segunda-feira, 15 de abril de 2019

A mão na boca

Há dias vimos nos jornais uma foto em o que presidente Jair Bolsonaro, de mão na boca, cochicha alguma coisa para seu valete OnyxLorenzoni, o qual também faz uma parede bucal com os dedos. Já assistimos a esta cena muitas vezes. No passado, ela era cometida pelo então presidente Lula e seu também valete Antonio Palocci. Hoje, não se passa uma semana sem que a vejamos protagonizada pelos treinadores de futebol e seus auxiliares à beira do gramado ou entre jogadores de vôlei no meio da quadra.


Historicamente, o simples ato de cochichar em público sempre foi falta de educação —que segredos alguém teria que não pudesse partilhar conosco? E falar com a mão na boca só podia significar que a pessoa era desdentada ou tinha mau hálito. Hoje, a mão na boca está liberada. É usada para que se possa cochichar à vontade sem que os enxeridos façam a leitura labial do que se está dizendo.

É possível a qualquer amador traduzir em voz alta um palavrão ou uma interjeição grosseira que se esteja vendo sem som —às vezes, o próprio gestual do dedo em riste ou das mãos à cabeça já diz tudo. Mas como entender frases inteiras, complexas, principalmente quando são emitidas por pessoas com dicção horrorosa, como Bolsonaro e Lula, que só deviam falar com legendas?

Não me consta que, entre os seus incontáveis profissionais qualificados, o Brasil disponha de legiões de técnicos em leitura labial. Eu próprio já fui apresentado a ventríloquos, intérpretes em 12 línguas e até pessoas capazes de assobiar óperas inteiras, mas nunca a um leitor labial. E quantos estarão assistindo àquela mão na boca naquele exato momento? E, se entenderem tudo, o que poderão fazer?

Ainda mais porque, ao ver autoridades cochichando com a mão na boca, não precisamos de leitura labial para saber que estão tramando algo contra nós —e não pelas nossas costas, mas pela nossa frente.
Ruy Castro

Ode à paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

Natália Correia

A roupa nova do patrimonialismo

Em 2018, Ibaneis Rocha surfou a onda da nova política no Distrito Federal. Novato nas urnas, ele prometeu abrir mão de mordomias e doar o salário de governador para instituições de caridade. Largou em último lugar e chegou em primeiro, com quase 70% dos votos.

Na terça-feira, o emedebista tomou uma medida contrária ao discurso de campanha. Por decreto, criou uma “carteira de identidade funcional”, válida em todo o país.

O documento será destinado a um público exclusivo: o governador, o vice, os secretários e os presidentes de autarquias distritais. Eles também ganharam o direito de emitir carteiras para cônjuges e parentes em linha reta até 2º grau. A regra uniu netos, filhos, pais e avós de políticos numa grande comunidade da carteirada.


Ao ser criticado pela imprensa local, Ibaneis reagiu com irritação. “Querem que eu ande com meu diploma de governador eleito debaixo do braço? É muita faltado quefazer ”, reclamou. Ele alegou que seus descendentes também teriam se tornado “figuras públicas”. “Meus filhos têm direito à mesma segurança e deferência que eu”, disse.

Na quinta-feira, o Ministério Público foi à Justiça para derrubar o decreto. Contrariado, o governador teve que recuar. Manteve a carteira para os políticos, mas retirou a regalia dos parentes.

Na disputa por uma cadeira no Senado, o empresário Eduardo Girão se apresentou como um defensor da família. Ao assumir o mandato, resolveu começar pela própria. Ele foi o estreante que mais requisitou passaportes diplomáticos.

Além de pedir um para uso pessoal, incluiu na lista amulhere duas filhas. O passaporte vermelho facilita a concessão de vistos e dá direito a furar fila nos aeroportos. Um auxílio luxuoso para quem mantém casa na Flórida e pede votos no Ceará. Depois que O GLOBO revelou o caso, Girão desistiu do pedido.

Jair Bolsonaro passou 28 anos no Congresso, mas se apresentou como outsider para chegar à Presidência. Na segunda-feira, ele ironizou os conselhos para reduzira influência do filho Carlos nas decisões do governo.

“Ah, o pitbull tá te atrapalhando. Atrapalhando em quê? Ele não me atrapalhou em nada. Eu acho até que ele deveria ter um cargo de ministro. Foi ele que me botou aqui”, afirmou.

Autoproclamado filósofo, Olavo de Carvalho foi promovido de piada a eminência parda do governo. Em entrevista, ele deu uma sugestão mais ousada a Bolsonaro. Disse que ele deveria dar um ministério para cada filho, incluindo na mamata o Zero Ume o Zero Três. “Olha que ele segue o seu conselho, hein?”, provocou o jornalista Pedro Bial. “Tomara que siga!”, respondeu o guru do bolsonarismo.

A confusão entre público e privado é um traço antigo das autoridades brasileiras. “É possível acompanhar, ao longo da nossa história, o predomínio constante das vontades particulares”, escreveu Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”. Em 1936, ele condenava a visão do Estado como uma extensão dos círculos familiares. Depois de oito décadas, o velho patrimonialismo persiste. Agora fantasiado de nova política.

Eclipse no Brasil


Conceitos de política

O ambiente político não anda conturbado tão somente por razões acidentais ou de inexperiência dos atores políticos, mas tem uma causa mais profunda, consistente no modo de compreensão da política. O atual governo age segundo um conceito de política baseado na oposição amigo/inimigo, em que o outro é visto como alguém que deve ser desqualificado e aniquilado. Outro conceito de política residiria na consideração do outro enquanto adversário, suscetível de ser convencido, e não suprimido. Denominemos o primeiro conceito de política de totalitário e o segundo, de democrático.


Totalitário porque foi elaborado por um teórico do nazismo, Carl Schmitt. Segundo essa acepção, a esfera da política seria uma espécie de arena de luta até a morte entre amigos e inimigos. Os amigos são os que compartilham a mesma concepção, enquanto os inimigos são os que dela divergem. A crítica, nesse sentido, não é aceita, pois significaria uma espécie de rompimento da concepção vigente ou que está sendo imposta. Instituições que exigem a composição e a negociação, como Parlamentos, são, portanto, tidas por impróprias, decadentes ou corrompidas.

Transplanta-se, assim, para esfera da política a lógica militar da guerra. Nesta, exércitos se enfrentam buscando a derrota do outro, impondo-se o poder da força. Tal acepção vale também em casos de guerra civil, quando, na ausência de composição interna, as forças contendoras entram em conflito aberto, recorrendo às armas. A política fica a reboque de sua acepção militar.


O conceito democrático de política, por sua vez, foge do conceito de guerra ao inimigo, pautando-se pelo reconhecimento do outro como detentor de igualdade política. Não está em seu escopo o aniquilamento do outro, uma vez que sua forma de atuação reside na instituição parlamentar, na separação de Poderes e na liberdade de opinião e expressão. Eis por que a democracia representativa preza as instituições que são espaços de negociação, de convencimento e, mesmo, de judicialização das divergências.

A política bolsonarista, em seu período eleitoral, regeu-se por essa acepção excludente da política, usando e abusando da retórica do inimigo a ser desqualificado, cuja forma mais significativa foi o emprego da oposição “nova/velha política”. A “nova” seria a dos virtuosos, dos não corruptos, dos bons, que se oporiam a todos e a tudo que está aí. Os políticos e os partidos foram, então, tidos por algo a ser desprezado e posto de lado. Nesse sentido, as redes sociais foram um instrumento particularmente adequado, pois dados a sua economia de palavras e o seu modo de expressão, prestam-se, particularmente, ao enfrentamento e ao ataque. Elas funcionariam segundo a oposição amigo/inimigo.

Observe-se que a política petista empregou idêntico conceito de política. Lula utilizava a mesma oposição amigo/inimigo sob a forma das oposições excludentes, entre “conservadores e progressistas”, “direita e esquerda”, “nós e eles”. Atente-se para o conceito de política que ganha essas diferentes formas narrativas, que foram o sustentáculo dos governos petistas. Lula tinha incomensurável desprezo pelo Congresso, pelos partidos e pelos parlamentares. Ora eram picaretas, ora companheiros de negociatas.

No governo, pautado por instituições democráticas, o presidente Bolsonaro seguiu predominantemente a utilizar o mesmo conceito de política que lhe tinha sido tão benéfico na campanha eleitoral. Seu grupo próximo, constituído de civis, continuou empregando as redes sociais da mesma maneira, terminando por produzir conflitos incessantes com políticos e partidos. Evidentemente, estes não se reconhecem nessa forma de fazer política, uma vez que são considerados representantes da “velha política”, como se fossem, por isto mesmo, desqualificados e corruptos. O resultado é palpável: o governo não consegue negociar e, portanto, não avança em suas pautas reformistas na esfera legislativa.

Ora, a negociação faz parte da atividade parlamentar e executiva, é uma forma específica de fazer política, no Brasil e alhures. Não há nada de ilícito em que um parlamentar negocie recursos para a sua base eleitoral, sob a forma de creches, postos de saúde e escolas. O problema está no desvio desses recursos para o bolso do parlamentar, questão que pode ser equacionada com uma fiscalização eficiente.

Acontece, todavia, que a narrativa bolsonarista identifica a negociação com algo a ser descartado. Tal política enquadra-se, sobretudo, em sua pauta conservadora, baseada em fundamentos religiosos. Ela se torna propícia para a oposição entre amigos e inimigos, sob a forma dogmática dos bons e dos maus, dos virtuosos e dos pecadores.

Do mesmo modo, o teórico dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, conforme a sua teoria mundial conspiratória, está sempre procurando inimigos para serem desqualificados, na medida em que essa concepção vive da reiteração de tal oposição. O desprezo pela pauta liberal no campo moral e econômico é sua consequência natural. Volta-se para o velho nacionalismo, contra a ideia liberal de globalização, como se a pauta conservadora devesse ter o primado sobre a reformista. Daí surgem as posições antiestablishment, como se a narrativa governamental devesse ser a de uma mobilização constante da sociedade, em que os amigos e os inimigos, os bons e os maus estariam perpetuamente se enfrentando.

Os militares no governo Bolsonaro estão sendo um exemplo de moderação e ponderação. São abertos à negociação e à composição, mostram-se firmes partidários das instituições democráticas. Note-se que, por formação, estariam mais propensos a adotar a política como forma de oposição entre amigos e inimigos, uma vez que essa é a forma da guerra para a qual foram e são treinados. Ou seja, é um grupo de civis que segue a lógica da guerra, enquanto os militares seguem a lógica civil da democracia.

País diz amém

O brasileiro suprimiu dos seus hábitos o ponto de exclamação
Nelson Rodrigues

O cidadão-dejeto

Dias atrás, ao desembarcar em São Paulo com seu novo livro, “O bebedor de horizontes”, e participar do relançamento de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, o moçambicano Mia Couto ainda estava acachapado. O ciclone Idai havia deixado um rastro de mais de mil mortos em terras africanas, e destruíra Beira, a cidade natal e chão afetivo do escritor. Antes de vir ao Brasil, ele fora ver o que dela restou. Resumiu assim o seu estado d’alma: “Confirmei, lá, que eu estava órfão da minha infância”.

Boa parte da população do Rio de Janeiro também está órfã. Não apenas de uma infância que nunca teve, mas também do presente e, por antecipação, de qualquer perspectiva de futuro decente. Não há espinha dorsal de cidadania que aguente a sucessão de calamidades que tem se empilhado no cotidiano desse cidadão, sobretudo quando a origem de tanto desperdício de vidas não é um ciclone. São horrores feitos pela mão humana, portanto mais cruéis e evitáveis.

Em recente programa no canal GNT, referindo-se à fuzilaria de dez militares do Exército contra o carro de uma família em passeio domingueiro, o MC Emicida, autor de “Levanta e anda”, diagnosticou: “Se o Brasil tivesse respeito por seus cidadãos, era para este país estar pegando fogo hoje...” O seu tom de voz não foi incendiário, era de lamento. O mesmo lamento clínico do escritor americano James Baldwin, que definiu assim o que era ser negro e relativamente consciente nos Estados Unidos nos idos de 1960: “É estar revoltado quase o tempo todo”.

No atropelo das tragédias recentes, fica difícil transitar entre uma raiva improdutiva e uma inação desmesurada. A linguagem universal e prevalente passa a ser a fácil indignação on-line, aquela do discurso cívico que grita e é consumido em segundos até se apagar. Quando crimes se empilham, já ensinou B. Brecht, eles se tornam invisíveis.

Pouco mais de dois meses atrás, com o país em choque e as quase 300 vítimas fatais de Brumadinho ainda envoltas em lama tóxica, apontou-se aqui para a indignação como grande força de comunicação social, mais contagiosa do que qualquer outra forma de emoção humana. Com uma diferença: naqueles dias em que as vísceras do descaso da Vale e do poder público ficaram expostas à execração nacional, ainda foi possível acreditar na tímida possibilidade de ocorrer alguma mudança na legislação, responsabilização, fiscalização e prevenção de crimes no setor de mineração.

Desta vez, junto com os dois prédios que se esfarelaram na comunidade da Muzema, no Rio de Janeiro, exauriu-se o tempo da esperança. Além das vidas ali soterradas, ruiu o que gerações de cidadãos tratados como dejetos supérfluos procuraram construir: uma vida melhor. Confinados à antessala da sociedade moderna, os moradores desse Rio rapinado há décadas formam uma massa de refugiados em sua própria cidade, perdedores de uma engrenagem social perversa.

Como já é de rotina, coube aos bombeiros e socorristas anônimos reconciliarnos com o que acreditamos ter de melhor no nosso DNA. Foi emocionante a arriscada operação de resgate, por helicóptero, de um ferido da Muzema do alto de um dos prédios periclitantes. Gerou merecidos aplausos. O improvisado transporte ladeira abaixo de um vizinho ferido colocado às pressas sobre uma porta transformada em maca, ainda antes da chegada de qualquer ajuda pública, não teve plateia. Foi solidariedade na veia.

Como também já se tornou rotina, o despreparo das autoridades diante de tragédias que lhes competem continua abissal. Foi no mínimo constrangedora a entrevista concedida pelo secretário municipal da Infraestrutura e Habitação, Sebastião Bruno, despachado pelo prefeito Marcelo Crivella para o local do desabamento. Com a cidade ainda em estado de crise e calamidade após a devastação causada pela chuva do início da semana, o Rio que se sente órfão não tem a quem recorrer. A milícia lhe oferece o pacote segurança/medo, e uma moradia irregular que vai ruir. Por onde andará o capitão foragido Adriano Magalhães da Nóbrega, vulgo Gordinho, uma das lideranças do grupo miliciano Escritório do Crime? Por onde andará Fabrício Queiroz, o ex-assessor encrencado do hoje senador Flávio Bolsonaro, que há 45 dias também se desmaterializou, junto com a família igualmente encrencada.

“Ao trabalhador que corre atrás do pão/ É humilhação demais que não cabe nesse refrão”, canta o rapper Criolo em “Convoque seu Buda”.

A perda das ilusões

Existem décadas intermináveis, em que a história parece se arrastar. Eleições são vencidas e perdidas, leis são adotadas e revogadas, estrelas nascem e pessoas ilustres vão para o túmulo. Mas a despeito do caráter prosaico da passagem do tempo, as estrelas- -guia da cultura, da sociedade e da política seguem as mesmas.

E existem também anos breves em que tudo muda abruptamente. Novas figuras políticas tomam o palco de assalto. Eleitores clamam por políticas públicas que até o dia anterior eram impensáveis. Tensões sociais que por muito tempo fervilharam sob a superfície vêm à tona numa explosão terrível. O sistema de governo que antes parecia inabalável dá sinais de que vai desmoronar.

É o tipo de momento em que vivemos hoje. Até há pouco tempo, a democracia liberal reinava absoluta. A despeito de todas as suas deficiências, a maioria dos cidadãos parecia profundamente comprometida com sua forma de governo. A economia estava em crescimento. Os partidos radicais eram insignificantes. Os cientistas políticos achavam que em lugares como a França ou os Estados Unidos a democracia chegara para ficar fazia um bom tempo e que em anos vindouros pouca coisa mudaria. Politicamente falando, assim parecia, o futuro não seria  muito diferente do passado.

Então o futuro chegou — e se revelou, na verdade, bem diferente. 

A desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália. Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si.

A eleição de Donald Trump para a Casa Branca foi a manifestação mais aparente da crise da democracia. Nunca é demais frisar o que significou a ascensão de Trump. Pela primeira vez em sua história, a democracia mais antiga e poderosa do mundo elegeu um presidente que despreza abertamente normas constitucionais básicas — alguém que deixou seus apoiadores “em suspense”,
ameaçando não aceitar o resultado da eleição; que defendeu a prisão de sua principal opositora política; e que sem exceção preferiu os adversários autoritários do país a seus aliados democráticos.

Mesmo se no fim das contas Trump for cerceado pelos mecanismos institucionais de controle, a disposição do povo americano em eleger um aspirante a déspota para o cargo mais alto do país é um péssimo sinal.

E a eleição de Trump dificilmente pode ser considerada um incidente isolado. Na Rússia e na Turquia, déspotas eleitos conseguiram transformar democracias incipientes em ditaduras eleitorais. Na Polônia e na Hungria, líderes populistas rezam essa mesma cartilha para destruir a liberdade de imprensa, solapar as instituições independentes e calar a oposição. Mais países em breve seguirão o mesmo caminho. Na Áustria, um candidato de extrema direita quase ganhou a presidência.

Na França, o panorama político em rápida transformação está oferecendo novas oportunidades tanto para a extrema esquerda como para a extrema direita. Na Espanha e na Grécia, sistemas partidários estabelecidos estão se desintegrando a uma velocidade alarmante. Mesmo nas democracias supostamente estáveis e tolerantes — Suécia, Alemanha, Holanda —, os extremistas têm celebrado triunfos sem precedentes.

Não resta mais a menor dúvida de que estamos em um momento populista. A questão agora é se esse momento populista vai se tornar uma era populista — e pôr em xeque a própria sobrevivência da democracia liberal.

Yascha Mounk, "O povo contra a democracia"

Pensamento do Dia


A tentação populista

Na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro terá uma reunião com sua equipe de governo e a cúpula da Petrobras para discutir a política de preços dos combustíveis, depois de pôr em xeque a orientação do ministro da Economia, Paulo Guedes, em relação à estatal: a autonomia para atuar de acordo com as necessidades do mercado, sobretudo a flutuação do dólar. Na sexta-feira, Bolsonaro mandou a estatal cancelar um aumento no preço do diesel após ser pressionado por líderes dos caminhoneiros, à revelia do ministro, porque acha que o preço dos combustíveis deve estar alinhado à inflação e não ao mercado mundial de petróleo. A decisão provocou queda abrupta das ações da Petrobras, que perdeu R$ 32 bilhões do seu valor patrimonial. Nos bastidores do governo, há uma queda de braços entre Guedes, que nomeou o atual presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, e os ministros da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, e de Minas e Energia, Bento Costa Lima, ao qual a estatal está formalmente vinculada.


A decisão de Bolsonaro não é a primeira em relação a segmentos estratégicos de sua campanha eleitoral; também cedeu aos ruralistas, ao anunciar que anistiará dívidas no valor de R$ 17 bilhões. O presidente da República minimizou a queda de 15 pontos percentuais de sua aprovação nas pesquisas de opinião, porém, desde então, dá sinais de preocupação e adotou medidas que podem contribuir para melhorar a própria imagem, como o fim do horário de verão e o décimo terceiro do programa Bolsa Família. Nas redes sociais, resolveu dar mais ênfase à divulgação de suas ações administrativas. A estratégia de desprezar os meios de comunicação tradicionais e se comunicar por meio das redes sociais já bateu no teto.

Nos primeiros 100 dias de mandato, o comportamento de Bolsonaro foi uma espécie de “ensaio e erro”, se considerarmos a avaliação feita pelo ministro da Casa Civil ao apresentar o balanço de realizações do governo. Bolsonaro está aprendendo a ser presidente da República, sem nunca antes ter exercido um cargo executivo. A aprendizagem por ensaio e erro consiste em eliminar gradualmente os ensaios e tentativas que levam ao erro e manter comportamentos que conquistaram o efeito desejado, segundo a lei do efeito (um ato é alterado pelas suas consequências) e a lei do exercício (estímulos e respostas fortalecidos pela repetição). Erro, porém, anda de braço dado com o fracasso. Seria melhor que Bolsonaro aprendesse com os seus antecessores, como Collor de Mello e Dilma Rousseff, por exemplo, em relação ao Congresso e à Petrobras, respectivamente.

Ainda não é possível definir claramente o caráter do governo Bolsonaro, embora o senso comum permita afirmar que seja conservador nos costumes e liberal, na economia. Um governo eleito democraticamente, mas assumidamente de direita, pode ter características bonapartistas ou populistas. Por enquanto, o viés predominante é bonapartista, porque seu eixo está na forte presença militar, policial e técnico-burocrática. Bolsonaro se coloca acima dos partidos e dos demais poderes, o que é uma contradição com o regime democrático no qual foi eleito. Nesse aspecto, a Lava-Jato desempenha um papel crucial, ao manter sob pressão a elite política e a cúpula do Judiciário. Não será surpresa o surgimento de propostas no sentido de adaptar a legislação vigente às conveniências do bonapartismo, como a extinção dos conselhos de políticas públicas, por exemplo.

A perda de popularidade do governo, porém, tende a provocar uma deriva populista por parte de Bolsonaro, de acordo com a receita já conhecida: busca de proximidade com as massas sem passar por nenhuma instituição política; favorecimento de segmentos sociais que lhe dão apoio; e fragilização dos partidos. Nesse aspecto, a queda de braços de Bolsonaro com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes do chamado Centrão, PP, PR, DEM, PRB, Solidariedade e Podemos, tende a se tornar uma batalha sangrenta, por causa da Lava-Jato.

Bolsonaro praticamente já abriu mão da meta de R$ 1 trilhão de economia em 10 anos, grande objetivo da equipe econômica. Estará satisfeito se o Congresso aprovar o aumento da idade mínima e do tempo das contribuições, sem que seja necessário entrar em confronto com a sua própria base eleitoral, que compõe o eixo de seu governo. A reforma possível tem maioria no Congresso, mas esse apoio não virá por gravidade. É plausível que os líderes do Centrão queiram obstruir a reforma por causa da não participação no governo. Entretanto, a maior resistência às reformas vem da própria base de Bolsonaro, que é muito corporativista. O problema é que um governo populista não tem chance de fazer o país voltar a crescer de forma sustentável.

'L' também é de laranja

Com a decisão do nosso Presidente, o L de liberal já não é tão liberal assim. O PSL está cada vez mais parecido com o PT. Eu digo e repito, Partidos são verdadeiras prisões. Uma lástima!
Janaina Paschoal (PSL- SP)

Chefetes e chefículos incríveis

Eles são incríveis. Prefeito, governador, presidente da República. São incríveis. O Rio desaba numa enxurrada sem limites e um dos gestores locais acha que foi mais um episódio corriqueiro, o outro se omite de qualquer responsabilidade e diz que chuva é com o município. O chefe federal não manda sequer um tweet de solidariedade. Dois prédios desmoronam numa favela da cidade e outra vez nada se ouve do chefão. O chefete local argumenta que tentou sem sucesso impedir as obras, enquanto o chefículo estadual acusa o municipal de leniência.


Os três são culpados. Por vezes sua responsabilidade se dá porque a autoridade fez mal sua obrigação. Foi o caso das chuvas. Prefeitura e governo estadual desprezaram avisos, não gastaram e não trabalharam como manda a lei. Outras ocorrem por causa da sua omissão. Este é o problema dos prédios que desabaram na favela da Muzema. Todo mundo na vizinhança sabia que aqueles prédios haviam sido construídos mal e porcamente pela milícia e por seus aliados. O GLOBO revelou que apartamentos de inúmeros prédios irregulares são oferecidos para venda em sites da internet.

Todo mundo sabia, menos as autoridades. Onde andam nossas autoridades? Morreram oito pessoas e 17 estão desaparecidas. Poderiam ter morrido 30, 40, 50 ou mais. Os apartamentos ainda estavam sendo ocupados, já que as obras não tinham acabado. E quem constrói essas porcarias? As construtoras de fundo de quintal contratadas pelas milícias e que certamente usam material de baixa qualidade, com mais areia do que cimento e ferro, com fundações inadequadas, sem arquiteto e sem engenheiro. E, claro, sem fiscalização.

Na questão da ocupação urbana da cidade, o ausente é o prefeito Marcelo Crivella. O mesmo prefeito que acusou a TV Globo de fazer campanha contra ele porque a emissora cumpriu com o seu dever, mandando repórteres cobrir a primeira tragédia, a das chuvas. E expulsou uma repórter da coletiva. Crivella, além de ridículo e equivocado, nada fez durante seus dois anos e pouco de mandato contra a ocupação irregular de matas e morros da cidade.

Há anos, há duas décadas pelo menos, sabe seque as milícias disputam o controle das favelas do Rio como tráfico de drogas. E a luta é a ferro e afogo. Os moradores das áreas dominadas pelas milícias vivem em estado de guerra e sob eterna vigilância. Nada se faz, nada se constrói, ninguém trabalha se não pagar pedágio para a milícia. Até o morador que resolver montar um carrinho de pipoca terá de pagar uma diária para o miliciano. No caso da pipoca, são R$ 15 por dia. Sabe-se que a milícia faz gato de luz, água, telefone, internet; que vende gás. Todos esses serviços e produtos são mais caros na milícia do que no mercado. Eles são os donos das comunidades. Subjugam as comunidades.

E o que faz o poder público? Nada. O responsável por impedir que áreas inteiras da cidade sejam dominadas por homens armados de fuzis e metralhadoras é o governador. O mesmo governador que acusou a prefeitura de leniência. “Tem que ir lá e tirar de forma impositiva. Tem que ser rigoroso”, disse Wilson Witzel. E o que faz o governo do estado, que tem o poder policial, contra as milícias? Nada. A polícia além de fornecer quadros, por vezes parece aliada às milícias. O problema do governador e do prefeito, ou talvez a sua desculpa, é que o exemplo de tolerância com o crime organizado vem de cima.

O presidente Jair Bolsonaro já se aliou a milícias. Ele chegou a defender um miliciano assassino em discurso na Câmara. Seu filho, senador Flávio Bolsonaro, tinha amigos e familiares de milicianos contratados em seu gabinete na Assembleia Legislativa, enquanto ocupava uma cadeira de deputado estadual. O famoso Fabrício Queiroz se refugiou no berço da maior milícia do Rio, em Rio das Pedras, quando seu nome apareceu no escândalo dos desvios de salários no gabinete do chefe. Flávio deu medalhas para milicianos.

São esses homens que devem combater a milícia em suas diversas modalidades de crime pelos próximos quatro anos, no caso do Estado e da União. Ou por mais um ano e oito meses (ufa), no caso do município do Rio. Você acredita que depois do desmoronamento dos dois prédios da Muzema, com o clamor popular que se seguiu, o problema será resolvido por esses senhores incríveis?

Cem dias sob o domínio da perversão

Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram do Brasil o principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem ser mais destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica, destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.

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A violência de agentes das forças de segurança do Estado nos primeiros 100 dias do ano, como a execução de 11 suspeitos em Guararema (SP), pela polícia militar, e os 80 tiros disparados contra o carro de uma família por militares no Rio de Janeiro, pode apontar a ampliação do que já era evidente no Brasil: a licença para matar. Mais frágeis entre os frágeis, os ataques a moradores de rua podem demonstrar uma sociedade adoecida pelo ódio: em apenas três meses e 10 dias, pelo menos oito mendigos foram queimados vivos no Brasil. Bolsonaro não puxou o gatilho nem ateou fogo, mas é legítimo afirmar que um Governo que estimula a guerra entre brasileiros, elogia policiais que matam suspeitos e promove o armamento da população tem responsabilidade sobre a violência.

1) A Perversão

Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.

Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.

Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim, a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém, não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de “antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.

Quem é o principal opositor da reforma da Previdência do ultraliberal Paulo Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT ou associações de aposentados. O principal crítico da reforma do “superministro” é aquele que nomeou o superministro exatamente para fazer a reforma da Previdência. O principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.

Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior boicotador da reforma do seu próprio Governo.

Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?

É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.

Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de desequilibrados.

Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?

Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os defendia.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.

A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.

A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.

Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda pior. Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse nomeado – e não ele mesmo. Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”, mas sem capacidade de “gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que nomeou alguém sem capacidade de gestão e expertise para um ministério estratégico para o país? E como classificar um gestor que faz isso? Mais uma vez, Bolsonaro age como se estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse governo e opositor do governo simultaneamente.

Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redes sociais, também dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A participação democrática nunca esteve tão nula.

A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da “nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois, seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.

O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente, parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.

Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele. Onde então está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um outro projeto de Brasil? Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde elas estão sendo discutidas com ressonância, já que sem ressonância não adianta?

A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da sociedade. Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o fenômeno Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a liturgia do cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não quer. Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo a guerra ativa.

Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.

A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.