terça-feira, 23 de abril de 2024

Os ianques guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado

A Califórnia já pertenceu ao México, e suas terras aos mexicanos; então uma horda de americanos esfarrapados e loucos imundou-a. E tal era a sua fome de terra que eles tomaram, roubaram as terras dos Guerrero, dos Sutter, roubaram e destruíram os respectivos documentos de posse e brigaram entre eles sobre a presa, esses homens esfomeados, raivosos; e guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. E isso era apropriação, e apropriação era propriedade.

Os mexicanos eram fracos e esquivos. Não puderam resistir, porque nada no mundo desejavam com o frenesi com que os americanos desejavam aquelas terras.


Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante pela terra, por água e um céu azul sobre elas, pela verde relva exuberante, pelas raízes tumescentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nada mais desejavam. Não mais ambicionavam um hectare produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em torno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas em capital mais juros, e as colheitas eram compradas e vendidas antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então as colheitas fracassavam, secas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia, até que finalmente nem mais eram fazendeiros os meeiros, apenas homens de negócios, pequenos industriais, que tinham de vender antes de ter produzido qualquer coisa. E os fazendeiros que não eram bons negociantes perdiam suas terras para os que eram bons negociantes. Não importava quão trabalhador e diligente um homem era, e o quanto amava a terra e tudo que nela crescia, desde que não fosse também um bom negociante. E com o tempo os bons negociantes apropriavam-se de todas as terras, e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo em que diminuíam em quantidade.

Já aí a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto não o soubessem. Importavam escravos, embora não os chamassem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Ora, veja como eles vivem. E se se tornarem exigentes, a gente os expulsa do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia poucos fazendeiros pobres nas terras. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados e se sentiam apavorados, e alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo, e outros rebelavam-se e eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade de proprietários.

E as colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de grãos, e legumes destinados a alimentar o mundo espraiavam-se pelo chão: alface, couve-flor, alcachofra, batatas — colheitas humilhantes, inferiores. Um homem pode ficar de pé quando trabalha com a foice, o arado, o forcado; mas tem que rastejar por entre os canteiros de alface, tem que curvar-se e arrastar o enorme balaio por entre os algodoeiros, e tem que vergar os joelhos como um penitente para tratar da couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários não mais trabalhavam em suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras, o cheiro da terra e a satisfação de cultivá-la; lembravam-se apenas de que elas lhes pertenciam quando estavam calculando o quanto ganhavam ou perdiam nelas. E algumas das propriedades cresciam a ponto de um só homem nem mais poder imaginar o seu tamanho; eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e torná-las mais produtivas; capatazes cuja missão consistia em fazer com que os homens que trabalhavam nas terras o fizessem até o último resquício de sua força física. Então, esses proprietários assim transformavam-se em autênticos donos de armazéns. Pagavam aos homens e vendiam-lhes gêneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E após algum tempo deixavam absolutamente de pagar aos homens e economizavam a escrituração, os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia desse jeito trabalhar e comer; e quando terminava o trabalho verificava simplesmente que ainda devia ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas propriedades, como havia muitos que jamais o tinham.

Então chegaram as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste — vinham de Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira, expulsas pelos tratores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos — inquietos qual formigas, famintos de trabalho, de poder suspender, carregar, puxar, arrancar, cortar, colher, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por um pouco de comida. Nossos filhos têm fome. Não temos casa pra morar. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, antes de mais nada, de terra.

A gente não é estrangeiro. Sete gerações de americanos, e antes disso irlandeses, escoceses, ingleses, alemães temos em nosso passado. Um avô nosso fez a revolução, e muitos outros parentes tiveram na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.

Vinham famintos e ferozes, tinham a esperança de encontrar um lar, e só encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram covardes e que os Okies corajosos, e que eram bem nutridos e que os Okies passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem fraco quando esse alguém era feroz e faminto e estava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também, pois que eles não tinham dinheiro para gastar. Não há caminho mais curto para se obter o desprezo de um negociante. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies porque eles nada lhes deixavam ganhar. Eles nada possuíam. E os trabalhadores odiavam os Okies porque um homem esfomeado tem que trabalhar, e quando precisa trabalhar e não tem onde trabalhar, automaticamente trabalha por um salário menor, e aí todos têm que trabalhar por salários menores.

E os espoliados, os imigrantes inundavam a Califórnia, duzentos e cinquenta mil, trezentos mil. Atrás deles, novos tratores marchavam pelas terras, os meeiros que ainda tinham ficado eram também expulsos. Novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

E enquanto os californianos desejavam muitas coisas, acumular riquezas, sucesso social, diversões, luxo e uma curiosa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam duas coisas: terra e comida; para eles as duas coisas se fundiam numa só. E enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos, indefinidos, os desejos dos Okies jaziam nos caminhos, eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e achar água, boas terras verdejantes, terras que se podia esmigalhar entre as mãos ao experimentá-las, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até sentir-lhes o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que suas costas curvadas e seus braços diligentes fariam frutificá-lo, produzir nele a couve, o milho dourado, os rabanetes, as cenouras.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"

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