quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Brasil da limpeza

Soberto isolamento

O presidente Jair Bolsonaro cancelou mesmo sua ida ao Fórum Econômico Mundial, em Davos (21 a 24 deste mês), por razões econômicas, de segurança e políticas, segundo o porta-voz da Presidência, general Rêgo Barros. Realizado há 50 anos, o fórum reúne chefes de Estado, grandes executivos e personalidades, num encontro que procura sempre perscrutar o futuro. Neste ano, as pautas de discussão são “Economias mais justas”, “Como salvar o planeta?”, “Futuros saudáveis” e “Tecnologias para o bem”. Esses temas têm algo a ver com a realidade brasileira? Claro que têm, porém, “o somatório desses aspectos, quando levados à apreciação do presidente, lhe permitiu avaliar que não seria o caso, neste momento, de participar desse fórum”, explicou o general, naquele tom marcial que sempre adota em momentos de certo constrangimento.

A experiência de Bolsonaro na reunião de Davos do ano passado não foi das melhores. Recém-eleito, frustrou expectativas generalizadas, seja porque fez uma intervenção lacônica demais, seja porque sua participação no evento, em termos de projeção do novo governo, foi ofuscada pelo desembaraço do ministro da Economia, Paulo Guedes, que centralizou as atenções com relação às reformas econômicas que os investidores de um modo geral esperavam do Brasil. De lá para cá, a sucessão de declarações polêmicas, desentendimentos com outros chefes de Estado e atitudes do governo, de certa forma, aconselham Bolsonaro a ficar fora do encontro.


Embora possa ser até conveniente para Bolsonaro, para evitar mais problemas, o isolamento não é bom para o Brasil e, de certa forma, expressa o resultado da nova política externa sob comando do chanceler Ernesto Araújo. O porta-voz não entrou em detalhes, mas uma análise da posição do Brasil em relação a cada tema proposto para os debates em Davos revela claramente as nossas contradições quanto ao rumo que as principais lideranças mundiais desejam, com exceção de Donald Trump e seus aliados de primeira hora.

Por exemplo, “Economias mais justas”. Todos os diagnósticos de organismos internacionais e análises econômicas apontam que a globalização, com base em políticas neoliberais, aumentou a concentração de renda e as desigualdades. Muitos dos conflitos em curso no mundo ocorrem por essa razão, até em economias que não amargam as consequências do populismo irresponsável, como as da França e do Chile. Mesmo um empresário ultra bem-sucedido, como Steve Jobs, estava preocupado com isso. O smartphone protagonizou uma revolução na economia mundial, como uma matriz global de trocas voluntárias e cooperativas, que gera prosperidade para todos os seres humanos, porém, não será com as pessoas dirigindo o próprio carro ou pedalando a bicicleta que os problemas da concentração de renda e da desigualdade serão resolvidos. Ocorre que a política econômica do governo Bolsonaro não está nem aí para as questões sociais. Segue o modelo neoliberal que está sendo revisto.

“Como salvar o planeta?” Esse também não é um tema muito confortável para Bolsonaro, na contramão do Acordo de Paris, embora o Brasil não tenha dele se retirado, como fizeram os Estados Unidos. Não chamem o presidente da França, Emmanuel Macron, e a jovem ativista ambiental sueca Greta Thunberg para o mesmo jantar com Bolsonaro. Ambos andaram se digladiando pelas redes sociais, num embate desfavorável para Bolsonaro em termos de opinião pública mundial. Mais uma razão para não ir a Davos.

“Futuros saudáveis”, eis um assunto no qual o Brasil pode se destacar conceitualmente, porque o Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988, é um paradigma mundial em termos de assistência universal à saúde, com resultados impressionantes, em pouco mais de 30 anos. Entretanto, o Brasil vive uma crise de financiamento no setor, porque não conseguiu equacionar satisfatoriamente a relação entre o sistema público, o setor privado e a área dos seguros de saúde. A política de Guedes é francamente a favor do fortalecimento da presença do sistema financeiro no setor de saúde. Também não são satisfatórios os indicadores de saneamento, mas o governo tem a seu favor o novo marco regulatório para privatização de todo o sistema.

“Tecnologia do bem” é outro tema a ser bordado no encontro. Perdão pela ironia, no momento, o assunto é muito mais um problema para os demais líderes mundiais do que para Bolsonaro, principalmente por causa das tensões entre os Estados Unidos e o Irã. Smartphones em zonas de guerra são um alvo fácil para os drones norte-americanos teleguiados por satélites, por pilotos militares confortavelmente instalados em contêineres refrigerados na Califórnia. Para Trump, bastou apertar o botão do joystick para eliminar o general iraniano Qasem Soleimani.

'Margem de erro'

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O pobre continua pobrezinho, mas percebe movimentações que poderão ter desenvolvimentos propícios a uma descida na hierarquia de indigência para a qual foi atirado. Reza aos santinhos todos para que as suas impressões não o enganem

Janeiro

O menino parou, e, olhando para os pintinhos que piavam desesperados tentando acompanhar a galinha, perguntou:

— Pai, por que umas pessoas nascem feias e outras bonitas?

O pai, sentado no banco de cimento, fingiu não ter ouvido.

O filho, de pé, uma pequena vara na mão, agachou-se debaixo do pau-brasil, onde três gatos se lambiam, aproveitando o sol da tarde.

Desde que se separara da mulher, há seis anos, via o filho apenas esporadicamente. Daiana reclamava, com razão, mas até um mês atrás trabalhava de porteiro num edifício no Tatuapé, à noite, e durante o dia biscateava... Agora, fora mandado embora — “Sinto muito, Gileno, mas é a crise”, o síndico falou, explicando que tinham contratado uma empresa terceirizada, que barateava os custos, mas que se quisesse poderia recomendá-lo, etc. — e não conseguira nenhuma colocação. Fim de ano, começo de ano, uma dor de cabeça arrumar emprego...

— Pai, por que umas pessoas são gordas e outras magras?

O pai olhou para o menino, mas ele se mantinha de costas, como se falasse para outra pessoa. Resolveu ignorá-lo.

Desempregado, Daiana incumbiu-o de cuidar do menino. Antigamente, quando chegava dezembro, a mãe despachava-o para ficar com a avó, em Sergipe, de onde voltava esturricado de sol. Mas ela morrera, e em Estância só restaram duas irmãs, com quem não se dava. O menino passara as últimas férias preso dentro de casa, vendo televisão, enquanto ela trabalhava de cozinheira num restaurante em Pinheiros, uma tristeza, coitadinho...

— Pai, por que umas pessoas são ricas e outras pobres?

O menino levantara e, com a vara, brincava de conduzir um rebanho de patos para o meio da alameda.

Como é que esse peste ajeita tanta perguntação, o pai indagou-se, entre orgulhoso e irritado.

Sem nada para fazer, decidiu tentar proporcionar férias inesquecíveis para o filho. Não tinha dinheiro para viajar, mas resolveu que todo dia iria levá-lo a um lugar diferente em São Paulo mesmo. Conhece o Zoológico? Não? Pois então vamos ver os bichos! Conhece a avenida Paulista? Não? Pois então vamos ver aquele povo correndo de lá para cá, feito formiga. Conhece o Centro?, o Pátio do Colégio?, a Catedral? Agora se encontravam no Parque da Água Branca, longe, muito longe de onde morava, quase duas horas ônibus-metrô-ônibus.

O menino jogou a vara fora, limpou as mãos na bermuda, ajeitou o boné e perguntou:

— Pai, por que umas pessoas são felizes e outras não?

O homem levantou, encheu os pulmões com o ar quente de janeiro, observou a luz que penetrava por entre a copa das árvores, disse:

— Está na hora... Vamos indo?

Em silêncio, saíram caminhando devagar, lado a lado.

Luiz Ruffato

O antipluralismo bolsonarista

Uma das principais referências políticas do bolsonarismo é a Hungria de Viktor Orbán - como já deixou claro em mais de uma ocasião o filho 03, Eduardo Bolsonaro, líder ideológico local do movimento capitaneado pelo pai. Em célebre discurso de 2014, Orbán expressou seu desejo de transformar a Hungria numa “democracia iliberal”, como já o seriam a Rússia de Vladimir Putin e a Turquia de Recep Tayyp Erdogan. Nesses regimes, o apoio plebiscitário de uma maioria ao líder entronizado lhe permite governar passando por cima de eventuais limites.

Assim, restringe-se ou mesmo se elimina a liberdade de imprensa; perseguem-se e até se encarceram opositores; combate-se a independência dos centros de produção intelectual autônoma - como as universidades e as artes; deslegitima-se a oposição, apontando-lhe como formada por traidores da pátria - não existiria, como no Reino Unido, uma oposição “de” Sua Majestade, mas apenas “a” Sua Majestade. O modus operandi da democracia iliberal passa por sufocar as divergências e subalternizar as minorias não alinhadas à linha dominante, personificada pelo líder máximo e amparada plebiscitariamente no apoio de uma maioria baseada em critérios identitários - como valores, etnia, religião ou um conjunto de todas essas coisas.

charge de Iotti publicada em 8 de janeiro de 2019<!-- NICAID(14380162) -->

O caráter “democrático” das democracias iliberais residiria unicamente em seu plebiscitarismo, na expressão da vontade majoritária em eleições e outras votações nas quais a competição política é prejudicada porque a oposição é sabotada ou reprimida, bem como o debate público aberto é substituído pelo oficialismo dos discursos governamentais e pela retórica voltada a deslegitimar discordâncias. Dessa perspectiva, jornalistas são categoria em extinção e devotada a produzir “fake news”, universidades são lugares de balbúrdia e ideologização, educadores não alinhados são doutrinadores pervertidos, artistas dissidentes são sórdidos e mentirosos, opositores são bandidos e traidores.

Diferentemente de suas antecessoras da antiguidade clássica, as democracias do século XX se notabilizaram por serem, justamente, liberais. Não houve uma única democracia passível de ser chamada por tal nome que não tenha contido o elemento liberal - ou seja, competitivo e limitador do poder. Em sua célebre obra, “Poliarquia”, Robert Dahl observou que os regimes democráticos realmente existentes (chamados por ele de poliarquias), eram a combinação de participação política ampliada (direito ao voto e à elegibilidade) e competição política plural.

O processo de democratização contemporâneo, portanto, significaria avançar em dois eixos de um plano cartesiano: o da participação/inclusão (com contingentes cada vez maiores da população detentores de plenos direitos políticos, tendendo à universalização) e o da liberalização (com uma competição política cada vez mais intensa e diversa). A ideia de poliarquia, portanto, é justamente essa: a do poder plural. Logo, o pluralismo e a competição que dele decorre são características inescapáveis do regime democrático que só é democrático sendo liberal.

Daí se depreende que a ideia de democracia iliberal é um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos. A expressão foi cunhada originalmente por Fareed Zakaria para descrever sinteticamente esses regimes em que competição e pluralismo são suprimidos, dando lugar apenas ao apoio majoritário, seja nas ruas, seja nas urnas. Antes dessa formulação de Zakaria, tecida por ele criticamente a esse tipo de regime, o jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, já concebia a democracia de forma antipluralista - porém, para defender esse formato. Dizia ele: “Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente.Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade e, em segundo - se for preciso - eliminar e aniquilar o heterogêneo”.

E quem seriam os não iguais, os heterogêneos? Ora, os opositores, os dissidentes, os infiéis, os seguidores de modos de vida dissonantes daqueles da maioria, os críticos à linha dominante. A eles o que cabe? A eliminação e a aniquilação, como apontava Schmitt. Foi o que, durante o Terceiro Reich, se abateu sobre judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e todo tipo “heterogêneo”. É o que pregam hoje os “democratas iliberais” como Orbán, Putin, Erdogan, Maduro e Bolsonaro.

Além dos ataques repetidos de seu governo à imprensa, à comunidade científica, aos professores e aos artistas - estes desferidos preferencialmente por seu lugar-tenente na área cultural, Roberto Alvim - Bolsonaro também deixa claro, repetidas vezes, o viés schmittiano (ainda que provavelmente sem tê-lo lido) de sua concepção de democracia. Disse ele em 2017, na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Contudo, para não irmos tão longe no tempo, tomemos uma declaração de dezembro último, diante do Alvorada: “Não tem essa história de branco e negro. Somos iguais e ponto final. Cultura é para maioria, não é para minoria, não”. Ou pouco antes, em novembro, num culto evangélico em Manaus: “Se nós somos a maioria, por que cedemos à minoria? O senhor é professor de Direito Constitucional, mas eu entendo que a lei tem que ser feita para atender às maiorias e não às minorias. Respeitamos as minorias, mas nós, a maioria, o povo é que deve conduzir o destino de uma nação”.

Equiparando povo à maioria, Bolsonaro exclui os grupos minoritários da condição de membros desse povo, vedando-lhe a legitimidade de participar da condução dos destinos da nação. O respeito às minorias aí enunciado torna-se, portanto, mera escusa retórica: respeitamos as minorias, desde que caladas e subalternas. Essa é a própria negação do pluralismo, que não respeita apenas minorias caladas e submissas, mas considera legítimos também seus pleitos e é capaz de conviver com a diversidade.
Cláudio Gonçalves Couto

Bolsonaro toma decisões sem base técnica e governa por improviso

Jair Bolsonaro reforçou sua vocação para o improviso na inauguração deste segundo ano de governo. Da crise do Irã ao debate sobre a energia solar, o presidente mostrou que sua especialidade é mesmo criar confusão e tomar decisões sem base técnica ou cálculo de riscos.

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Bastou uma conversa de meia hora com um lobista para que o presidente passasse a atacar o plano de sua própria equipe econômica para reduzir subsídios na produção de energia solar. Bolsonaro ignorou dados do governo e passou três dias recitando apenas a cartilha repassada pelos empresários do setor.

Alguém poderia imaginar que o presidente havia sido acometido por um surto ambientalista na virada do ano, passando a advogar fervorosamente pela geração de energia limpa. Mas era só demagogia.

Bolsonaro desprezou os argumentos de que esses incentivos são pagos por todos os contribuintes e, em muitos casos, acabam beneficiando mais usuários ricos do que pobres. No fim, em vez de ouvir os conselheiros do governo, ameaçou demitir quem falar sobre o assunto.

Jogando para a plateia, o presidente também provou que não sabe o que fazer para amenizar pressões sobre os preços dos combustíveis. Bolsonaro lançou a ideia de reduzir impostos estaduais, mas nem sequer consultou os governadores, que se recusam a abrir mão de receitas em tempos de cofres vazios.

O time do presidente age como se fosse possível governar por tentativa e erro. O Itamaraty contratou um incômodo desnecessário com o Irã ao demonstrar toda a sua subserviência aos EUA no duelo entre os dois países. O tom da chancelaria brasileira irritou alguns militares, preocupados com os efeitos sobre o comércio exterior e a segurança nacional.

A balbúrdia é o produto de um governo que não mede as consequências de seus atos e declarações. Bolsonaro pode tentar mascarar essa incompetência com tinturas ideológicas ou apelos populistas, mas o presidente não é mais um novato. A bagunça cobrará seu preço.

Pensamento do Dia

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O labirinto do tempo

Esta ideia é tipicamente ocidental e resulta de uma concepção linear do tempo e da história. Depois da revolução industrial os povos europeus pensavam que o progresso seria geométrico, dado o avanço da ciência e da técnica, mas bastaram meia dúzia de anos vividos no século vinte para que esse optimismo moderno batesse com a cara no chão, face à devastação provocada pela Grande Guerra, que dizimou milhões de vidas humanas. Começou logo aí a desilusão com a religião na Europa, dando lugar a regimes políticos extremistas, desilusão essa que foi agravada poucos anos mais tarde pela II Guerra Mundial, que deixou o continente destruído.

Já no Oriente o factor tempo é concebido de outra maneira, mais no sentido circular, talvez influenciado pelas ideias da reencarnação e do karma, formas civilizacionais diferentes para lidar com a questão do sofrimento e do sentido da vida.


A fé cristã compreende que para Deus o factor tempo é conceptualmente diferente do que é para os humanos. O nosso tempo é o chronos, medido por relógios e calendários, mas o tempo de Deus é o kayros: “Mas, amados, não ignoreis uma coisa, que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia” (2 Pedro 3:8). Este conceito divino só se entende na perspectiva de que Deus é maior do que o tempo que Ele próprio criou.

A percepção do tempo altera-se em função de diversas variáveis. Por exemplo, a idade da pessoa. Para uma criança o tempo é vagaroso, custa a passar, porque ela quer crescer rapidamente, a menos que esteja numa festa, em actividades lúdicas como jogos de vídeo ou a fazer alguma outra coisa que lhe dê particular prazer. Já para uma pessoa de idade avançada o tempo parece que corre. Apesar de tudo Vergílio Ferreira diz que “O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.”

Outra variável é a geografia. Nas regiões urbanas tem-se a sensação que o tempo foge, dada a correria do dia-a-dia, enquanto no meio rural parece passar mais devagar. Mas também a cultura pode fazer a diferença. Uma pessoa que tenha interesses culturais e a vida cheia tem a sensação de falta de tempo, enquanto os desocupados vivenciam a passagem dos dias como mais lenta e monótona.

Uma outra variável possível é o tipo de emprego que se tem. Um trabalho mecânico, repetitivo e sempre igual tende a fazer o trabalhador sentir que as horas custam mais a passar. Já no caso de tarefas que exijam criatividade, diversificação e imaginação tem-se a sensação de que o tempo passa mais depressa. Por tudo isto e muito mais a percepção do tempo varia muito de pessoa para pessoa e de situação para situação. Dante estava convencido que “O tempo passa e o homem não percebe.”

A viragem do ano é apenas uma marca de calendário e terá a importância que as pessoas lhe quiserem dar. É certo que organizamos a nossa vida pessoal e colectiva segundo determinadas unidades de tempo. Só assim podemos interagir com os outros em sociedade, caso contrário seria o caos. Quando marcamos uma reunião, sabemos que a hora definida é igual para todos.

Mas a vida humana concreta não se “arruma” em dias e horas. As unidades de tempo são uma convenção tornada norma social com vista a um funcionamento colectivo articulado. Há mais vida para além do relógio e do calendário. Em psicoterapia sabemos que os ritmos internos de cada pessoa diferem tanto das outras pessoas como do momento que cada um está a viver. Alguns resolvem as suas dissonâncias internas numa terapia breve, mas noutros o movimento terapêutico é mais longo e acidentado, acabando por demorar muito mais a concluir, porque cada indivíduo é único e irrepetível. Assim, o tempo parece ser uma espécie de labirinto onde cada um entra e faz um percurso distinto dos outros, até descobrir a saída.

A viragem do ano não é uma dobradiça da história, é apenas mais uma página que se passa no livro da nossa existência.

Talvez Mia Couto tenha razão quando diz: “Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga”. Ora então vamos lá a sonhar, até porque, segundo António Gedeão, “o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer”, e acima de tudo é o sonho que “comanda a vida”.

Assim, sonhemos desde já o novo ano de 2020.
José Brissos-Lino

Quem cuida não morre de fome

Se você não consegue se preocupar com uma planta, é possível que não consiga cuidar de outro ser humano.
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Dizem que devemos nos preocupar com a natureza porque, se não, perderemos a capacidade de alimentar o mundo
Arnold Arboretum, diretor do jardim botânico da Universidade Harvard, em Boston (EUA) 

Desde o regime militar, não existe no Brasil planejamento de governo nem prioridades

Ao se analisar friamente a crise que o Brasil atravessa, constata-se que um dos principais problemas é a falta de planejamento do governo. Essa prática, que tinha sido adotada rotineiramente no regime militar, simplesmente foi desprezada após o restabelecimento das eleições diretas. Na verdade, desde a ditadura nenhum governo se preocupou em planejar o crescimento socioeconômico, sem instituir metas e estabelecer prioridades.

O último plano de governo foi elaborado quando o economista Reis Veloso era ministro do Planejamento, no governo Geisel, que terminou em 1979. Depois disso, não se planejou mais nada.

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A partir da gestão do general João Figueiredo, que foi o presidente da transição, todos os chefes de governo passaram a ser meros remendadores de criseS, sem qualquer preocupação com o futuro, a não ser a própria reeleição, instituída em 1997 pelo sinuoso Fernando Henrique Cardoso, cujo governo operava as privatizações “no limite da irresponsabilidade”, como confessou o economista Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor da Banco do Brasil, ao ministro das Co­municações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, em ligação telefônica grampeada.

Os ministros do Planejamento de Figueiredo foram o economista Mario Henrique Simonsen, que ficou apenas cinco meses, e o general Golbery do Coutto e Silva. Esses realmente sabiam como planejar, mas não havia clima para os militares criarem um plano de governo a ser seguido pelos civis Tancredo Neves e José Sarney.

Como Tancredo estava muito doente e nem conseguiu tomar posse, quem tocou o governo foi o vice Sarney, que herdou os ministros de escolhidos pelo presidente eleito e fez um governo medíocre, que incluiu uma declaração de moratória da dívida externa e a maior inflação da História do Brasil, que chegou a 80% ao mês, capitaneada pelo ministro Mailson da Nobrega, que até hoje se julga um gênio e vive dando pitaco sobre economia na grande mídia.

Sarney entregou o bastão ao jovem Fernando Collor, vaidoso e fanfarrão, que teve de encarar uma crise violentíssima, sem ter experiência nem base aliada no Congresso. Acabou sofrendo impeachment e foi substituído por Itamar Franco, que fez um governo surpreendente e criou o Plano Real, reequilibrando as finanças nacionais, sem planejar nada. Foi nosso melhor presidente depois de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas.

Seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, foi facilmente eleito e logo pediu que esquecessem o que ele havia escrito como sociólogo. Sem planejamento, seu governo foi um desastre, parece ter como prioridade o crescimento da dívida interna, muito pior do que a externa, devido à necessidade de juros altos para atrair os “rentistas” financiadores. Na Era FHC, os juros chegaram a 45% ao ano, com Gustavo Franco e depois, com Armínio Fraga.

Lula da Silva assumiu em 2003 e chamou Carlos Lessa e Darc Costa para dirigirem o BNDES. Lessa pediu-lhe o plano de governo, mas isso não eczistia, diria o Padre Quevedo. Indagou as prioridades e Lula disse que gostaria de reativar a indústria naval.

Lessa e Darc não somente recriaram a indústria naval, como também traçaram um plano de governo e usaram o BNDES para incentivar micros, pequenas, médias e grandes empresas, criar empregos na indústria, priorizar setores estratégicos e incrementar as exportações.

Foi com Lessa e Darc no BNDES que surgiu o fenômeno Lula, que fechou 2010 com PIB crescendo 7,5%. Em 2005, ao deixar o BNDES, Lessa avisou que a política econômica comandada por Palocci e Mantega seria “um voo de galinha” – ou seja, a economia iria subir e logo depois despencar. Não deu outra.

Depois veio a tragédia de Dilma Rousseff. No desespero, a gerentona do PT se limitou a conceder isenções fiscais, achando que os empresários usariam os bilhões para aumentar a produção e criar empregos, mas eles preferiram gastar o dinheiro em Miami e na Disneylândia, digamos assim.

A seguir, Michel Temer também assumiu sem nenhum planejamento e seu superministro Henrique Meirelles se limitou a criar um plano para ser cumprido em 20 anos, vejam que grande piada econômica, algo nunca visto em país algum.

Agora temos Jair Bolsonaro no poder, comandado sub-repticiamente por Paulo Guedes, uma espécie de Rasputin sem barbas, que não exibe plano algum e também trabalha como remendão de crises.

O maior desafio do país é a dívida pública, que consome os recursos a serem investidos em desenvolvimento. É um problema que só pode ser resolvido se houver superávit primário. Mas o próprio Guedes já anunciou que não haverá superávit no governo Bolsonaro, e isso somente poderia ocorrer depois de 2022, quem quiser que acredite.

O mais desanimador é que o atual governo tem número recorde de militares nos cargos de alto escalão. Infelizmente, porém, nenhum deles planeja nada.

Passagens e desejos

O ano novo, com um número que os magos e bruxos adoradores de São Cipriano afirmam ser mágico, apenas começa e já realiza desejos. Um amigo abandou a esposa não por outra mulher, mas por dinheiro: juntou o suficiente paras voltar à vida leve, livre e solta de solteiro.

Eu vejo os rituais de passagem do tempo como maneiras de cortar a água, pois se o tempo, como uma melodia, é continuo e, sendo líquido, penetra todas as fendas e frestas, ligando tudo como um rio interminável, em muitas sociedades os ritos de final de temporada são feitos de estrondos, apitos, tiros e batidas. Os fogos de artificio, precursores das grandes bombas mortais das guerras, retornam com inocência e, para a nossa alegria, transformam a noite num misto de alvorada e crepúsculo colorido e festivo, embora — é claro — seus brilhos sejam fugitivos como um beijo roubado ou um orgasmo. O estouro interrompido dos fogos traduz o rompimento daquilo que inevitavelmente é contínuo. Rituais de marcação do tempo são como feridas...

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Um mestre de Oxford, Rodney Needham, religou percussão com transição como uma tentativa de cortar água, algo que Thomas Mann advertia ser impossível na vida real. Mas o que é o real para a fantasia, a fabulação, a vontade racionalizada pela mentira e a ideologia subjugada pelo projeto? E como estar certo de que se progrediu ou regrediu sem promover o represamento da cachoeira do tempo que é o senhor da vida, classificando seus períodos em termos de avanço ou de atraso?

Para nós o tempo tem, além do fato óbvio de sua passagem, valor — pois estávamos certos de que o futuro seria melhor do que o passado, algo negado veementemente por um estilo de vida consumista que o põe em dúvida. Contudo, continuamos a contar o tempo, somando-o e não de modo alternado como se faz em sociedades que alternam verão e inverno ou chuva e estio. A repetição neutraliza o tempo concebido de modo progressivo, interpretado como adiantado ou atrasado.
Os rituais de passagem do tempo são momentos de luto ou de arrependimento pelo que se foi e, simultaneamente, tempos de previsão e de esperança. Momentos intermediários nos quais rotinas e destinos são rompidos — e os Joãos de Deus da nossa vida dita tecnológica e racional dão os seus palpites e enxergam um futuro que nós, os comuns, apenas esboçamos.

Minha tia Amália contava uma história.

Um pescador e sua mulher viviam num chiqueirinho e um dia o marido pescou um peixe que era também um príncipe encantado capaz de realizar desejos. Ao saber disso, a mulher o fez pedir ao peixe uma boa casa imediatamente obtida. Mas logo ela quis um castelo e, em seguida, um reino e um império! Sonhos realizados são como mentiras que viram crenças.

Prontamente, a mulher do pescador pensou em ser papa. O marido hesitou, mas sendo ela rei imperador, ele era seu escravo, e o peixe encantado fez a esposa virar papa, reunindo o poder temporal com o espiritual na sua pessoa.

Agora, com seus desejos de grandeza e riqueza realizados, ela não dormia: o sol lhe atrapalhava o sono. Sem vacilar, ela demandou ser a senhora do sol e da lua. O marido, sereno como quem sabe para onde vão parar os desejos e os surtos, contou esse onipotente desejo ao peixe.

-Vá para casa, disse o peixe, e vivam novamente no seu chiqueiro. É nele que eles estão até hoje.

Titia Amália contava essa fábula dos irmãos Grimm que moldaram a língua e a identidade alemã. No conto, nota-se o espírito de Schopenhauer, de Nietzsche, de Freud, de Thomas Mann e desse vosso escriba niteroiense no sentido de que a vontade é insaciável e, entregue a si mesma, ela conduz no mínimo à repetição. O desfecho ingrato não deve ser lido como castigo, mas como uma advertência de que não se pode ter tudo.

Numa versão brasileira, o pescador e a mulher concordam, significativamente para a nossa sociedade hierárquica, que é melhor permanecerem pobres resignados e felizes na velha cabana.

Se o leitor perguntar onde fico, respondo com Thomas Mann que não queremos uma coisa porque a reconhecemos como boa, mas a desejamos boa porque a queremos. Com todo o sofrimento eventualmente decorrente dessa vontade.

Feliz 2020!
Roberto Damatta