domingo, 17 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


A glória de ser medíocre

Cada vez mais gostamos de ser medíocres no Brasil. Sofremos uma absurda atração pela cultura da mediocridade e a elevamos a objetivo nacional. Estamos conseguindo, e com que brilho! Caminhamos para a liderança mundial em muitos quesitos. Consulte os índices de qualidade de vida, de desenvolvimento humano, de educação, de violência, de saúde pública, de saneamento, de habitação. Percorra nossas estradas, nossos portos e aeroportos, nossas escolas. Visite os estádios superfaturados e abandonados neste país que ainda usa o futebol como ópio do povo.

A atração fatal pela mediocridade se espalha em todos os níveis da sociedade. Alguns exemplos: quem acha que nosso Congresso é composto por mentes brilhantes? Quem acha que pessoas capazes ocupam nossos ministérios? Como Eike Batista chegou tão longe e acabou em Bangu? Seria apenas pela aliança com um governador que levou 16 milhões de dólares dele para o exterior? Por que tantos turistas compulsórios visitam Curitiba tendo a PF como cicerone? Onde foi que um presidente afirmou que nunca tinha lido um livro – e não lhe fez falta? Por que tantos?

Se você acha que a cultura da mediocridade para aí, está enganado. Escute com atenção as músicas que fizeram maior sucesso em 2016, curta a riqueza das letras e das melodias, encante-se com a mesmice e o ridículo. Veja um programa na televisão, desses que arrancam dinheiro do espectador a cada minuto, eleve-se ao nível da danação intelectual ou caia no fundo do poço da exploração humana. Sintonize a grade das tvs abertas e delicie-se com o vazio que elas nos impingem travestido de entretenimento. Leia também os best-sellers, mergulhe na profundidade de suas páginas, repare quanta sabedoria eles lhe trazem, quanta novidade divulgam, quanta sede de escrever diários de bananas eles propagam. Não se esqueça de ver os filmes nacionais de maior bilheteria: como são inteligentes, criativos, nem um pouco machistas e, cá entre nós, que humor. Que humor requintado! Gaste oito ou dez horas por dia, como nossos jovens, enfrentando os games e seus inspiradores combates, ache-se mais esperto, mais genial, com neurônios mais rápidos, longe da alienação e do vício.

Observe bem as propagandas nas mídias, admire os estereótipos tão maravilhosamente engendrados pelas mentes sedutoras das agências, tão sedutoras que a crise passa longe dos produtos que anunciam. Mergulhe de cabeça nos posts inovadores do Facebook ou nas mensagens do “zapzap” e sinta-se pronto para conquistar o Vale do Silício, depois do implante de um cilício mental.

A lista não tem fim. Estamos conseguindo, a passo acelerado, a mediocridade. Viva! Como é bom ser medíocre, a grande mania nacional! Deixemos que outros pensem por nós. O melhor é que a opção pela mediocridade é nossa, o gosto é nosso, as consequências cairão em nossas cabeças.
Luís Giffoni

A natureza das alegrias

Embora a experiência me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifício do que entre os sedentários dos oásis férteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento se opusesse à natureza da felicidade. Acontece simplesmente que, onde os bens são em maior número, oferecem-se aos homens mais possibilidades de se enganarem quanto à natureza das suas alegrias: elas, efetivamente, parecem provir das coisas, quando eles as recebem do sentido que essas coisas assumem em tal império ou em tal morada ou em tal propriedade. Para já, pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior facilidade e façam circular mais vezes riquezas vãs. Como os homens do deserto ou do mosteiro não possuem nada, sabem muito bem donde lhes vêm as alegrias e é-lhes assim mais fácil salvarem a própria fonte do seu fervor.

Antoine de Saint-Exupéry, "Cidadela"

Borracha no futuro

Um estudo revela que 13 milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023, o custo alto dos alimentos desacelerou, a economia obtém ganhos, a vida democrática supera os sobressaltos, mas decresce a avaliação positiva de Lula (PT). Algo semelhante ocorre nos EUA, onde esses fatores estão normalizados, porém, cresce nas preferências eleitorais a figura de Trump, um delinquente polimorfo. Na Argentina, 60% da população esfomeia, mas é elevado o índice de aprovação de Milei. Na alucinação, osso é filé.

São anomalias. Começa a ficar claro que elas reabrem de algum modo a noção de política. Por menos práticos que sejam pronunciamentos políticos de filósofos, vale evocar as posições públicas de Jurgen Habermas nos anos 1980 contra o neoconservadorismo irracionalista na Alemanha, assim como a sua especulação de que "se tivesse de apostar qual o próximo país que se tornaria fascista, minha aposta poderia ser: os EUA". Sem bola de cristal, anteviu Trump.


Entre nós, é recorrente a análise de que vivemos numa sociedade de classes com uma esquerda atrasada. Dessa redundância acaciana nada se conclui sobre a subjetividade política dos brasileiros nem sobre a dissonância entre seus comportamentos sociais e a infraestrutura socioeconômica. As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita, a saber, setor financeiro, agronegócio e coorte de reacionários religiosos.

Acontece que a política parece ter-se deslocado da base normativa das formas democráticas para preocupações populares como anticorrupção e comunitarismo religioso. Da linguagem desses fatores está ausente não só a esquerda, mas também a formação política (sindicalista, social-democrata) de Lula. O que sai da boca do povo não aparece no radar de Brasília.

O fenômeno pertence ao neopopulismo global, com núcleos organizadores regionais, que delegam tarefas. No ato de 25 de fevereiro, na Paulista, mesmo com maioria branca, terceira idade e renda média, os 200 mil aderentes constituíam o estrato inferior de uma divisão de classes nas incumbências visíveis, com as quais o núcleo já não se compromete diretamente. Algo como a camada externa de uma cebola, que oculta outras. Com o mesmo odor.

O decréscimo da popularidade de Lula é da mesma natureza do sinal enviado pela presença de uma multidão daquele tamanho ao redor de uma personagem trêfega e desconexa. Mas no fenômeno das anomalias em pauta, desconexão é coerência: o abilolado que mete a mão no esgoto extremista é o mesmo que depositará o voto na urna da ultradireita, outubro à vista. Um índice resiliente da ideia antipolítica de nação sem democracia nem justiça social: olho no retrovisor e borracha passada no futuro.

Não foi por mal

A estupidez sempre foi uma característica protegida e é fácil explicar porquê. Os estúpidos não têm culpa de ser estúpidos. A maioria (a mais esperta) até odeia ser estúpida.

Ser estúpido é um azar. Prejudica. Dá mais trabalho. Atrapalha. Causa atrasos e malentendidos. A única vantagem de ser estúpido é ser-se capaz de enfurecer os espertalhões com muito pouco esforço.

Como é proibido chamar estúpidas às pessoas – mesmo àquelas que não são –, a estupidez é um flagelo invisível. Apesar de ser a causa principal – alguns diriam a única – de tudo o que corre mal, a estupidez atira sempre com as culpas para outra causa qualquer.


Teoricamente, é possível retraduzir o discurso público para obter as equivalências da estupidez que são culturalmente autorizadas.

São palavras como incompetência, falta de profissionalismo, estreiteza de vistas, inocência, simplicidade, e uma imperturbável alegria de viver.

Mas é muito bom sinal aceitar a estupidez e fazer o respectivo desconto. Quando alguém nos diz, desculpando as acções de um estúpido, que “não foi por mal”, a única maneira justa e saudável de reagir é aceitar esse apelo à intenção.

O inferno não está cheio de boas intenções. Pelo contrário, não há uma única boa intenção no inferno. O inferno está é cheio de bons resultados.

Se isto fosse uma tese, chamar-se-ia “Intenção, Resultado e Merecimento na Cultura Portuguesa”. Felizmente, isto deixa-se complicar até mais não, mas não aqui.

Ao longo da vida – mais depressa para quem dá aulas –, vemos que os grandes esforços andam divorciados dos grandes resultados, que a qualidade humana é completamente independente do talento e da inteligência, e que as intenções estão entre as poucas coisas que se podem julgar com generosidade.

Cada vez é mais fácil preferir um mau resultado, obtido com boas intenções, a um bom resultado, obtido com más.

A estupidez também precisa de ser reenquadrada: não acredito que os estúpidos sejam todos bonzinhos.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


Democracia morre no tédio trumpista

Chame isso de banalidade do caos. Eis aqui uma lista das atividades recentes de Donald Trump. Ele prometeu, no primeiro dia de sua presidência, caso vença a eleição, tirar da cadeia os condenados pela invasão do Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, fechar a fronteira dos EUA com o México e “mandar ver, meu bem” na exploração de gás e petróleo. Ele fez festa para Viktor Orbán em Mar-a-Lago, chamando-o de o melhor líder mundial, e assegurou ao líder húngaro que não dará “um centavo” para a Ucrânia. Ele usou um seguro-garantia de US$ 91,6 milhões para indenizar por difamação sua vítima de assédio sexual, Elizabeth Jean Carroll.

Ele fez um expurgo no Comitê Nacional Republicano, demitindo 60 funcionários — o movimento inicial de sua nora Lara Trump, que ele escolheu a dedo como presidente-adjunta do comitê. Ele voltou atrás em relação ao TikTok, dizendo agora que sua controladora chinesa deveria manter a posse. Ele imitou a gagueira de Joe Biden, insistiu que a verdadeira taxa de inflação nos EUA foi de 50% e atacou Jimmy Kimmel, classificando-o de o pior apresentador do Oscar de todos os tempos. Parece quase trivial acrescentar que surgiram novos detalhes sobre a aparente queda de Trump por Adolf Hitler.


Tudo isso aconteceu desde sexta-feira. Agora, multiplique isso por 47, que é o número de intervalos de cinco dias entre agora e as eleições gerais. Até mesmo o mais diligente observador de Trump ficaria catatônico após alguns desses acréscimos. Portanto, não é nenhuma surpresa que a maioria desses episódios recentes não tenha chegado às manchetes dos jornais. Em outros tempos, com um candidato normal, qualquer um deles dominaria o noticiário. A candidatura de Trump é tão fora do comum que é quase paranormal. Esta é a essência do apelo político dele. Significa que ele é julgado por um padrão diferente do de Biden, ou qualquer outro político, seja democrata ou republicano.

Katie Britt, senadora republicana, monopolizou as ondas de rádio por dois dias na semana passada, após dar a resposta republicana ao discurso de Biden sobre o Estado da União. Além do estilo de entrega sobrenatural de Britt, o erro dela foi enganar os ouvintes com um caso de uma mulher que foi vítima de tráfico sexual no México. Toda vez que Trump faz um discurso, ele dispara um mínimo de mentiras descaradas. Suas inverdades merecem um encolher de ombros: as dos outros são classificadas como escândalos.

Esse padrão duplo é, em grande parte, subconsciente. Em 2018, o então principal estrategista de Trump, Steve Bannon, descreveu suas táticas midiáticas como “inundar a zona com merda”. Quanto mais bizarrices Trump gera, menos as pessoas notam. Economistas chamariam isso de hiperinflação, exceto que o item que está sendo desvalorizado é a nossa capacidade de ficar horrorizado.

Um bom exemplo é a diferença como a sintaxe de Biden é medida em relação à de Trump. Biden confunde datas e nomes e nunca foi articulado. Ainda assim, o ponto que ele tenta enfatizar é geralmente claro. Suas confusões merecem tratamento de primeira página.

Trump recorre regularmente a jargões que poderiam desencadear uma grande reação se viessem de Biden. Este foi o raciocínio de Trump, feito esta semana, sobre a inflação real: “E vamos olhar fora do mercado de ações. Estamos passando por um inferno”, disse ele no programa “Squawk Box” da CNBC. “As pessoas estão passando por um inferno. Elas têm — acredito que o número seja 50%. Eles dizem 32% e 33%. Acredito que temos uma inflação acumulada de mais de 50%. Isso significa que as pessoas estão, você sabe, elas precisam ganhar mais de 50% a mais em um período de tempo relativamente curto para se manter... E elas têm sido muito, muito maltratadas pela política.” Boa sorte ao tentar entender a política de inflação de Trump.

Depois da eleição de Trump em 2016, o “Washington Post” adotou o lema “A democracia morre na escuridão”. Mas ele estava incompleto. Independentemente da abordagem que os meios de comunicação dos EUA adotem em relação a Trump, a controvérsia está assegurada. Ignorar o que ele diz é negligência. Transmitir seus discursos ao vivo é um subsídio em espécie. O mesmo se aplica às reportagens tradicionais do tipo “ele disse, ela disse”. Verificar fatos é para perdedores. A beleza do dilema da comunicação do ponto de vista de Trump é que tudo o que ele faz provoca controvérsia. Bannon descreveu a grande mídia como “partido de oposição”. O adversário ideal é sempre aquele que está em guerra consigo mesmo. Em agradecimento, Trump rotineiramente chama os jornalistas de “criminosos”.

A combinação estranha das eleições de 2024 será igualmente monótona e assustadora. Se Trump for fiel à sua palavra, daqui a dez meses ele estará prendendo milhões de imigrantes para deportação. A guerra da Ucrânia contra a Rússia de Vladimir Putin terá terminado. O mesmo destino recairá sobre os julgamentos criminais federais de Trump. Seu Departamento de Justiça estará investigando seus adversários. E ele terá invocado a Lei de Insurreição para acabar com protestos civis usando tropas dos EUA.

Cumplicidade


Entre um governo que faz o mal e o povo que o consente, há certa cumplicidade vergonhosa
Victor Hugo

Ser quem somos

Entre os feitos do britânico C.S. Lewis estão ter sobrevivido às trincheiras da Primeira Guerra Mundial e ser o autor das “Crônicas de Nárnia”, cujos sete volumes venderam mais de 100 milhões de exemplares e foram adaptados para TV, cinema, teatro, videogame. Em 1939, portanto às vésperas do conflito mundial seguinte, ele deu uma palestra na Universidade de Oxford. O tema era uma indagação: “O belo importa quando bombas começam a cair?”.

Como não? — respondeu ele.

A condição humana sempre foi feita de contendas, caos e dor. Vivemos inexoravelmente à beira do precipício, mas a cultura também emerge, sempre. Se adiássemos a busca do conhecimento e a procura do belo até haver alguma paz, nem sequer as pinturas rupestres existiriam.

— O ser humano propõe teoremas matemáticos em cidades sitiadas, conduz argumentos metafísicos em calabouços, faz piadas em cadafalsos e penteia o cabelo em trincheiras. Isso não é panache; é nossa natureza — argumentou.


A matemática lhe dá razão. Historiadores já calcularam que, ao longo de toda a trajetória humana, tivemos até hoje míseros 29 anos sem que alguma guerra estivesse em curso em algum ou em vários pontos do planeta. Atualmente, o portal Rule of Law in Armed Conflicts Online (Rulac), da Universidade de Genebra, monitora mais de 110 conflitos armados a espalhar desgraças. Ucrânia e Gaza são apenas os mais visíveis.

É neste mundaréu atritado que se comemorou, na semana passada, mais um Dia Internacional da Mulher. Haja fôlego para ainda precisarmos tanto desse reconhecimento com efeméride, apesar das distâncias já caminhadas. Boa oportunidade para querer ir além, alcançar o mais difícil para qualquer bípede: encontrar a si mesmo. O poeta e.e. cummings (em minúsculas, como ele gostava) sabia das coisas quando escreveu que “para sermos aquilo que somos — num mundo que se dedica, dia e noite, a fazer com que sejamos como os outros —, é preciso embrenhar-se na luta mais árdua de nossas vidas”. Tinha razão o poeta, visto que, para alcançar algum grau de autoconfiança, cabe a cada um construir sua ponte individual sobre o rio da vida. Como já se escreveu aqui, quase todo ser humano é capaz de aprender a pensar, a fazer, a saber; mas nenhum ser humano consegue ser ensinado a sentir. O motivo? Porque, em qualquer atividade outra que não a sensorial, somos sempre a soma de outras pessoas, enquanto no sentir somos únicos — somos só nós mesmos, verdadeiros. E é apenas a partir desse “eu” raiz, secreto e íntimo, que adquirimos coragens, selecionamos lutas, armazenamos confiança, arriscamos mudanças.

De volta à necessidade do belo enquanto bombas explodem à nossa volta, o mesmo e.e. cummings soube como poucos, por meio da arte, ser ninguém outro que ele mesmo. Deu um conselho sobre a busca pela palavra certa para jovens candidatos a poetas: se, ao final de dez ou 15 anos de tentativas, eles percebessem ter conseguido compor uma única linha de um só poema, poderiam considerar-se sortudos.

— Daí meu conselho para quem deseja dedicar-se à poesia: a menos que você esteja disposto a lutar até morrer em nome de cada palavra, é melhor fazer algo mais simples como aprender a explodir o mundo. Isso soa sombrio? Não é. Essa é a vida mais esplendorosa do mundo — concluiu.

Estava com 53 anos e morreu em nome de cada palavra arrancada de si.

Coisa para poucos.

A nós, como sociedade, que na definição do francês Frédéric Gros “não sabemos mais viver, apenas ocupamos o mundo e consumimos”, sempre resta a oportunidade de dar um restart. Coisa difícil e tortuosa, pois nenhuma travessia expõe tanto nossa vulnerabilidade e nossa força como começar algo novo. Mergulhar no extraordinário e assustador desconhecido do possível embute riscos e exige confiança. Receitas não faltam, tanto por parte de pensadores universais como em livros de autoajuda: expandir ao máximo os campos de interesse; cultivar a dúvida que permite erros e correções; desconfiar de certezas absolutas; repelir o discurso mecânico, qualquer que seja a nobre causa; saber que o desprezo pelo que não é compreendido nunca é um sentimento democrático.

Mulher combina com democracia. Não dá rima, mas dá alegria. É uma delícia poder gostar de ser mulher.

Lula explica por que sua popularidade está definhando

Houve uma certa curiosidade em saber a reação do presidente brasileiro, Lula da Silva, à notícia de que todas as pesquisas registravam uma queda em sua popularidade mesmo entre aqueles que votaram nele e entre as categorias da sociedade que sempre foram mais leais a ele, como as mulheres, os jovens e os mais pobres. Lula não esperou 24 horas e respondeu em entrevista ao SBT.

Contra alguns que esperavam que o presidente pudesse culpar a mídia pelos resultados negativos de seu mais de um ano de mandato, como alguns membros de seu partido, o PT, tendem a fazer, Lula reagiu com inteligência emocional. Ele não culpou ninguém. Ele ainda disse que via essa queda de popularidade como normal: “Tenho certeza de que o povo do Brasil não tem motivos para me dar cem por cento de popularidade, pois ainda estamos muito longe do que prometemos. Eu sei o que prometi e os compromissos que assumi.”

Com uma imagem gráfica explicou: “Até agora só preparamos a terra, aramos, colocamos adubo e enterramos as sementes”. E continuando com o otimismo, acrescentou: “Este é o ano em que começaremos a colher o que semeamos”. Na mesma entrevista, Lula abordou a outra questão espinhosa da polarização política, que segundo ele o seu Governo não facilita. Ele também se mostrou otimista: “Não me preocupo com a polarização do país. Também foi assim no passado. Agora o Brasil está polarizado entre duas pessoas, porque na verdade se trata de duas pessoas e não de dois partidos.” Referia-se a ele e a Bolsonaro, embora enfatizasse que na verdade a extrema-direita não tem e nunca teve partido próprio. Ele tentou criá-lo no primeiro ano de seu governo e falhou.

Em sua entrevista, Lula foi contundente: “A mensagem que quero deixar ao povo brasileiro, independente de quem vote, em que partido ou em que religião aposte, vamos fazer deste país um país onde as pessoas vivam felizes. Vamos criar mais trabalho, melhores salários, mais educação, mais cultura e mais prazer.”

Lula deu uma muleta e lembrou ainda que a polarização que o Brasil vive e que de alguma forma dificulta o seu Governo não foge à regra: “Acho que o mundo inteiro está hoje polarizado em todos os continentes”. Uma forma elegante de indicar que a sua dificuldade em começar com as promessas feitas depende também da crescente polarização da política mundial entre esquerda e direita, como as eleições em Portugal acabam de demonstrar.

Em seu otimismo nunca disfarçado, Lula chegou a dizer que a polarização atual no Brasil pode até ser positiva. E ele acredita que os brasileiros logo perceberão que seu governo será capaz de cumprir suas promessas, especialmente em termos de melhorias econômicas para os mais necessitados.

Na verdade, Lula baseia seu otimismo no fato de que em breve a sociedade compreenderá que seu governo está disposto a demonstrar o que a ex-presidente Dilma Rousseff cunhou como: “Gastar é vida”. Lula quer que a riqueza do país, que é muita, chegue o mais rápido possível não só aos mais mortificados pela inflação, mas também à classe média baixa que pressiona para não ser esquecida.

Os analistas mais críticos, como Merval Pereira, colunista do jornal O Globo , atual presidente da Academia de Letras, ressaltam, porém, que o slogan de Lula de gastar a qualquer custo pode ter um efeito bumerangue. O acadêmico escreve: “É saudável a preocupação de Lula com os pobres que fogem por entre seus dedos na direção da direita religiosa (os evangélicos), mas ele não consegue entender que o mercado, em vez de ser uma fera faminta, é um marcador de democracia como transmissor de informação e expressão da opinião pública.”

Lula, porém, em seus esforços para minimizar as pesquisas que indicam queda na valorização de seu Governo, chegou a dizer: “As pessoas não devem esquecer uma única palavra dita na minha campanha eleitoral”. Mas como ninguém é de ferro, numa das suas promessas, a de não tentar um novo mandato presidencial em 2026, Lula deixou agora claro que, se a sua saúde e a idade o permitirem, tentará novamente a sorte.

O que ninguém pode acusar o velho sindicalista, sem instrução, é de falta de perspicácia política, já que nos seus mandatos anteriores acabou sempre por “comer a oposição”, como escreveu na altura este jornal. Será que desta vez ele conseguirá digeri-la também para poder governar em paz?

quinta-feira, 14 de março de 2024

Pensamento do Dia


 

O ‘você sabe com quem está falando’ à bala

Estudei sociologicamente o rito autoritário que intitula esta crônica. Conheço-o desde menino e, como costume ou hábito, ele é parte “natural” da minha sociedade. Presenciei situações em que a ausência de reconhecimento de uma autoridade causava embaraço e produzia vergonha.

Volto ao assunto quando, horrorizado, tomo conhecimento do absurdo cruel ocorrido em Vila Valqueire, no Rio de Janeiro, onde um motoboy entregador de refeição levou um tiro por não ter se comportado convenientemente com a esposa de um cliente militar. Foi, sem dúvida, um “você sabe com quem está falando” à bala.

Insisto em que precisamos ter consciência desses hábitos autoritários embutidos em fórmulas habituais que, no discurso político populista, alimentam a proposta de prometer para não cumprir. É preciso realizar uma engenharia política capaz de neutralizar esses costumes aristocráticos, responsáveis por graduações e hierarquias em todos os lugares.

Não há quem não queira ser celebridade ou autoridade no Brasil. Ser “conhecido” é não se preocupar mais em anunciar, em viva voz ou à bala, quem somos. O preço alto e, às vezes violento, de não saber com quem se fala é um sintoma de resistência à mobilidade e ao anonimato. Anonimato que cimenta a igualdade, pois trata todos do mesmo modo.


Se há a suposição de que tenho de saber com quem estou falando, então a sociedade onde vivo diz que todos devem se conhecer. Ora, o conhecer mútuo implica saber o lugar de cada um no sistema. O resultado dessa ética de gradação é obvia. Se não “trato bem” e não presto atenção aos outros, posso sofrer uma reprimenda que chega na forma de uma advertência sobre minha inferioridade. Sobretudo se desempenho papéis como vendedor, motoboy, carteiro, motorista, porteiro, garçom — a lista é enorme e móvel —, que demandam o anonimato e a impessoalidade, essas dimensões que exigem a igualdade na relação com todos os clientes.

O “você sabe com quem está falando?” é fruto de uma sociedade em que as relações são mais importantes que as leis. Ela é avessa à mobilidade e à igualdade. Nela, inferiores e superiores se conhecem (esse traço é o eixo das “elites”) e têm códigos habituais de tratamento, porque a exceção é uma intrusiva igualdade, e não a boa e velha hierarquia. Vivemos entre a impessoalidade da lei e as demandas irrecusáveis e particularistas dos amigos e conhecidos.

Nossa questão permanente e exaustiva é como, no universo público, enfrentar os “mal-educados”, os malandros e os que querem levar vantagem em tudo. Os possuídos por um salve-se quem puder, quando se encontram na nudez de um maldito anonimato. Eu corria para entrar na barca e imbecilmente ficar ao lado de quem fazia o mesmo. No bonde ou no ônibus, fazia a mesma coisa. Até que pude “andar de carro” e fui obrigado a “furar” o sinal para escapar dos “barbeiros”. Passei da indignada fila do ônibus para o frustrante engarrafamento do trânsito. Uma frustração que tem sua raiz no conflito de uma sociedade dividida entre o ideal hierárquico do “eu sou especial” e um sistema baseado na impessoalidade de uma igualdade lida como erro, confusão ou insulto. É complicado, e fica cada vez mais impraticável, lidar com o mundo público da “rua” como “casa” — um espaço onde todos sabem com quem estão falando.

A passagem da família e da amizade para a cidadania requer a consciência da universalidade das leis que valem para todos. Mas, para isso, será preciso ceder ao particularismo relativista, mãe do apadrinhamento que distingue os interesses pessoais das demandas impessoais e universais da sociedade. Não cabe continuar com o refrão maquiavélico do “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, o anonimato, a impessoalidade e, é claro, pois ninguém é de ferro, o “você sabe com quem está falando?”.

Alguém lembra?

Àqueles que reclamam do Presidente da República uma palavra tranquilizadora para a nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social
Presidente João Goulart, no comício da Central do Brasil, no Rio, deposto em 2 de abril de 1964

Contradições de uma humanidade sem rabo

É isso mesmo. Uma matéria recente da BBC revela que o ser humano só virou gente depois que perdeu a cauda! O homo sapiens é um macaco sem rabo. E quem comprova tal hipótese é a New York University. Nossa evolução acelerou quando nossa cauda sumiu.

Não quer dizer que, para diversos animais, o rabo não seja um instrumento importante de defesa no caso do jacaré, ou de equilíbrio para os gatos, ou mesmo de locomoção para alguns de nossos primos macacos.

Dá pra imaginar que a teoria da NYU faz todo sentido, quando comparamos nosso elevado desenvolvimento, por exemplo, com o das cobras (que são praticamente só cabeça e rabo), considerando que elas continuam rastejando após 170 milhões de anos.

Segundo a BBC, a grande dúvida agora é quem veio primeiro, a queda do rabo ou a evolução. Alguns discordantes acham que é possível só termos perdido o rabo depois que evoluímos.

A coisa fica mais confusa ainda quando se acrescenta ao debate a Teoria da Evolução de Darwin, segundo a qual os humanos seriam parentes próximos dos macacos. Ou seja, será que outros macacos como os chimpanzés, que hoje não têm mais rabo, já atingiram o auge de sua evolução acima dos demais primatas? Ou devemos temer alguma concorrência futura no estilo Planeta dos Macacos?

A tese da evolução decorrente da perda do rabo (há uns 25 milhões de anos) está relacionada, entre outras coisas, com a possibilidade de caminharmos com duas pernas, liberando as mãos para outros afazeres mais criativos e produtivos.

Sendo assim, não seria exagero imaginar que, se ainda ostentássemos frondosas caudas, não teríamos sido capazes de inventar maravilhas como o telescópio espacial James Webb e o acarajé. Visto de outro ângulo, não é absurdo supor que não haveria bomba atômica se Oppenheimer ou Einstein tivessem rabo.

Qualquer que seja a conclusão dessas pesquisas, já servem pelo menos para fazermos uma reflexão crucial. Ao perder o rabo, o ser humano teria perdido também seu senso de autopreservação? Estaria na cauda a nossa consciência de pertencimento à natureza?

Vale a pena observar que, sem o rabo, fomos capazes de inventar e produzir milhões de automóveis movidos a petróleo e agora substituí-los por outros tantos milhões movidos a baterias de lítio, sem sequer questionarmos para que (e a quem) servem tantos automóveis.

A falta do rabo também nos garantiu inteligência para criar o Estado e a democracia, sem que os utilizemos para eliminar a desigualdade social e a violência. Da mesma forma, sob a justificativa contraditória de protegermos a humanidade (de si própria) trocamos nossa cauda por um volume trilionário de armamentos e munições.

Outra recente curiosidade sobre a humanidade sem rabo é que nas eleições de Portugal, ocorridas esta semana, grande parte dos eleitores brasileiros com cidadania portuguesa votou na mesma extrema direita xenófoba que os agride esbravejando “porcos, saiam daqui e voltem para o Brasil”.

Tantas contradições levam a crer que ainda pode ter sobrado algum pedacinho de rabo em algumas pessoas.
Felipe Sampaio

O exercício da liberdade

Qual foi a intenção do escritor Jeferson Tenório ao escrever o “O avesso da pele”? Foi o que eu perguntei a ele. A obra está no meio de um turbilhão após ter sido atacada pelo obscurantismo e pela censura por supostamente não ser apropriada para jovens do ensino médio. “Eu tinha a intenção de fazer uma grande declaração de amor ao conhecimento, aos livros, às bibliotecas, às referências literárias.” Na história, Henrique, o professor de literatura, consegue atrair seus alunos para “Crime e castigo”, de Dostoiévski. Ele se entusiasma com a vitória e planeja levá-los para Kafka, Cervantes, Virgínia Woolf, Toni Morrison. Ele pensava nisso tão intensamente, andando na rua, que não ouve as sirenes. Ele sonhava com literatura, quando a polícia chegou. Ele era negro.

Vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, traduzido em 16 países e proibido a estudantes do Paraná, Mato Grosso e Goiás, o livro pode ser entendido como uma obra sobre o afeto entre filho e pai, a complexidade das relações raciais no Brasil, a violência cotidiana de gestos, palavras, supostas piadas, abordagens policiais a que os negros brasileiros são submetidos. Fala da dificuldade de ensinar literatura a jovens, e da corrida do professor entre colégios para ter uma renda. É um livro sobre o Brasil com suas feridas. É tudo, menos um livro de pornografia.

Quem quer censurar usa uma cena ou um palavrão para atirar contra o livro. Pretexto. Parte de quem não vê o que é realmente escandaloso no país. É a educação ter caído no IDH em 2022. É sermos ainda um país que fere diariamente os negros com uma divisão inaceitável. Muita gente tem reagido em defesa do livro, mas ficam as dúvidas. Quando termina um movimento que começa com a retirada de livros das escolas? Que mal íntimo a censura faz ao autor? Perguntei a Jeferson Tenório se esses fatos podem acabar provocando a autocensura.

— Acho que isso é uma das estratégias do ultraconservadorismo, em que se inverte a lógica. Então você coloca a culpa na vítima. Como se fosse um crime colocar um palavrão ou uma cena de sexo num livro. E aí o autor, o artista, passa a se questionar: será que eu estou de fato exagerando? É um exercício que a gente deve fazer enquanto criadores. O exercício de liberdade. Um exercício interno de entender que o que eu estou produzindo depende justamente desse consentimento de liberdade que o fazer estético nos dá. Ou seja, eu só posso criar uma obra literária a partir dessa premissa da liberdade. Mas não é fácil mesmo porque a gente tem que estar sempre lutando consigo mesmo: será que eu coloco isso aqui? Será que não? — respondeu Jeferson, na entrevista que fiz com ele na GloboNews.


A censura é insidiosa. Ela arma essa cilada. Tenta ganhar até quando perde, entrando dentro do autor. Jeferson está escrevendo um novo livro que se passa no ambiente acadêmico em mudança, após a chegada de pessoas negras.

— Houve uma revolução silenciosa, o rosto da universidade se modificou e com isso mudou também o conhecimento que é validado ali dentro.

Hoje há muito mais negros publicando obras que fazem sucesso e têm destaque, mas há aí uma sutileza importante a ser entendida, no que ele define como uma “primavera negra”.

— Isso deve ser comemorado. A gente pode falar de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves. Por outro lado, me preocupa um pouco esse discurso de tentar “guetizar” os escritores negros, e dizer que eles não fazem uma literatura canônica. Como se a gente estivesse fazendo outra coisa que não literatura. Porém, é importante que a gente marque um território político ao dizer e reforçar, em determinados momentos, que são autores negros e, em outros, se colocar como autor.

“O avesso da pele” é sobre literatura, relações familiares, racismo estrutural. O autor explica:

—O professor Henrique é um professor negro de literatura, essas relações familiares acabam sendo atravessadas pela questão do racismo estrutural e pela violência policial. É um livro que congrega todos esses temas em torno da história entre pai e filho.

“O avesso da pele” é lindo, forte e narrado de forma a criar a imediata intimidade do leitor com a história. “Até o fim você acreditou que os livros podiam fazer algo pelas pessoas”, diz Pedro ao seu pai, Henrique. É esse o livro que tentam censurar no Brasil. Começam assim as fogueiras.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


Qual Brasil queremos ser?

Há uma resposta pronta, repetida vezes sem fim, para a pergunta do título: “queremos um Brasil desenvolvido!” Trata-se, porém, de uma resposta equivocada. A razão do engano é a brutal imprecisão da resposta. Ela carece de clareza: como seria um Brasil “desenvolvido”? O que é um país “desenvolvido”? A Suíça, o Japão, a Espanha, os EUA?

Claro, jamais poderemos ser qualquer desses, todos eles resultados das respectivas histórias. Assim como nós. Queremos ser, todos concordam, um Brasil “melhor”. Mas a incerteza persiste, tantas são as respostas possíveis para qualificar esse país “melhor”. Queremos o paraíso na Terra? Sim, queremos, mas modéstia e realismo são necessários para “melhorar”, progressivamente. Assim, devemos definir “melhor” com os pés na terra, cientes que as grandes caminhadas começam com o primeiro passo. Devemos escolher melhorias passíveis de serem alcançadas em poucos anos e usar a criatividade e a diversidade da população brasileira para experimentar caminhos e encontrar aqueles mais curtos para alcançar as melhorias desejadas.

Acabar a dengue em quatro anos? Desejável, mas talvez impossível. Reduzir a incidência da doença em 50%? Especialistas, embora divergindo, dirão com mais precisão da viabilidade de tal meta, e as ações necessárias para torná-la realidade. Se nos pusermos de acordo que tal fim é desejável, seja ele uma queda de 40% ou 60%, poderemos construir caminhos diversificados para chegarmos lá, uns aprendendo com os outros. E, ainda que nada mais mude, teremos um Brasil melhor (ainda que apenas um pouquinho) em quatro anos!


Claro, não basta um único objetivo, ainda que meritório como o citado acima. E na educação, na limpeza urbana, na pontualidade do transporte coletivo, na habitação, no saneamento, quais os objetivos factíveis no curto prazo de um mandato?

Se elegermos uma bancada legislativa e um, ou uma, presidente, comprometidos com o alcance de um pequeno número de metas claras e objetivas, que de fato melhorem a qualidade de vida dos mais carentes, como exemplificado acima com a dengue, saberemos encontrar os meios para alcançá-las, assim como os norte-americanos encontraram maneiras para levar e trazer uma pessoa à Lua em menos de uma década! E nós mesmos conseguimos construir uma belíssima capital e transformar o Brasil no mandato de JK. Clareza quanto aonde chegar, mas com realismo e sem a pressa inflacionária de então!

Pena que desde então nossas lideranças ficaram míopes correndo atrás da miragem chamada “desenvolvimento”, sem que saibamos qual Brasil queremos ser. Nesse nevoeiro, a confusão prevalece, assim como a dita “bateção de cabeça” entre poderes e no interior de cada um deles. E não saímos do atoleiro em que nos colocaram!

Afinal, não há bom vento para quem não sabe aonde vai!

O dia em que a Terra parou

Raul Seixas tinha razão. Quando a Terra parar, nenhum de nós vai escapar das consequências. O que o Raul não sabia quando compôs o rock “O dia em que a Terra parou” é que isso vai acontecer quando a corrente meridional do Oceano Atlântico colapsar. Essa corrente de águas marinhas quentes e frias, que circula o mundo de norte a sul, é uma espécie de fábrica de vida no planeta.

Em tradução ligeira, a água quente do Atlântico Sul segue para o Polo Norte por correntes oceânicas superiores, mas sofre um resfriamento ao chegar nas redondezas da Groelândia. Com isso, mergulha e retorna para o sul por correntes profundas, realimentando um ciclo permanente de distribuição de calor, nutrientes e salinidade entre todos os oceanos, estabilizando a temperatura do planeta e as condições de vida marinha e terrestre.

Se esse motor da natureza desacelerar bruscamente, as consequências podem ser, entre outras, o resfriamento extremo do hemisfério norte, calor e secas intensos no hemisfério sul, elevação do nível do mar e até mesmo extinção em massa.

Em 1951, a Terra já havia parado no filme “O dia em que a Terra parou”. A humanidade vivia o auge da ressaca da II Guerra Mundial e começava a sentir a tensão da Guerra Fria, quando Hollywood lança a história da chegada de um robô extraterrestre que ameaçava julgar e castigar a humanidade caso insistíssemos em travar guerras de aniquilação em larga escala.

Uma freada brusca do sistema de correntes do Atlântico também já aconteceu anteriormente, há milhares de anos, mesmo sem a intervenção humana. A diferença agora é que, a partir da revolução industrial, a humanidade afundou o pé no acelerador das emissões de gases efeito estufa e da devastação ambiental, intensificando o aquecimento global e pondo em risco o modo de vida como conhecemos, ao invés de se preparar para amenizar ou se adaptar a esses extremos climáticos.

É o que demonstram estudos científicos publicados nos últimos anos por revistas renomadas como Nature e Science. Os dados sobre o sistema de correntes oceânicas foram submetidos a modelos de simulação em computador que comprovam uma tendência de desaceleração mais rápida do que seria de se esperar naturalmente.

Isso ocorre porque, devido às mudanças climáticas, o derretimento acentuado de geleiras e outros volumes de gelo natural nas últimas décadas aumentou a proporção de água doce desembocada nos mares, catalisando alterações desastrosas na temperatura, velocidade, profundidade e densidade das correntes marítimas planetárias.

Caso voltasse hoje à Terra, quem sabe, o juiz robô alienígena nos impusesse um novo ultimato, dessa vez não apenas contra as guerras, mas principalmente contra nossa obsessão por raspar o tacho dos recursos do planeta. Raul Seixas, rogai por nós.

As igrejas neopentecostais e a consolação a varejo

Fato capaz de pôr orelhas em pé é a presença maior de católicos no comício de 25/2 na Paulista, enquanto predomina entre os evangélicos a opinião de que religião não deveria se misturar com política. O paradoxo é que se tratava de organização neopentecostal, portanto, de evento do nicho eleitoral da extrema direita.

É retrato diferente, induzido pela atuação neopentecostal, que trocou nas mentes o todo pela parte. Enriquecida, essa parte tem prosperado no pacto com a entidade anticrística Mamon, citada nos evangelhos de Lucas e Mateus como fetiche do dinheiro. O comício na Paulista foi mais Malafaia do que Bozo.


Religião, definiu Alfred Whitehead, expoente do pensamento inglês, é "aquilo que você faz com a sua solidão". Enunciado amplo, que contempla tanto os indivíduos na privacidade do relacionamento com a transcendência quanto as administrações da fé voltadas para a consolação das múltiplas formas de desamparo. Isso que Marx viu como ópio do povo, mas não é tão simples assim.

Nenhuma teoria da sociedade ou da história esgotou até hoje a atração pela forma platônica do bem ou pela ideia fascinante de um deus onipotente. A existência, movida a crenças, sempre foi diferente do saber racional. E as religiões lidam com isso de maneira diversa, aproximando-se ou afastando-se das intensidades da fé.

Neopentecostalismo é movimento que se expande como desvio da doutrina cristã, relegando a segundo plano o Novo Testamento e trocando o ensino da Cruz de Cristo pela autoajuda. Estimula o privatismo da devoção nos moldes da teologia da prosperidade. Mas contém formas de acolhimento comunitárias, que foram esquecidas pelas igrejas católicas. Isso pode ser popularmente percebido como mais importante do que estabilidade econômica e democracia.

Foi esse o caldeirão colocado sobre o fogo da extrema direita brasileira nos últimos anos. O que se cozinhou até agora em termos públicos foi o enriquecimento escandaloso de igrejas favorecido pelo governo da vez, vulnerável à chantagem do voto e à pressão de bancadas. Trata-se de um projeto escuso de poder, sob uma teologia de domínio, cujo alvo é o Estado, com mandamentos de ódio e guerra: "E lançarei os egípcios contra os egípcios, e cada um lutará contra o seu irmão, e cada um contra o seu próximo; cidade contra cidade e reino contra reino" (Isaías, 19:2).

No comício, aos pulinhos, a ex-primeira-dama rogava ao Senhor pelo advento da teocracia, regime do ódio, repelido pela maioria evangélica. Mas o fenômeno é morboso e contagiante, católicos já aderem. É que, no vácuo privatista de solidariedade, empatia e amor, "ódio é o veneno que se toma e espera que um outro morra" (Santo Agostinho).

Teologia do domínio é o perigo

Trump é Davi, Bolsonaro é Davi, Milei é Davi. Porque Davi aqui é privilegiado, não é o menino que derrota Golias, que vence a força bruta com a inteligência e a astúcia. Aqui é o rei Davi, um modelo do pecador ungido, porque ele é o senhor das armas, ele é o rei de batalhas, ele é o senhor de um império, mas depois ele se arrepende, torna-se outro. Davi é abraçado pela teologia do domínio. Em outras palavras, Trump, Milei e Jair Bolsonaro, pouco importa os pecados que cometam, eles são ungidos.

João Cezar de Castro Rocha

Estado laico, amém

A mistura tóxica de religião e política, uma aberração num Estado leigo, é hoje parte do dia a dia dos brasileiros, como indica pesquisa da consultoria Quaest. Segundo o relatório, 42% dos cidadãos identificados como católicos avaliaram positivamente o atual governo e 28%, de forma negativa. Entre os evangélicos, a avaliação positiva ficou em 22% e a negativa, em 48%. O vínculo entre filiação religiosa e opinião política parece claro. Além disso, remete à fala da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro no comício de 25 de fevereiro na Avenida Paulista. “Por um bom tempo, fomos negligentes a ponto de dizer que não poderíamos misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”, disse a oradora, antes de chamar Deus para estabelecer seu reino no Brasil.


Não está claro se o Todo-Poderoso deu alguma resposta ao apelo da ex-primeira-dama nem se está disposto a aliviar a situação legal de seu marido, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Já inelegível por abuso do aparelho estatal, ele é apontado como envolvido em outras lambanças, como tentativa de venda de joias presenteadas à República, fraude no cartão de vacina, incitação ao vandalismo e ao golpismo de 8 de janeiro e propagação de mentiras sobre a vacina contra a covid-19.

No comício da Avenida Paulista, ele pregou pacificação, falou em passar borracha no passado e pediu anistia aos envolvidos na depredação golpista em Brasília. O discurso foi interpretado imediatamente, e com bons fundamentos, como busca de anistia para si mesmo. Também nesse evento a ex-primeira-dama, além de citar a Bíblia e de pedir o apoio divino, falou de si e de seu marido como vítimas de perseguição.

Os dados da pesquisa Quaest sobre religião e política poderiam ser um interessante detalhe estatístico, sugestivo, talvez, de algum estudo mais profundo ou de uma boa reportagem. Mas o ato na Avenida Paulista, com presença de milhares de evangélicos e católicos e participação dos pastores Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta, evidenciou mais uma vez os vínculos – vigorosamente afirmados pela ex-primeira-dama – entre a fé religiosa e o jogo do poder.

Observados em muitas democracias, esses vínculos podem estar presentes no dia a dia da vida política e na configuração dos valores coletivos, sem afetar, no entanto, a natureza do Estado e a liberdade civil. Essa tem sido a experiência brasileira desde o início da República.

A Constituição imperial, de 1823, ainda consagrou uma religião do Estado, mas garantiu a liberdade religiosa, embora com certas condições. No caso de religiões diferentes do catolicismo romano, o culto deveria ser doméstico ou realizado em casas sem aparência de templo. De modo mais amplo, a liberdade religiosa foi reafirmada, em 1891, na primeira Constituição republicana.

Esse texto, alterado nas décadas seguintes por algumas emendas, estabeleceu a laicidade do Estado, o reconhecimento exclusivo do casamento civil, o caráter secular dos cemitérios e a laicidade do ensino público.

Os fundadores do regime republicano levaram a sério essas ideias, típicas da modernidade e amadurecidas no mundo ocidental principalmente a partir do século 18. No Brasil, o direito a formas diversas de religiosidade tem sido valorizado há mais de um século, embora ainda se observem, de vez em quando, surtos de intolerância, dirigidos principalmente contra religiões de origem africana. Parece inegável o caráter racista dessas manifestações.

A liberdade religiosa foi geralmente respeitada e valorizada, no País, mesmo nos períodos de autoritarismo. Líderes cristãos e não cristãos foram importantes na resistência à ditadura militar, entre 1964 e 1985, ajudando perseguidos políticos, socorrendo pessoas torturadas e combatendo a violência do regime. Esses líderes e seus grupos foram rotulados como comunistas e vigiados como inimigos do poder, mas, de modo geral, as igrejas mantiveram sem limitações as suas atividades habituais de culto, de pregação e de ação sacramental.

Apesar do envolvimento político de bispos, padres, pastores, rabinos, pais de santo e outras figuras ligadas a religiões, nenhum grupo parlamentar assumiu explicitamente uma identificação religiosa. Não houve uma bancada católica, nem evangélica, nem de qualquer outra denominação ligada a culto ou igreja. Sempre se manteve a distinção, pelo menos implícita, entre ação política e filiação a alguma organização eclesiástica. Grupos ideológicos ligados a alguma denominação religiosa se mantiveram como organizações privadas, sem agitar suas bandeiras nas instituições oficiais.

Essa distinção, observada na rotina democrática e também nas fases mais difíceis da vida brasileira, permitiu a manutenção, por mais de um século, do princípio republicano do Estado laico. Crucifixos pendurados em alguns salões de edifícios públicos nunca impediram a afirmação dessa laicidade, garantida também pela Constituição de 1988, embora promulgada, como indica seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Que assim seja.

terça-feira, 12 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


O discurso do ódio

Diz-se que “já não há fascismo nem nazismo”. Pois não. Mas a natureza humana não mudou, e os instintos humanos que levaram ao fascismo e ao nazismo continuam a ser os mesmos de sempre.

O partido nazi também começou por ser um partido pequeno e jovem, destemido e sério, populista mas impopular. É ao princípio do partido nazi que temos de ir buscar as comparações com o dia de hoje: quando ainda podia ter sido derrotado.

Os fascistas e nazis eram antidemocratas que aproveitaram a democracia para dar cabo dela: para eles, era delicioso usar as armas do inimigo para o deitar abaixo. Eram contra tudo, excepto eles próprios: é esta a característica mais óbvia.


Na política, o impulso é quase sempre construtivo, optimista e, por defeito, generoso: traça-se um futuro que é melhor para todos, e depois trata-se de lá chegar.

Quando essa esperança falha, como falhou logo à entrada dos anos 1930, há duas reacções: uma é traçar um novo futuro e começar a tentar caminhar para lá, e outra é ir à procura dos culpados por tudo aquilo que correu mal.

Tanto faz serem os judeus, ou os emigrantes, ou os capitalistas, ou os democratas, ou os marxistas. Elegem-se os culpados e depois trata-se de os castigar. É esse o discurso do ódio: a energia é gasta na caça aos bodes expiatórios.

É como diagnosticar um cancro para explicar a pobreza e o desespero de um indivíduo. Ele está pobre porque está a ser comido por um cancro. Temos de encontrar esse cancro e arrancá-lo do corpo dele. Só livre desse cancro é que ele poderá animar e enriquecer.

É fácil distinguir as pessoas e os partidos ou organizações políticas que vivem da identificação destes inimigos. Vêem-se como exterminadores de parasitas, como oncologistas, como combatentes. É a violência que os fascina. Basta arranjar uma desculpa, um alvo para essa violência.

O discurso do ódio é negativo, invejoso, vingativo, obsessivo, megalómano, missionário, monocórdico e fantasista. Não é só perigoso – é mesquinho.
Miguel Esteves Cardoso

Negro morrendo, tô nem aí

Não há como pensar sobre segurança pública no Brasil sem considerar o racismo institucional.

A conclusão deveria ser óbvia para quem acompanha o noticiário nacional. País afora, são reiteradas as situações de abuso e violência cometidos por agentes de forças policiais contra pessoas negras.

Tem jovem tomando tiro pelas costas, no DF; disparo de fuzil a queima roupa contra homem desarmado, no RJ; prisão da vítima no lugar do agressor, no RS; morte por asfixia em viatura oficial, no SE; E por aí vai...


Contudo, na mais importante unidade da federação o governador decidiu dar de ombros, ironizar e assumir que não está "nem aí" para denúncias de abusos contra negros e pobres durante a Operação Verão, da PM, na Baixada Santista, após a morte de um soldado.

Registros oficiais apontam que, em São Paulo, as mortes em decorrência de intervenção policial subiram 94% nos dois primeiros meses de 2024, segundo a Conectas Direitos Humanos e a Comissão Arns, que apresentaram queixa à Organização das Nações Unidas (ONU) na semana passada.

"Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí", disse Tarcísio de Freitas a respeito dessa que é a segunda ação mais letal da história do Estado. Perde só para o massacre do Carandiru.

Impressionante o desrespeito à cidadania e a afronta aos direitos humanos. Mas a história ajuda a lembrar que a origem da nossa polícia militar remonta ao século 19, com a chegada de Dom João 6º, em 1808. À época, foi criada a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro para proteger os nobres. Um doce para quem adivinhar: proteger de quem?

Segurança pública inclui diversas nuances e é, com certeza, um tema tão importante quanto complexo. Mas é preciso admitir que está atravessado pelo vale tudo colonialista alimentado pelo preconceito e pelo racismo.

'Zona de interesse': os mil sons do terror nazista

Um rumor surdo acompanha o sono da família: zumbidos, bufos, chiados, detonações... os sons de uma fábrica em pleno funcionamento, noite e dia. Só que esta não produz bens, mas cadáveres. A família que esses barulhos acompanham o tempo todo é a de Rudolf Höss, comandante do campo de extermínio Auschwitz.

Sua casa fica logo ao lado dos muros do campo. A partir do jardim idílico, veem-se as chaminés soltando fumaça densa, à noite elas expelem chamas. As crianças brincam no jardim; para além dos muros, cães ladram, guardas berram ordens e insultos, detentos gritam de dor, tiros são disparados. É o verão de 1943, os crematórios de Auschwitz foram instalados poucas semanas antes, e agora operam 24 horas por dia.


Do lado de cá do muro, Hedwig Höss, interpretada pela atriz alemã Sandra Hüller, candidata ao Oscar, cuida de seu jardim florido, mostra as flores a um bebê. Quando a mãe a visita, ela comenta que quer plantar uma trepadeira junto ao muro, "aí não vai se ver tanto assim".

É uma das poucas cenas do filme Zona de interesse, de Jonathan Glazer, em que a vizinhança é mencionada ou comentada. De resto, o que acontece por trás dos muros é ignorado ou descartado como uma banalidade qualquer. Só uma vez o horror chega até a família: ao se banharem no rio, "Papai" Höss e seus filhos são surpreendidos por uma onda de cinzas vinda do crematório. Em seguida as crianças são lavadas e esfregadas na banheira, com quase desespero.

O idílio junto aos muros do campo da morte periga se desfazer quando Höss é transferido para Berlim. Mas Hedwig quer permanecer no paraíso que criou para si e os filhos – em Auschwitz.

Rudolf Höss (Christian Friedel) é um homem tranquilo e consciencioso, que domina perfeitamente as próprias emoções, que cuida, amoroso, de sua família-modelo: lê contos de fadas para as crianças, carrega a filha sonâmbula de volta para a cama, acaricia seu cavalo e sai para cavalgar com o filho mais velho. Até quando começa seu expediente no campo, onde executa o plano de extermínio dos judeus, inabalável, desumano, com eficiência implacável.

Nas memórias que Höss escreveu na prisão, antes de ser executado em 1947, um dos grandes temas é justamente essa eficiência. Cedo aprendeu a não demonstrar qualquer emoção, orgulhava-se de conseguir manter o rosto glacial, implacável, enquanto cometia assassinatos.

"Eu precisava aparentar ser frio e sem coração em procedimentos que fariam o coração se contorcer no corpo de qualquer um que ainda tivesse algum sentimento humano [...] Tinha que observar friamente as mães entrando nas câmaras de gás com os filhos que riam ou choravam."

No entanto estava sempre pensando na própria família. Quando – após supervisionar a incineração dos cadáveres, a extração das próteses dentárias valiosas, a morte nas câmaras de gás, como mandava seu dever – ficava por vezes tão perturbado que não conseguia voltar para a mulher e filhos em casa, ele escrevia sobre seu mundo emocional oculto.

Remorso, porém, o nazista Höss jamais sentiu: o cumprimento do dever em nome de seus comandantes estava acima de tudo. Assim, o genocídio de centenas de milhares de seres humanos era para ele uma atividade profissional incontornável, que não admitia nenhum tipo de questionamento.

Livremente baseado no romance homônimo de Martin Amis de 2014, Zona de interesse não coloca em questão o caráter de Höss. O que ele questiona é como é possível alguém viver nas vizinhanças imediatas de uma fábrica de morte e obliterar qualquer percepção do que está acontecendo por trás dos muros.

O ator Christian Friedel, que representa Höss, comentou à revista online Filmstarts: "É mesmo um fato que as pessoas viveram assim. Acho que essas dimensões do recalque – que seriam possíveis em nós todos, pelo motivo que seja – são exatamente o espelho que o filme quer colocar diante da gente."

Esse mecanismo de recalque se manifesta de forma especialmente crassa nas cenas em que uma das crianças brinca com dentes de ouro arrancados; um prisioneiro aduba as flores do jardim da família com as cinzas dos incinerados; ou Hedwig Höss experimenta o casaco de pele que pertencia a uma judia assassinada. Ao encontrar um batom num dos bolsos, ela se maquia com ele: não lhe importa que a última a aplicá-lo nos lábios tenha sido uma vítima de seu marido.

As rodagens foram inusuais para os participantes: espalhadas pela casa e o jardim, estavam câmeras sem operador. Tudo era observado e controlado a partir de um trailer, o elenco atuava sozinho, sem nunca saber quando e em que posição estava sendo filmado. Também não há praticamente close-ups das personagens, e essa distância proporciona ao filme um caráter quase documental.

Os diálogos parecem em parte improvisados, algumas conversas são incompreensíveis – o que não é uma perda, porque em geral se trata de meras banalidades. A não ser que Hedwig note ser preciso mandar ajustar as roupas das vítimas do campo – de que a família se apoderou como se fosse seu direito: os vestidos são todos estreitos demais.

Já tendo recebido numerosas distinções, entre as quais o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2023, Zona de interesse está indicado para concorrer a cinco Oscars em 10 de março: além de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, os de Direção, Roteiro Adaptado e Som.

O cineasta inglês Jonathan Glazer conseguiu apresentar o Holocausto de modo diferente do que se viu até então, ao intencionalmente abrir mão de mostrar por meios visuais as atrocidades que se cometem atrás dos muros.

Esse trabalho cabe inteiramente à sonografia: os barulhos onipresentes do campo de extermínio dispensam imagens para transportar o horror. Praticamente não há música: empregada com grande parcimônia, a trilha sonora é eletrônica e de brutalidade extrema.

Glazer recrutou como sound designer Johnnie Burn, com quem já colaborara em sua obra anterior, a experimental Sob a pele, de 2013. A dupla considerou cuidadosamente até mesmo a forma como o som chega ao público: renunciando à qualidade imersiva, "sensacionalista", da tecnologia multicanais Dolby Atmos, a trilha é em mono – como num anacrônico preto-e-branco sonoro.

"Foi o que simplesmente deu mais a sensação de documento do que qualquer outra coisa. Deixou aí de ser um lustro em cima do modo como o som era representado", explicou Burn à revista online Filmmaker.

Zona de interesse é uma obra cruel e importante. O ator Friedel comenta: "Quando vejo em que tempo estamos vivendo, como o filme é relevante, eu fico feliz de a gente tê-lo feito." Quando, ao fim, a tela fica preta, irrompe uma espécie de coro, torturantemente alto, dissonante, devastador, brutal: é terror em estado puro – e, no entanto, engendrado por seres humanos.

Gaza hoje

1.

Gaza já foi um campo de concentração, num tempo remoto, há cinco meses. Agora é um campo de extermínio, nos nossos ecrãs. Vi, no meu telefone, uma menina de Gaza pedir ao seu gato, com festas: quando formos mortos, por favor não nos comas. Vi gatos a rondarem gente morta no meio da rua. Cães a desenterrarem valas para comerem gente. Gente que comeu a comida dos cães, dos gatos, fez pão com isso. Que está a comer erva da rua, algas do mar com esgoto.

Milhares a lutar por um saco de farinha da ajuda humanitária. Uma menina com a metade de um limão porque não há pão. Crianças na areia de Rafah a brincar de amassar pão imaginário, cozer pão imaginário, porque estão esfomeadas. Como aquele judeu que cobiçava o pão do vizinho em Auschwitz, e nos perguntou – continua a perguntar – se isto é um homem.

Nunca vimos tantas provas de quem morre. E de quem mata. Soldados dedicam bombas às namoradas antes de carregarem no botão. Mandam pelos ares prédios de Gaza ao melhor estilo PlayStation. Montam vídeos com banda sonora, hits israelitas de guerra, raves de pastilha. Estão só doentes, ou também drogados?

Como aqueles soldados a espancarem coisas já muito destruídas numa loja da Cisjordânia: espancavam e espancavam, eufóricos, com tacos de baseball, com martelos, numa orgia. Um deles urrava, regando tudo com um jacto de espuma.

Muitos grafitam casas e mesquitas, insultos, estrelas de David (fotografei dezenas em Jenin). E agora roubam casas em Gaza por sistema: tapetes, cosméticos, motos. Um dos mais ricos e bem equipados exércitos do planeta, na sua versão gangs de Israel. Comportamentos que eu nunca tinha visto desde a primeira vez que lá estive, há 22 anos. Tal como israelitas com idade para serem pais e avós, sempre amorosos com os seus, e com os seus animais, dizem agora, como nunca antes: “Fuck Gaza”.

Porque para eles é 7 de Outubro. Não passaram 141 dias e 30 mil mortos em Gaza. Toda a compaixão que têm é para os 1000 mortos israelitas, os mais de 100 reféns do Hamas ainda vivos. Gente que merece estar tão viva como toda a gente. Incluindo o milhão e meio de moribundos nas barracas de Rafah, que já não movem esses israelitas laicos. Não os levam às ruas.

2.

E a cada manhã acordo e mais uma estrela da TV em Israel, mais um ministro, por vezes ministra, diz: “Estou orgulhosa das ruínas de Gaza.” Ou: “Não há inocentes em Gaza, as crianças de cinco anos não são inocentes.” Ou: “Vamos matá-los à fome, destruir tudo para partirem voluntariamente.” Ou: “Nunca haverá um Estado palestiniano.” Ou: “Como se atrevem a criticar-nos? Somos os filhos do Holocausto.” Ou: “Ninguém diz a Israel o que fazer”.

Não faltam declarações de intenção, além de comprovativos. Não falta orgulho nisso. Um país mais que narcísico: em grande parte doente.

A brava pequena minoria que combate a ocupação e a guerra, que se nega, por exemplo, a combater, é ostracizada, presa, mesmo. Em 25 de fevereiro, Sofi Orr, 18 anos, enfrenta a prisão. Entrevistei-a em sua casa no começo de janeiro.

3.

Nos últimos dias, multiplicam-se relatos de mulheres em Gaza, até já avós, que foram levadas pelos soldados, obrigadas a ficarem de roupa interior, ameaçadas, interrogadas sobre o Hamas. Na sua guerra “até à vitória final”, Israel está a tentar extrair informações torturando incontáveis multidões de palestinianos. Já acontecia com os homens, e era registado em imagens há meses, mas tudo se agravou, a escala dos detidos, a pressão das torturas, com simulação de afogamento, espancamento com barras de ferro, ferros metidos pela boca. Soldados de elite a humilharem milhares de homens, filmando-os despidos, vendados e amarrados, uns atrás dos outros, de cabeça curvada. O fascismo dos 120 dias de Saló-Sodoma que Pasolini retratou no cinema. Mas agora há 141 dias nos nossos telefones, pela mão armada dos descendentes de Auschwitz.

Então o que havia depois de Auschwitz era Auschwitz-em-direto.


4.

Lula da Silva quebrou um tabu entre líderes democráticos ao comparar o que está a acontecer com o Holocausto. O governo de Israel declarou-o persona non grata. Vi um cartoon em que Benjamin Netanyahu lhe chamava extremista enquanto lhe pingava sangue das mãos. Pois. Fora Israel, e bolsas sionistas aqui, ali, não dei por uma indignação alargada contra Lula. Um sinal de como ele toca em algo verdadeiro. Podemos preferir que algumas palavras dele tivessem sido outras.

Sabemos, como Lula sabe, que nunca antes nem depois seis milhões foram exterminados, com uma “Solução Final” decretada por um homem, e câmaras de gás e fornos adjudicados a toda uma máquina, e burocracia, de morte industrial. O Holocausto dos judeus da Europa tem circunstâncias únicas, e Lula não põe isso em causa. Mas claro que a comparação que ele faz está na mente de toda a gente com memória, com cabeça, com coração.

Masha Gessen, intelectual judia que citei há semanas, também foi criticada por essa comparação, e respondeu que não só ela pode como deve ser feita. Claro que fazê-la perturba, mas devíamos estar todos a perder o sono é com o que se passa em Gaza, diz Masha Gessen. E deve ser feita agora, porque é agora que temos de salvar vidas.

Foi isto que Lula percebeu. Um estadista com a intuição de poucos. Lula liberta os líderes para pressionarem o cessar-fogo, apontando a Israel o espelho que Israel mais teme. E que é o que lhe cabe, sim. Vou mais longe do que dizer que a comparação deve ser feita: essa é “a” comparação. Porque é de Israel que falamos. Da excepção que Israel representa no mundo. Do Holocausto que Israel explorou, transformando-o numa arma apontada para nós até hoje, na maior chantagem política de que há memória. Lula tocou no ponto, na ferida, no horror: que sejam os descendentes do mal maior a fazer isto. E que estejamos nós paralisados na culpa, deixando os vivos de agora morrer.

A comparação não é só incómoda para Israel. É para todos nós. O que diz isso sobre o humano.

Há mais de quatro meses escrevi aqui que travar a morte em Gaza seria honrar enfim a memória do Holocausto. Logo a seguir, que era preciso uma força de interposição em Gaza, e um boicote do mundo ao governo de Israel. Dezenas de milhares de mortos depois, e com milhões em risco de morrerem à fome ou doença, Gaza é o maior campo de extermínio do nosso tempo de vida.

Lula falou. Faltam sanções, boicote e desinvestimento. Israel tem de ser isolado: em nome de Gaza, dos palestinianos, de todos nós, dos judeus em geral. E dos israelitas. Não o fazer será ser parte do crime e da doença. O tabu do Holocausto acabou. Tal como a utopia de Israel.

Saudei que o ainda ministro Cravinho contrariasse as sanções à UNRWA, com um simbólico milhão extra de apoio, e falando no isolamento de Israel. Falta tudo o resto, isolar de facto, espero que também pela mão do próximo governo português.

5.

Israel está em autodestruição há muito. Antes de 7 de Outubro, à beira de uma guerra civil entre os que acreditam que o país é uma democracia e os que querem uma autocracia, ou teocracia. É o grande fosso entre sionistas laicos e religiosos. E o 7 de Outubro, que foi o maior trauma do Estado de Israel, não apaziguou isso. Ao contrário do que tende a acontecer quando um país se sente atacado, Israel não se uniu. A guerra interna segue latente.

Um dos frutos de todas estas décadas, e de todas as contradições. Desde a contradição de origem — querer ser um Estado judaico e uma democracia — a continuar a ocupar e colonizar um povo, depois de o destituir da sua terra, forçar a tornar-se refugiado.

O historiador israelita Ilan Pappé elencou em Janeiro cinco fatores para o que chama “começo do fim do projeto sionista”. O fosso laicos-religiosos é um. Outros quatro: o apoio crescente à Palestina, agora numa lógica anti-apartheid inspirada na África do Sul; a ocupação e a guerra sugarem a economia de Israel (e a Moody’s rebaixou Israel há dias, inédito e muito falado lá); a incapacidade de defesa que o exército demonstrou a 7 de Outubro; e cada vez mais judeus no mundo, sobretudo nos EUA, já não acreditarem que a existência de Israel protege os judeus. Ao contrário, pensarem que os ameaça. Subscrevo tudo.

Israel foi uma utopia a mentir para si mesma coisas como: “Uma terra sem povo para um povo sem terra.” Presa na culpa, a Europa sustentou a utopia. Foi cúmplice, com o dinheiro e as armas americanas. Israel chegou a 2023 mais doente que nunca. A ferida interna mais a gangrena colonial apodrecendo o colonizador. Mais três mil casas nos colonatos anunciadas anteontem (em retaliação a um ataque a colonos à entrada de Jerusalém).

Benjamin Netanyahu é um escroque. Mas não é a origem do mal, é o desfecho, muitos milhões de desalojados e mortos depois. O Hamas cravou uma faca em Israel a 7 de Outubro. A faca veio de fora. A doença vem de dentro. Israel não vai destruir a Palestina. Autodestrói-se.
 Alexandra Lucas Coelho

domingo, 10 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


Pobre Brasil: é espantoso que não haja condenação clara à trama de um golpe

Há algo muito errado com o Brasil. O contexto histórico da época (o que os alemães chamam de zeitgeist), marcado por diversos escândalos, explica que em 2018 o país tenha escolhido um presidente como Bolsonaro.

É espantoso, porém, para uma nação que pretenda se definir como tal, seguindo as palavras de Ortega y Gasset (“uma nação é um projeto de vida em comum”), que não haja uma condenação clara às barbaridades perpetradas por aqueles que, sem sombra de dúvida, tramaram um golpe de Estado na transição entre 2022 e 2023.


O fato de que, em função do receio de “cancelamento” por parte dos cangaceiros das mídias sociais, uma parte do corpo político do país conserve a ambiguidade diante daquelas manifestações criminosas revela que a nação está, em parte, doente.

Se aquele bando que tentou “virar a mesa”, revertendo o resultado das eleições e subvertendo a ordem constitucional, fez o que fez, foi por entender que forças relevantes do país iriam amparar tais disparates.

Se naquela época o que se tentou já era um despropósito completo, hoje, à luz do que se sabe da famosa gravação daquela reunião indecente, a ambiguidade é um atestado de falta de liderança.

A sociedade brasileira em peso, seus políticos, suas lideranças empresariais, os governadores etc. deveriam deixar cristalinamente claro que não há outra atitude diante daquelas aberrações que não um repúdio veemente. Não nos enganemos: o fato de que isso não tenha ocorrido revela muito sobre nossas deficiências.

O filósofo José Ingenieros, no seu magnífico “El hombre mediocre”, publicado em 1913, qualifica a mediocridade como uma “incapacidade de ideais”, definindo idealistas como aqueles “dispostos a emancipar-se do seu rebanho, procurando uma perfeição que vá além do atual”, reconhecendo que “a Humanidade não chega onde desejam os idealistas, mas sempre chega além de onde teria ido sem os seus esforços.”

Ele marca a devida distinção entre o que se espera de quem tem o dom de se destacar e aqueles que apenas copiam o que entendem que os outros esperam que seja feito, ao afirmar que “a personalidade individual começa no ponto preciso onde cada um se diferencia dos outros.”

Na definição do arquétipo que dá nome ao livro, ele escreve que “o homem medíocre está adaptado para viver em rebanho; sua característica é imitar aqueles que o cercam: pensar com cabeça alheia e ser incapaz de formar ideais próprios.”

E conclui que, no que qualifica de “mediocracia”, ou seja, no “governo dos medíocres”, o que se observa é que “os governantes que não pensam parecem prudentes; os que não roubam resultam exemplares. Ao invés de heróis, declaram-se administradores discretos.”

Ora, o papel de liderança vai muito além de apenas agir da forma que parte da população espera que o político atue e, sim, implica definir um rumo, com base em valores que deveriam ser inegociáveis. Há situações em que um governante — ou aspirante a sê-lo — deve fazer um risco de giz e deixar claro que, em relação a certos pontos, será intransigente.

Não importa se em um primeiro momento ele não tiver a compreensão de todos: com o tempo, ganhará o respeito e a admiração pela sua atitude.

É isso o que se deveria esperar de lideranças: que sinalizem claramente que nunca mais o país deveria assistir a um espetáculo deprimente como o que, desde os mais altos escalões da República, se tentou encenar em 2022.

Por uma ironia, a divulgação desses fatos se deu quando eu estava lendo o livro de Kissinger, “Liderança”. O contraste entre a coragem do general De Gaulle — quando, praticamente sozinho, baseado no que Kissinger descreve como o “senso nato de autoridade pessoal” de um “brigadeiro sem um tostão, exilado numa terra cuja língua não conhecia”, lançou as bases da Resistência francesa — e a atitude dócil dos nossos “caballeros de triste figura”, curvando-se diante do chefe quando estava se tramando uma atrocidade institucional, é a expressão de um país aviltado. Pobre Brasil.

Autocracia religiosa-nacionalista

Netanyahu e os seus parceiros deixaram claro que o objetivo do seu governo de pura direita é a supressão da liberdade de expressão e o estabelecimento de uma autocracia religioso-nacionalista que proíbe aqueles que pensam de forma diferente da esfera pública.

Israel abusou de detidos de guerra em Gaza

Um relatório interno da ONU visto pela BBC descreveu o abuso generalizado de palestinos que foram capturados e interrogados em centros de detenção israelenses improvisados ​​durante a guerra em curso em Gaza.

O projeto de documento compilado pela Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras (Unrwa), a principal agência da ONU que apoia os palestinianos, inclui testemunhos detalhados de detidos que descrevem uma extensa gama de maus-tratos.

Eles incluem ser despido e espancado, ser forçado a ficar em gaiolas e atacado por cães, forçado a posições de estresse por longos períodos e submetido a "traumas contundentes", incluindo coronhas de armas e botas, resultando em alguns casos em "costelas quebradas, separadas ombros e lesões duradouras".

Afirma que tanto homens como mulheres relataram “ameaças e incidentes de violência e assédio sexual”, incluindo toques inadequados nas mulheres e espancamentos nos órgãos genitais dos homens.

Num comunicado fornecido à BBC, as Forças de Defesa de Israel (IDF) afirmaram: “Os maus-tratos aos detidos durante o seu tempo de detenção ou durante o interrogatório violam os valores das IDF e contrariam as IDF e são, portanto, absolutamente proibidos”.

Rejeitou alegações específicas, incluindo a negação de acesso a água, cuidados médicos e roupa de cama. As IDF também disseram que as alegações relativas ao abuso sexual eram "outra tentativa cínica de criar uma falsa equivalência com o uso sistemático do estupro como arma de guerra pelo Hamas".

Em declarações anteriores aos jornais New York Times e Guardian, os militares israelitas afirmaram estar cientes das mortes durante a detenção, incluindo aquelas com doenças e ferimentos pré-existentes, e afirmaram que todas as mortes estavam a ser investigadas.


Os relatos da Unrwa coincidem com outros relatos de abusos em centros de detenção israelitas publicados recentemente por grupos de direitos humanos israelitas e palestinianos, bem como com investigações separadas da ONU.

Este último relatório da ONU, que ainda não foi publicado, baseou-se em entrevistas com mais de 100 detidos, parte de um grupo de cerca de 1.000 detidos que a Unrwa conseguiu documentar desde Dezembro, depois de terem sido libertados de três instalações militares israelitas. Eles incluíram pessoas – homens e mulheres – com idades entre seis e 82 anos, incluindo 29 crianças.

A agência explica que esta informação foi obtida durante a sua função de coordenação da ajuda humanitária no ponto de passagem Kerem Shalom entre Gaza e Israel, onde as FDI têm libertado detidos. A informação também teria sido fornecida “de forma independente e voluntária” por palestinos libertados da detenção.

O relatório afirma que muitos palestinos foram detidos no norte de Gaza enquanto se refugiavam em hospitais ou escolas ou quando tentavam fugir para o sul em busca de abrigo. Outros eram habitantes de Gaza com autorização de trabalho para entrar em Israel. Eles ficaram presos em Israel quando a guerra eclodiu e mais tarde foram detidos.

A Unrwa estima que mais de 4.000 palestinianos foram detidos em Gaza desde o início das hostilidades desencadeadas pelo ataque do Hamas a 7 de Outubro, quando quase 1.200 israelitas, a maioria civis, foram mortos e mais de 250 israelitas e estrangeiros foram feitos reféns.

Na guerra que se seguiu, agora no seu quinto mês, mais de 30 mil palestinianos foram mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, gerido pelo Hamas.

A própria Unrwa tem sido o foco da investigação durante esta guerra. Israel acusou-o repetidamente de apoiar o Hamas e de contratar os seus membros.

A agência da ONU, cujos 13 mil funcionários são considerados a espinha dorsal das operações humanitárias em Gaza, negou as acusações. Mas rescindiu imediatamente os contratos dos funcionários acusados ​​num documento israelita de terem desempenhado um papel nos ataques de 7 de Outubro.

As alegações, também investigadas pela ONU, levaram quase 20 países e instituições a suspender o financiamento. Mas a UE retomou recentemente o seu apoio e outros estão supostamente a preparar-se para o fazer.

"A Unrwa está a enfrentar uma campanha deliberada e concertada para minar as suas operações e, em última análise, acabar com elas", disse recentemente o comissário-geral Philippe Lazzarini numa reunião especial da Assembleia Geral da ONU, no meio de apelos em Israel para que a agência fosse desmantelada.

Na introdução do seu relatório interno, a Unrwa destaca que não é um relato abrangente de todas as questões relativas às detenções durante a guerra, incluindo reféns detidos pelo Hamas, ou outras preocupações relativas ao tratamento de reféns em Gaza por grupos armados palestinianos.