domingo, 21 de maio de 2023

Ficção de terror

 


Grito dos analfabetos

Na sua posse, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, fez o mais belo entre os discursos de posse dos membros do novo governo Lula, citando cada grupo de brasileiros esquecidos. Mas ele esqueceu nossos atuais 10 milhões de analfabetos, e os cerca de 20 a 30 milhões que viveram e morreram sem reconhecer a bandeira de seu país, desde que a República e adotou um texto escrito nela. Os primeiros republicanos esqueceram dos analfabetos, e 130 anos depois, continuam esquecidos. O resultado é a vergonha que passamos nesta semana ao tomarmos conhecimento de relatório internacional que nos coloca entre os países com piores resultados na alfabetização de suas crianças e seus adultos.


Uma vergonha, mas também uma burrice. Cada brasileiro que não sabe ler, é vítima da tortura do analfabetismo, leva um chicote dentro do cérebro, acionado para castiga-lo cada vez que vê um texto e não sabe decifrá-lo. Mas também tem limitadas sua produtividade econômica e sua participação na social. , salvo raríssimas exceções. O analfabetismo é uma tortura contra o indivíduo e um desperdício contra o país.

Mas nada indica que o Brasil esteja querendo corrigir esta vergonha e esta burrice. Ao longo da historia os governos conservadores descuidaram da educação e os poucos governos progressistas se preocuparam mais em mostrar estatisticas com o número de universitários, independente do que eles aprendam, do que em abolir o analfabetismo e aumentar o número de jovens concluindo o ensino médio, alfabetizados para o mundo contemporâneo.

Até aqui, nada indica que o tema do analfabetismo de adultos voltará a ser tratado como uma questão de direitos humanos, tal qual foi tratado em 2003, primeiro ano do governo Lula. Por isso, está na hora da sociedade dar um grito dos analfabetos. Se eles não têm sindicatos, partidos, associações ou movimentos, a OAB, ABI, CNI, CNA, CUFA, CUT, CGT ……deveriam se unir pela abolição do analfabetismo: exigirem do atual governo federal que defina uma estratégia e marque o prazo para o Brasil colocar em frente a cada aeroporto uma placa dizendo “você está entrando em território livre do analfabetismo, onde todos sabem ler nossa bandeira”.

'É hora de a gente começar a escutar os indígenas'

Dos mais de 200 anos de contato com o homem branco, os últimos 80 foram os mais intensos para os Krahô, povo indígena que vive no norte do estado do Tocantins. É justamente esse período que é abordado pelo filme A Flor do Buriti, dirigido pela brasileira René Nader Messora e pelo português João Salaviza.

A obra faz sua estreia mundial no Festival de Cannes, evento que ocorre de 16 a 27 de maio. Os diretores esperam repetir o sucesso de 2018, quando Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, também rodado em aldeias dos Krahô, faturou o prêmio especial do júri em Cannes e comoveu o público ao denunciar o genocídio indígena.

"É a segunda vez que a gente viaja para a França com os Krahô, a segunda vez que eles [os participantes do evento] vão escutar um filme apresentado num idioma indígena [a língua timbira, da família Jê]", pontua Messora, em entrevista à DW Brasil. "É a segunda vez que eles vão escutar da boca dos Krahô qual a situação do cerrado brasileiro, o bioma mais devastado do país."



Como a questão da terra é o centro do filme, a diretora espera que a repercussão internacional tenha impacto na decisão sobre o Marco Temporal — o Supremo Tribunal Federal agendou a retomada do polêmico julgamento para o dia 7 de junho.

A Flor do Buriti foi rodado ao longo de 15 meses em quatro aldeias Krahô diferentes. Por meio dos depoimentos dos indígenas, eles reconstituem as últimas oito décadas — do massacre sofrido pelo povo Krahô em 1940 às dificuldades atuais, passando pelo período da ditadura militar.

Do massacre dos fazendeiros às discussões acerca do Marco Temporal, sempre é a terra no epicentro. Como você compara esses momentos?

René Nader Messora: É importante a gente perceber que esses processos de roubo, de esbulho de terra, não são nenhuma novidade. O filme tenta trazer um pouco dessa história da relação [dos Krahô] com o território, desde o massacre [de 1940], que a gente considera um marco. Foi depois do massacre que a terra deles foi […] depois demarcada, por causa dos ecos desse massacre. […] O problema sempre passou pela questão da terra.

Mais tarde, com a ditadura militar, esse problema ganhou uma nova roupagem, mas essencialmente era o mesmo. Mas houve a militarização, a criação de uma guarda rural indígena para reprimir dentro das aldeias, das comunidades e também tinha o intuito de favorecer os grandes fazendeiros da região […]. O Serviço de Proteção aos Índios, que era como era chamada a Funai [hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas] naquele momento praticava livremente o aluguel de terras indígenas para fazendeiros, agricultores, dentro de áreas determinadas para o usufruto indígena. […] A questão indígena e a questão da terra estão intrinsecamente relacionados, não tem como separar.

Essa luta pela terra é a questão mais urgente dos povos originários?

Não é só a questão da terra como território físico, mas a questão do entendimento de território para os povos indígenas. Essa é uma chave que está, com muita luta do movimento indígena, sendo um pouco mais falada hoje. E a gente trouxe [no filme] a fala da Sonia Guajajara [líder indígena, política e atual Ministra dos Povos Indígenas] falando sobre isso justamente porque ela coloca em oposição duas visões de mundo que são ontologicamente opostas: o entendimento de terra dos povos é diametralmente oposto ao entendimento do grande capital.

São dois projetos de mundo antagônicos, que estão em conflito e a Sonia define isso muito bem, de uma maneira muito simples, quando ela fala ‘a terra não nos pertence; nós pertencemos à terra'. Tem uma inversão fundamental aí que a chave: vai muito além do entendimento do território como espaço físico. A gente quis trazer isso para o filme. A Sonia dá essa ideia de que a terra é muito mais do que um pedaço de território habitado por determinado povo.

Isso deve ser discutido agora com a questão do Marco Temporal?

Os povos indígenas vêm batendo nesta tecla faz tempo e a luta contra a tese jurídica do Marco Temporal é a luta que está sendo encampada com a maior força. A continuidade do julgamento foi pautada agora para [o dia 7 de] junho. É um momento muito importante: toda a sociedade civil tem de olhar com muita atenção porque a decisão sobre essa tese vai afetar diretamente muitas terras indígenas no país inteiro e todas as futuras demarcações.

Então não é à toa que o movimento indígena está batendo nesta tecla com muito afinco e a gente precisa ficar atento. Nós, não como cineastas, mas como sociedade civil mesmo e como pessoas que deveríamos estar engajadas numa luta pela terra, pela sobrevivência de nossa espécie no planeta.

É a segunda vez que vocês têm um filme selecionado para o Festival de Cannes, e novamente com os Krahô. Quais as expectativas?

É a segunda vez que a gente viaja para a França com os Krahô, a segunda vez que eles [os participantes do evento] vão escutar um filme apresentado num idioma indígena [a língua timbira, da família Jê] É a segunda vez que eles vão escutar da boca dos Krahô qual a situação do cerrado brasileiro, o bioma mais devastado do país e um dos mais importantes também porque é o berço das bacias hidrográficas mais importantes do Brasil. E [vão escutar] essas preocupações com a situação do planeta, com o aquecimento global, com a manutenção das florestas em pé, essas máximas que o movimento indígena vem gritando desde sempre e, na verdade, agora está ocupando também as mentes e os corações do mundo inteiro.

E é bom a gente mais uma vez constatar que os indígenas tinham razão. Porque eles vêm falando isso desde sempre. Finalmente agora estão encontrando eco em todas as camadas da sociedade. Isso pode ser visto como um sinal de que a gente está caminhando para um lugar onde seja possível a gente continuar existindo como comunidade neste planeta. Citando o grande [líder indígena, ambientalista e escritor] Ailton Krenak, os indígenas viveram o fim do mundo há muito tempo [quando os colonizadores europeus chegaram à América]. Então, se tem alguém que pode ensinar alguma coisa para a gente sobre como resistir ao fim dos tempos, são eles. É hora da gente começar a escutar, né?

Ode à alegria em tempos desumanizados

Início de primavera no Hemisfério Norte sempre dá aquela comichão gostosa — é largar os capotes pesados em casa e sair à rua leve, livre e renascida. Foi num desses sabadões primaveris de maio de 2012 que moradores de Sabadell, cidade catalã da província de Barcelona, conheceram uma alegria coletiva transbordante. Ao cair da tarde, um flash mob com mais de cem músicos da Sinfônica del Vallès e corais regionais brotou do nada na Plaça Sant Roc, em meio a flaneurs e à criançada, e começou a tocar a transcendental “Ode à alegria”, de Beethoven. O vídeo daquele momento mágico de comunicação humana, facilmente acessível no YouTube, pode servir de teste para o grau de humanidade-raiz que ainda nos habita. Quem permanecer insensível à cena, incapaz de se desligar do cotidiano que nos aplasta, é caso perdido. Melhor ir aninhar-se na inteligência artificial.

A “Ode à alegria” é a extraordinária história da arte do possível. Ela dá sentido ao caos e extrai beleza da dor universal. Já por isso é útil relembrá-la vez por outra em tempos turvos, mesquinhos, pequenos e desumanizados como os de hoje.
 


Beethoven, adolescente na Europa eletrizada pelo espírito revolucionário do final do século XVIII, fora profundamente marcado pelo poema “Ode à alegria”, do seu monumental conterrâneo alemão Friedrich Schiller. A mensagem de liberdade e justiça, felicidade e paz contida nos versos do poeta nunca mais se desgarraram da mente do músico. Nem quando a guilhotina substituiu as liberdades, e as guerras napoleônicas soterraram a paz, nem quando Schiller morreu achando que sua “Ode” era uma obra fracassada. Beethoven nunca fraquejou. Continuou a ver naqueles versos a necessidade do possível. Como se sabe, foi durante uma caminhada sem rumo de vários dias, aos 52 anos de idade e já praticamente surdo, que o idolatrado compositor de oito sinfonias, além de concertos e sonatas, encontrou a centelha para sua obra magna, a Nona Sinfonia. Ela culminaria com os versos silenciosos de Schiller cantados por um coral, num grand finale sem paralelo no universo musical. Até então, compositor algum havia sequer cogitado introduzir a voz humana numa sinfonia. Ninguém ousara tanto. Nem Bach, nem Mozart, nem Haydn.

Para a ensaísta cultural Maria Popova, Beethoven conseguiu resolver o imenso tormento de sua vida criativa integrando fúria e redenção, o silêncio da palavra escrita com o drama da música, e transformando a escuridão por ele vivenciada em algo incandescente, eterno. Na estreia em Viena, em 1824, houve um átimo de silêncio ao final do último acorde da aguardada Nona — quando algo é sublime demais, calamos. Passado o primeiro impacto, ouviu-se um júbilo incontido que dura até hoje, passados 200 anos. Popova lembra que Walt Whitman celebrou a obra como expressão mais profunda da natureza humana e que a escritora americana e ativista surda Helen Keller descobriu o que é música quando “ouviu” a “Ode” pressionando as mãos contra uma caixa de som. Manifestantes chilenas contra a ditadura de Augusto Pinochet também entoaram o “Himno a la Alegría” como forma de protesto, mostra o documentário “Seguindo as pegadas da Nona Sinfonia”, de Kerry Candaele. Até mesmo no histórico confronto de 1989 na Praça da Paz Celestial em Pequim, um dos estudantes aquartelados improvisou uma transmissão da Nona para abafar os comunicados oficiais que antecederam a chegada dos tanques às ruas. Quatro anos antes, a “Ode” de Beethoven fora adotada como hino da União Europeia.

Acolhida como chamamento para descartarmos falsos profetas que alimentam séculos de guerras e milênios de desigualdade, ela mantém a visão idealizada de Schiller de que a raça humana se reencontrará na fraternidade. Infelizmente, basta olhar à nossa volta para constatar que não é bem assim — as distâncias que separam a natureza do ser humano, e humanos entre si, continuam abissais. Não importa. A arte existe para nos transportar ao possível, seja cantarolando “Imagine”, de John Lennon, seja para escancarar alegria com o flash mob de Sabadell. Fica aqui o convite, já que hoje é domingo. Mesmo para quem já assistiu.

Jornal e jornalismo

Uma cidade que não tem um jornal é uma cidade que nunca terá nada. É uma cidade sem inteligência. Lesma urbana. Falta pé e cabeça. Principalmente cabeça. Não anda nem voa, se arrasta. Quando nasce em uma comunidade a consciência de si mesma, quando nessa comunidade estala a primeira faísca de espírito público, nasce o jornal. É o primeiro sinal de que existem homens, de que o pensamento comunitário acendeu a sua forja e o trabalho vai começar. Daí por diante as possibilidades são ilimitadas. Está aberta uma porta para as ideias, quer dizer, está aberta uma porta para a civilização.

O jornal, por modesto que seja, é uma bandeira de cidadania, um símbolo da aspiração coletiva, um gesto de engajamento nas fileiras da atualidade, um triunfo sobre o ramerrão, a rotina, a marcha a ré. O jornal, impondo a dignidade da palavra escrita, aplicando no interesse do povo a maior de todas as artes, que é a arte literária, dá um caráter ao meio em que circula, aponta uma comunhão nos ideais da vida moderna, inscreve a história desse povo nas conquistas de hoje e nas esperanças de amanhã. Só as populações esmagadas, iletradas ou incapazes não precisam de jornais. Os cemitérios também não.

Musa GUMUS
Por que é que até os presídios editam os seus jornais internos e os transatlânticos editam os seus jornais de bordo? É porque o jornal se tornou em toda parte um alimento indispensável para a combustão metabólica, para o ritmo e a velocidade de que o espírito humano tem de manter em cada dia, em cada hora, em cada minuto. Fome de informações, de notícias. Essas informações e essas notícias enriquecem nossa experiência, põem-nos em contato com outras almas e outros mundos e sob certo modo nos tornam livres, uma vez que o conhecimento é a mais profunda e absoluta forma de libertação. Não fosse o jornal por excelência "o pão da liberdade" ou a arma da liberdade em seu sentido mais objetivo, que é o sentido social, econômico e político. O português, colonizador e ladino, jamais permitiu que nos velhos brasis entrasse sequer uma tipografia, máquina de homens livres. Quando veio Dom João VI para estreia da corte no exílio, a coisa mais importante não foi a abertura dos portos, foi a abertura das portas para a imprensa. O monarca sabia que estava procurando sarna para se coçar. Mas teve de correr o risco. Deu letras ao povo e com isso, em pouco tempo, a Coroa lusitana estava demissionária de sua colônia. E, quando a própria Coroa brasileira andava mal em seus negócios com Minas Gerais ou com toda a nação, que fez, nos idos de 1830, um jovem chamado Teófilo Otoni? Levou do Rio de Janeiro para Serro Frio, durante um mês de viagem a lombo de burro, uma pequena oficina tipográfica e editou um jornal de que ele mesmo era o redator. Esse jornal se chamou "Sentinela do Serro". Com o seu pequeno jornal, esse republicano da monarquia abalou o trono de tal forma que o nome de Teófilo Otoni se tornou o de um dos mais glorificados campeões da democracia no país. "Nenhum dos jornais da época profligou com mais talento, com mais calor, com mais eloquência os fatais desmandos do Primeiro Reinado", diz Sisson, ao traçar na sua "Galeria dos brasileiros ilustres" o perfil de Teófilo Otoni.

Isto se fez naqueles velhos tempos. E se fez com uma folha perdida entre os sertões de Minas. O que não fazem os nossos jornais de hoje, quando os tais "desmandos do Primeiro Reinado" não passariam de café pequeno ante as falcatruas do mais desambicioso funcionário público de agora? Que instituições os jornais não criam e não derrubam? Assis Chateaubriand chegou a ser o indivíduo mais poderoso e o mais engrossado pelos nossos políticos. Criou tudo o que quis criar, incluindo deputados, senadores, ministros, presidentes da República. Foi tudo o que quis ser. Como a nossa Casa da Moeda, a sua organização só trabalhava com papel impresso. Mas esse papel impresso representava um valor quando entrava em circulação, influía no mercado e no câmbio do espírito nacional. Uma coluna de papel dos seus jornais pesava mais que todo o café produzido no Brasil, que todo o arsenal do Ministério da Guerra, todas as fábricas e usinas de São Paulo. As suas tremendas bombas, feitas de celulose e de tinta, eram como bombas de profundidade no oceano da opinião pública. Uma ideia lançada pelos engenhos da sua imprensa detonava com essa energia nuclear que tem a palavra escrita sob um máximo de carga psicológica.

Mas a imprensa, como o cinema, pode-se argumentar, deu em indústria. Virou negócio. Imprensa não é mais um berço de abnegações, uma ara de sacrifícios ao bem comum, uma ordem de jejuadores, de abstêmios das comidas terrenas. Assim como o cinema não é uma escola de belas-artes, onde tudo deveria ser grátis para manter impoluída a beleza de suas imagens. Num jornal, como numa igreja, entra de tudo. Entram os maus fiéis e até os maus sacerdotes. Isso não tem muita importância. Basta que a igreja ou o jornal existam. Eles sustentam por si mesmos, apesar de tudo, um a verdade sobrenatural e outro a verdade social para que ambos foram fundados. Ambos mantêm, apesar das heresias e das profanações, a constante presença de seu deus imortal e indestrutível, assim como a vigência virtual de suas leis sagradas. O jornal pode às vezes corromper-se, cair em mãos aventureiras ou incapazes e permitir uma obra condenável. Nem por isso o jornalismo, como um todo e uma função, estará arruinado, perderá a sua fulgurante grandeza, perecendo a abundância dos seus serviços na glória da espécie humana.

Temo que esteja sendo terrivelmente chato com estes excessos de louvação ao jornal. A culpa todavia não é minha, juro. Todo e qualquer protesto, queixa ou reclamação neste sentido os senhores devem endereçar ao doutor Eduardo Gaspar de Paiva Pereira, presidente da Associação de Imprensa, com sede nesta cidade de Poços de Caldas. Ele me convidou para que eu, hoje, domingo, na Rádio Difusora, dissesse o que penso. E eu penso isto, se me permitem ainda um resumo final. Poços de Caldas nunca deixou de ter jornais e jornalistas, desde os seus tempos de simples arraial. E se chega a ter hoje até mesmo uma associação de profissionais do jornalismo falado e impresso, é também nisto uma cidade fora do comum. Já não é uma forja de trabalho e sim uma verdadeira usina, uma Volta Redonda onde toda uma população funde os aços da inteligência na construção monumental dos seus dias futuros.
Jurandir Ferreira, "Da quieta substância dos dias"

O ornitorrinco chamado Brasil

O Brasil se presta a muitas comparações. Nos anos 1970, Edmar Bacha nos chamou de Belíndia: leis e riqueza de Bélgica, desigualdade de Índia. Delfim Netto sugeriu Ingana: impostos de Inglaterra, serviços públicos de Gana. Evoluímos para um Dubaiti: privilégios e extravagâncias da cidade de Dubai, vácuo de Estado nas favelas e periferias, à moda do Haiti. Parecemos um ornitorrinco, aquele mostruário de excentricidades, prova viva de que a fidelidade não foi seguida à risca na arca de Noé.

Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o Brasil é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias. Quase metade da população sobrevive sem acesso a saneamento básico, mas o governo está mais interessado em proteger as empresas estatais do que em garantir esgoto e água potável.

Como o mamífero que não tem mamilos, o Brasil é um país rico com cerca de um terço da população abaixo da linha da pobreza. A riqueza existe, mas os canais para sua distribuição não são lá muito ortodoxos.

Assim como o ornitorrinco tem bico de pato, pé de pato e cloaca de pato — mas está longe de ser um pato —, o Brasil tem iniciativa privada e propriedade privada, mas o protecionismo, a burocracia e o patrimonialismo estatal fazem o possível para que não seja uma economia de mercado.

Nas fotos, o ornitorrinco dá a impressão de ser enorme, mas não passa de dois palmos de comprimento. O Brasil é o quinto maior país em área, o sétimo em população e a nona economia — mas continua um tampinha diplomático, um nanico cultural.

Observe o Ornithorhynchus anatinus e a Terra brasilis. O primeiro é um bicho aparentemente fofinho, com esporões conectados a glândulas de veneno. A segunda, lar de um povo que adora memes e inventou o brigadeiro, o pão de queijo, o xaxado, o chorinho, a caipirinha, o chorinho da caipirinha — e deu transcendência ao diminutivo; que chama desconhecidos de “querido”, mistura pizza com abacaxi e dá nó em ChatGPT.

Mas tem a oitava maior taxa de violência no mundo: com 2,7% da população do planeta, responde por 20,4% dos homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Ao contrário do que dizia a personagem da Kate Lyra, o brasileiro (assim como o ornitorrinco) não é tão bonzinho.

Outra boa metáfora é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ela fala um inglês macarrônico e intraduzível, mas dispensa o intérprete. Ela quase quebrou um país e se acha em condições de presidir o banco criado para auxiliar o crescimento e o desenvolvimento de cinco grandes economias.

O Brasil tem educação precária — na formação profissional e na de crianças e adolescentes, está em último lugar no Pisa—, mas engata marcha a ré nos avanços propostos pelo Novo Ensino Médio.

O Brasil sofre derrotas diárias na guerra ao tráfico, às milícias, à dengue, à evasão fiscal, ao desmatamento e ao garimpo ilegais e quer dar pitaco na guerra na Ucrânia.

Como Dilma, bastava ao país ler o que está escrito — seja na Constituição, nos artigos científicos, nos livros de economia — para que tudo desse certo. Mas insiste no improviso e se embanana todo. Como exotismo pouco é bobagem, talvez nossa melhor metáfora seja um dilmorrinco. 

Eduardo Affonso