noticiário e que vários veículos já projetam os impactos econômicos das ações do Governo. Em 23 de junho, por exemplo, três jornais, The Guardian, The New York Times e The Washington Post fizeram reportagens sobre alertas de “investidores de trilhões de dólares” ao Brasil pelas políticas de “desmantelamento” da Amazônia. Naquele dia, instituições financeiras responsáveis pela gestão de mais de 4 trilhões de dólares enviaram uma carta ao Governo Bolsonaro avisando sobre o risco de retirada de investimentos no país caso não houvesse uma ações mais efetivas para controlar o desmatamento. Depois, o empresariado nacional aumentou o coro sobre o tema com um manifesto semelhante assinado por 38 companhias, entre elas pesos pesados como o Banco Itaú, o maior da América Latina, Santander, e empresas ligadas ao agronegócio, como o braço brasileiro da Cargill.

A pressão dos estrangeiros acendeu um alerta vermelho no Planalto, que marcou uma reunião por videoconferência com representantes dos fundos, na última quinta-feira, 9, comandada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, responsável pelo Conselho Nacional da Amazônia. Na sexta, foi a vez de Mourão receber o movimento brasileiro. “Em nenhum momento investidores se comprometeram com investimento, eles querem ver resultados, querem ver a redução de desmatamento”, disse Mourão, após o encontro online com investidores. O vice-presidente brasileiro admite a necessidade de combater ilegalidades na Amazônia, mas defende, assim como Bolsonaro, que há um exagero na percepção sobre destruição da região. “A floresta está em pé, muitos colocam que a floresta está queimando”, disse. Na mesma sexta-feira, 10, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou a maior alta de desmatamento para o mês de junho desde 2015, apesar de uma ação militar, comandada por Mourão, ter entrado na Amazônia em maio para combater o desmatamento.

No início do mês, em discurso na Cúpula do Mercosul, o mandatário brasileiro já tinha reclamado de “visões” no exterior que, segundo o seu entendimento, são “distorcidas” e não refletem o real esforço do Governo, sobretudo em temas como a defesa da região amazônica e o relacionamento com povos indígenas. Num esforço para continuar as negociações do acordo do bloco com a União Europeia, o presidente afirmou que seguirá o diálogo com diferentes interlocutores para desfazer essas opiniões. Segundo fontes diplomáticas europeias consultadas pelo EL PAÍS, se os resultados práticos de redução dos índices de desmatamento não aparecerem rapidamente, há um risco do acordo entres os blocos não sair do papel.