terça-feira, 18 de setembro de 2018

Pensamento do Dia


Militar ou não militar

Militar também é cidadão?

Sem duvida. Mas à instituição à qual ele pertence é confiado o exercício do componente mais pesado do monopólio do uso da força que a nação delega ao estado. E isso põe regras rígidas para os que encarnam essa instituição participarem da discussão política, especialmente da parte dela que diz respeito à conquista e ao exercício do governo. Como o poder, mais que tudo, corrompe, convém manter uma distância profilática entre o poder armado e o poder desarmado (assim como também, e pela mesma razão, entre o poder político e o poder econômico). Os dois (ou os três) concentrados nas mesmas mãos, diz a História que não registra exceções, produzem tentações fortes demais para a natureza humana resistir e esse é o caminho mais curto para o poder absoluto, aquele que corrompe absolutamente.

Um militar tem todo o direito, portanto, de desligar-se da instituição das Forças Armadas para tentar uma carreira política. Mas militares da ativa ou da reserva ainda ligados às Forças Armadas, se quiserem enveredar por esse caminho, têm de escolher entre o desligamento da instituição ou manter, acima de tudo, o respeito à hierarquia que lhe impõe silêncio no debate político-eleitoral.

O limite desse racional está na definição das atribuições constitucionais das Forças Armadas, a primeira das quais é defender a própria constituição cujos fundamentos básicos são a soberania do povo sobre o estado e o princípio da alternância no poder que definem a natureza democrática do regime.

As Forças Armadas Brasileiras vêm respeitando irrepreensivelmente esse limite desde 1985. Agora essa fronteira começa a ficar menos nítida. Mas seria falsear a verdade apontar os últimos pronunciamentos que passaram da medida como manifestações espontâneas de pessoas ou instituições sedentas de poder.

A mais nefasta das especialidades da esquerda radical militante – aquela que põe as ideias à frente das “narrativas” e as faz independentes dos fatos na estruturação da sua “lógica” – é materializar os fantasmas que cria. Se ha algum grau de atrito dentro dos limites da convivência e da tolerância entre classes, raças, gêneros, preferências ideológicas e o que mais possa diferenciar pessoas de pessoas, ela trabalha sempre no sentido de acirrá-lo até transformá-lo na “guerra” com que justifica o seu próprio radicalismo e, no extremo, a eliminação física do adversário transformado em “inimigo”.

As declarações de militares assinaladas em condição de impedimento não são propriamente ações, são mais exatamente reações. O partido ou o candidato que oficialmente aponta como exemplo regimes como o da Venezuela e outros que se estabelecem exclusivamente pela força, está assumindo uma posição de fato contra a democracia e a alternância de poder prescritos pela constituição. Também não foram os militares, foi a presidente do PT em pessoa e os dois candidatos que disputam a simpatia da esquerda – o “poste” finalmente erguido e Ciro Gomes – que têm afirmado textualmente que suas candidaturas são uma etapa do projeto de anular a condenação de Lula pela Justiça e pelas leis vigentes no Brasil (“a bala” se alguem resistir na versão de Ciro). Tudo isso não apenas soa como frequentemente se apresenta explicitamente como ameaça direta contra a democracia e o princípio da alternância no poder.

E o que dizer de um Supremo Tribunal Federal que, coroando uma sequência de manobras de uma insistência impossível de interpretar como fortuita, proibe a produção de uma prova física do voto – como as de que dispõem todos os países democráticos do mundo – depois dela ter sido aprovada uma vez pelos representantes eleitos do povo e reconfirmada, depois de vetada pela “presidenta” petista, com votação muito mais que suficiente para reverter um veto presidencial? Ou da sucessão de decisões votadas pelos representantes eleitos do povo e em seguida anuladas, seja por votações do plenário, seja por decisões monocráticas de ministros do STF que, de troco, legislam em causa própria atribuindo-se aumentos de salário indecentes num quadro de economia de guerra para o resto do país? Onde tudo isso deixa o principio da soberania do povo?

A válvula de escape que resta quando as demais instituições rateiam é o chamado 4º Poder da Republica. Mas também a imprensa tem falhado. Só que ha uma realidade aqui fora que já foi a um extremo tal que não ha mais como contemporizar. A estratégia de paralisar o governo Temer esfriou a memória nacional e diluiu os direitos autorais do desastre econômico do lulismo. Isso, mais a velha mistura de desinformação com miséria assistida, explica a posição de um terço do eleitorado. A penuria em que essa paralisia deixou a classe média meritocrática, os micro-empresários, os caminhoneiros, os prestadores de pequenos serviços, os aposentados do país real e até a fatia de baixo do funcionalismo mal pago (que inclui boa parte dos militares e dos policiais), explica o outro terço. De um jeito ou de outro esse Brasil tem de se fazer ouvir. Cada fato omitido, cada pergunta que deixar de ser feita pelos atores contratados pelos sistemas democráticos para atuar nessas ocasiões acaba por voltar na boca de alguém que deveria ficar do lado de fora do debate eleitoral. Daí ser a verdade – inteira – não apenas o melhor, mas o único remédio receitavel para uma democracia que se quer representativa.

Mas por mais “justificados” pelos fatos que tais desabafos possam estar é preciso resistir à tentação de faze-los. O Brasil, à beira de um processo de entropia que uma vez instalado torna-se irreversível, já viu esse filme. Andar à margem da democracia, não importa por qual margem, é para os anti-democratas. Por isso ao terço restante do eleitorado – aquele que insiste na democracia sem aspas, nem vírgulas, nem hiatos – resta, por enquanto, uma escolha de sofia que toda e qualquer suspeição em torno do respeito ao principal só fará tornar ainda mais difícil.

O poste é escadaria

O Brasil precisa do Lula orientando, como um grande conselheiro
Fernando Hadad

Impeachment e inelegibilidade

A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que, se o presidente da República for condenado por crimes de responsabilidade em processo de impeachment, deverá perder o cargo e ficar inabilitado por oito anos para o exercício de função pública (artigo 52, parágrafo único). A condenação, portanto, é causa de inelegibilidade e veda, também, além do exercício de cargo público eletivo, o exercício de qualquer função pública.


Como assevera a eminente ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), “(...) a Constituição cuidou de não apenas afastar o agente do cargo (o que não teria exequibilidade com sua anterior renúncia), mas, ainda, preocupou-se em não permitir que o poder público, por qualquer de suas funções, pudesse vir a ser, pelo período de oito anos subsequentes à condenação, tangível à mão daquele que destratou a República, lesou a ordem jurídica e afrontou o povo do Estado brasileiro”.

É que, se o presidente da República renunciar ao cargo antes de concluído o julgamento do impeachment pelo Senado Federal, o processo continua e, em caso de condenação, evidentemente, aplica-se apenas a inabilitação; não por existirem sanções autônomas, mas, sim, por impossibilidade material de decretação da perda do cargo em face da renúncia.


Nesse sentido foi o acórdão do Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, indeferiu o mandado de segurança impetrado pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo contra resolução do Senado que o havia declarado inabilitado por oito anos para o exercício de função pública (Mandado de Segurança n.º 21.689-DF, cujo relator foi o ministro Carlos Velloso).

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, também afirmou então no seu voto que “(...) há uma única sanção constitucionalmente estabelecida, que compreende, na abrangência do seu conteúdo, a destituição do cargo com inabilitação temporária. A unidade constitucional da sanção prevista torna-a indecomponível, incindível, impedindo, dessa forma, que se dispense tratamento jurídico autônomo às projeções punitivas que emanam da condenação senatorial”.

Por outro lado, naquele mesmo mandado de segurança ficou claro – como em recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal – que o mérito do impeachment é, obviamente, a condenação ou absolvição pela prática de crimes de responsabilidade. O saudoso ministro do Supremo Tribunal Teori Zavascki observou, com clareza e precisão, não ser cabível juízo de mérito “sobre a ocorrência ou não dos fatos ou sobre a procedência ou não da acusação (...)” (vide Mandado de Segurança n.º 34.193-DF). E em relação a isso o Supremo não se pode pronunciar, por se tratar de julgamento político realizado pelo Senado Federal.

Deve o Supremo, contudo, exercer o controle de constitucionalidade quanto à aplicação da sanção do impeachment na sua inteireza, conforme dispõe o artigo 52, parágrafo único, da Constituição federal. Como acentuou, mais uma vez, o eminente decano do Supremo, ministro Celso de Mello, em trecho do seu voto: “(...) a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação do caráter político das resoluções tomadas pelas Casas Legislativa pudesse configurar (...) manto protetor de comportamentos abusivos ou arbitrários, praticados à margem da Constituição”.

Portanto, se o Senado Federal condena o presidente da República por crimes de responsabilidade em processo de impeachment, a consequência óbvia e inevitável disso deve ser, segundo a Constituição da República e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a perda do cargo com inabilitação por oito anos para o exercício de qualquer função pública, tornando-se o ex-presidente inelegível no mesmo período.

Após a condenação pelo Senado, pelo voto de dois terços dos seus membros, eventual nova votação para “excluir” a inabilitação é evidentemente inconstitucional e contrária à jurisprudência do colendo Supremo Tribunal Federal.

Finalmente, as inelegibilidades de natureza constitucional, isto é, previstas no próprio texto da Constituição federal – e não em lei complementar –, são, segundo a lei (Código Eleitoral, artigo 259), insuscetíveis de preclusão, podendo ser arguidas a qualquer tempo, durante e após o processo eleitoral, perante o Tribunal Superior Eleitoral e o próprio Supremo Tribunal Federal.

Observe-se, ainda, que – por razões análogas às do impeachment do presidente da República – o impeachment de governadores de Estados e de prefeitos municipais, bem como a decretação de perda de mandato de senadores e de deputados federais, são também causas de inelegibilidade (Lei Complementar n.º 64/90 – Lei das Inelegibilidades –, artigo 1.º, inciso I, alíneas b e c).

O ex-presidente da República destituído do cargo por ter cometido crimes de responsabilidade não pode simplesmente pretender retornar em seguida ao cargo no qual praticou as graves violações da Constituição e da lei – deletérias da democracia, da probidade na administração e da dignidade da função presidencial. Torna-se inelegível pelo período de oito anos, inabilitado para o exercício de qualquer função pública.

Seria, igualmente, inominável desrespeito à Constituição e às instituições democráticas a eventual pretensão do ex-presidente da República destituído do cargo de concorrer, nas eleições seguintes à condenação, a cargo eletivo na Casa Legislativa que o condenou. A Constituição deve ser cumprida.

Brasileiros criam debate que não existe na Alemanha

"Os alemães não escondem seu passado", diz a frase inicial de um vídeo com legendas em português publicado pela Embaixada da Alemanha em Brasília publicado no Facebook há pouco mais de dez dias.

O que era para ser mais um vídeo institucional para divulgar como a sociedade alemã lida hoje com o nazismo e o Holocausto acabou virando, em meio à polarização pré-eleições, palco de ataques de militantes de direita brasileiros que não gostaram do conteúdo da peça.

Tudo porque um trecho classifica o nazismo como uma ideologia de extrema direita e cita uma frase do ministro do Exterior alemão, Heiko Mass, que diz: "Devemos nos opor aos extremistas de direita, não devemos ignorar, temos que mostrar nossa cara contra neonazistas e antissemitas."

Para militantes brasileiros que passaram a escrever na caixa de comentários do vídeo, a embaixada e o ministro alemão estão errados em classificar o nazismo como um movimento de "extrema direita".

"Extremistas de direita? O partido de Hitler não se chamava Partido dos Trabalhadores Socialistas? Onde tem extrema direita?", disse um usuário, apelando incorretamente para o nome oficial da agremiação nazista, que se chamava Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP.

Outro disse: "Vindo do país de origem do Marxismo, tendo a Alemanha sido infestada por vermelhinhos no pós-guerra (...) é claro que eles vão distorcer tudo e jogar na conta da direita." Uma rápida olhada nos perfis dos usuários que associaram o nazismo com a esquerda mostra que vários divulgam propaganda do candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL).


Entre algumas páginas e círculos de direita brasileiros, muitos deles pró-Bolsonaro, têm sido comum nos últimos anos tentar classificar o nazismo como um "movimento de esquerda". O principal argumento para defender a tese leva em conta a presença do termo "socialista" no nome do partido.

"Se essa for a lógica, então eles também têm que afirmar que a República Democrática da Coreia (Coreia do Norte) é uma democracia e que o mesmo valia para República Democrática Alemã (antiga Alemanha Oriental comunista)", afirma o cientista político alemão Kai Michael Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisador associado do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (Giga).

Outro argumento usado pelos propagadores da ideia do "nazismo de esquerda" também aponta para o caráter antiliberal na economia do Terceiro Reich e as características estatistas de setores do regime. A comparação ignora que regimes de direita como a ditadura militar brasileira (1964-1985) ou o antigo governo franquista da Espanha também eram estatistas, antiliberais e favoreciam uma espécie de capitalismo a serviço dos interesses nacionais, assim como o nazismo.

"Nunca tinha visto essa discussão sobre o nazismo ser de esquerda na Alemanha", afirma Kenkel. "Lá é muito simples: trata-se de extrema direita e pronto. Essa discussão sobre ser de esquerda ou direita parece existir só no Brasil. Se você perguntar para um neonazista na Alemanha se ele é de esquerda, vai levar uma porrada", continua. "Essa falsa polêmica demonstra que o ensino de história é profundamente falho no Brasil. Também mostra uma profunda manipulação dos fatos e um desprezo pela verdade entre alguns setores no Brasil."

Outros usuários que comentaram no vídeo foram até mais longe, chegando a negar o Holocausto e chamar o extermínio de milhões de judeus durante o nazismo de "holofraude". "Os supostos 6 milhões existem desde 1915 como propaganda sionista, só que não existia um culpado certo e acharam um em 1945", disse um comentarista. O teor desse tipo de comentário levou a embaixada a reagir e responder "que o Holocausto é um fato histórico".

Mas não só militantes que contestaram o vídeo encheram a caixa de comentários. Centenas de brasileiros também mostraram repúdio às declarações dos militantes de direita.

"Querem ensinar o padre a rezar a missa", disse um usuário. "Todo dia um a 7 a 1 diferente", disse outro. Vários pediram "desculpas" à embaixada da Alemanha pelo comportamento de alguns de seus compatriotas.

Na tarde desta segunda-feira (17/09), o vídeo já havia sido compartilhado 16 mil vezes e tinha mais de mil comentários. O Consulado-Geral da Alemanha no Recife também publicou a peça, e a reação foi similar: 20 mil compartilhamentos e 1.500 comentários.

A versão de que o nazismo seria uma ideologia de esquerda vem se espalhando há alguns anos entre páginas de direita brasileiras. Desde os anos 2000 o filósofo Olavo De Carvalho vem divulgando essa visão para seus seguidores.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do candidato à Presidência Jair Bolsonaro, também afirmou em 2016 no Twitter que o "nazismo é esquerda" e usou o argumento sobre a presença da palavra "socialista" no nome do partido. Desde então, voltou ao tema várias vezes nas redes sociais sempre apontando que o nazismo está no campo da esquerda.

Recentemente, a associação do nazismo com a esquerda ganhou até mesmo adesão em páginas brasileiras de viés liberal que passaram a adotar posições mais conservadoras.

Em 2017, o direitista Movimento Brasil Livre (MBL) publicou um vídeo em que o ativista Kim Kataguiri diz que Hitler não "era de direita", mas concedia que o nazismo também "não era de esquerda" e finalizava com um raciocínio confuso em que apontava que o nacional-socialismo seria uma espécie de "terceira via" totalitária. Vários comentaristas não gostaram que o líder do MBL não classificou o nazismo como meramente de "esquerda" e o acusaram de ser um "isentão" que se deixou levar pela “conversa de esquerdistas".

Nos EUA, o assunto também surge em páginas de redes sociais, mas praticamente nunca foi abordado na grande imprensa e permanece relegado a páginas de direita ou fóruns. No Brasil, no entanto, algumas revistas e sites da imprensa, como o UOL, G1, Galileu, Superinteressante já abordaram a discussão e divulgaram a opinião de historiadores. Em 2015, o filósofo Leandro Karnal também abordou o assunto em um texto. Outros veículos, como o site InfoMoney e o jornal Gazeta do Povo, abriram espaço para propagadores da associação.

Na Alemanha, as poucas referências a uma discussão pública sobre o assunto na imprensa remetem a um episódio de 2012 que envolveu a ex-deputada conservadora Erika Steinbach. Na ocasião, ela disse no Twitter que o "vocês esqueceram? O nazismo era de esquerda". Ela foi duramente criticada pela imprensa e historiadores. Anos depois, ela deixou a União Democrata-Cristã (CDU) e passou a apoiar o partido populista Alternativa para a Alemanha (AfD), que recentemente organizou manifestações xenófobas no leste da Alemanha que contaram com a presença de neonazistas.

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Gente fora do mapa

Criança do meu país, Tammam Jaramani (Síria)

Que triste são as coisas

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Carlos Drummond de Andrade, "A flor e a náusea"(trecho)

História e ficção

Um livro de erudição rigorosa pode ser divertido? É raro, mas acontece no caso de Imperiofobia y Leyenda Negra (Imperiofobia e Lenda Negra), de María Elvira Roca Barea, que acabo de terminar. É aguerrido, profundo, polêmico, e é lido sem pausas, como um romance policial em que o leitor voa sobre as páginas para saber quem é o assassino. Confesso que há tempos não lia um livro tão ameno e estimulante.

Seu subtítulo é Roma, Rússia, Estados Unidos e o Império Espanhol. E é verdade que a autora se ocupa também das lendas negras geradas pelos três primeiros impérios, mas sua principal ocupação, com profundidade e utilizando com desenvoltura uma impressionante bibliografia, é a construção intelectual e fictícia que há séculos distorce profundamente a história da Espanha e ridiculariza seu povo. De acordo com ela, ainda está muito viva, porque os próprios espanhóis não quiseram e não souberam contra-atacá-la, dando as costas a essas caricaturas que os apresentavam como fanáticos, perversos, ignorantes e inimigos viscerais da ciência, da modernidade e da civilização.

Segundo Roca Barea, a lenda negra anti-espanhola foi uma operação de propaganda montada e alimentada ao longo do tempo pelo protestantismo especialmente em suas versões anglicana e calvinista —contra o Império Espanhol e a religião católica para afirmar seu próprio nacionalismo, demonizando-os até extremos pavorosos e chegando a privá-los de humanidade. Dá exemplos abundantes e de toda espécie sobre isso: tratados teológicos, livros de história, romances, documentários e filmes de ficção, quadrinhos, piadas e até conversas pós-refeição. A extensão e duração da lenda negra teve a contribuição da indiferença com que o Império Espanhol, primeiro, e depois seus intelectuais, escritores e artistas, em vez de se defender, em muitos casos tornaram sua a lenda negra, avalizando seus excessos e fabricações como parte de uma feroz autocrítica que fazia da Espanha um país intolerante, machista, lascivo e em luta com o espírito científico e a liberdade.

Você sabia que as degolas e esquartejamentos de católicos na Inglaterra de Henrique VIII e da rainha Elizabeth I, e nos Países Baixos de Guilherme de Orange, foram infinitamente mais numerosos do que as torturas e justiçamentos em toda a história da temível Inquisição Espanhola? Sabia que a censura de livros na França, Inglaterra e Alemanha foi tão ou mais severa do que na Espanha? O ensaio de Roca Barea prova tudo isso de maneira inequívoca, mas também inútil, pois, como mostra seu livro —é o mais inquietante dele—, quando uma dessas ficções malignas (hoje diríamos pós-verdades) encarna na história substituindo a verdade, alcança uma solidez e realidade que resiste a todas as críticas e desmentidos e sempre prevalece sobre eles. A ficção traga a história. Por isso, as batalhas de Napoleão narradas por Victor Hugo e Tolstói sempre nos parecem, apesar de seus abundantes erros, mais certas do que as dos historiadores mais rigorosos.
E não há ácido mais eficaz e inescrupuloso na alteração das verdades históricas do que o nacionalismo
Pois bem, no livro de Roca Barea aparecem historiadores de muito prestígio, como o alemão Leopold von Ranke e o inglês Thomas Macaulay —existem muitos outros pensadores e artistas não menos distintos, como um Voltaire e um Edgar Allan Poe—, que, talvez sem ser conscientes disso, contribuíram para a lenda negra. E perpetraram distorções flagrantes à verdade histórica acomodando em seus livros os fatos de tal modo que confirmaram em vez de refutar os exageros e mentiras inventados para desprestigiar e afundar moral e politicamente o “inimigo” imperial e “papista”. A autora de Imperiofobia y Leyenda Negra não considera que tudo isso venha de uma conspiração conscientemente forjada pelos poderes; tudo isso é, evidentemente, encorajado e às vezes financiado pelo poder, mas também nasce de maneira espontânea, como uma excrecência natural do nacionalismo, que se forma e fortalece sempre contra algo ou alguém, pois precisa de um inimigo a quem odiar para poder subsistir. E a Espanha do Século do Ouro, quando a lenda negra é mais ativa, era o mais poderoso império da Europa e, certamente, o inimigo obrigatório dos países que pretendiam substituí-lo. E das denominações religiosas que queriam ser as mais genuínas herdeiras das verdades bíblicas.

Dessa maneira indireta, o livro de Roca Barea, sem sequer ter proposto tal coisa, questiona as próprias bases da História como uma ciência objetiva, pois sua pesquisa demonstra que em muitos casos nela se infiltra, em razão das circunstâncias e das pressões religiosas e políticas, a ficção como um elemento que desnaturaliza a verdade histórica e a acomoda às urgências ideológicas do poder estabelecido. E não há ácido mais eficaz e inescrupuloso na alteração das verdades históricas do que o nacionalismo, como os espanhóis têm a ocasião de comprovar atualmente com o desafio independentista da Catalunha, que, além de se rebelar contra a Constituição e as leis, se empenha em refazer a história e transformá-la em uma ficção a seu serviço.

O livro de Roca Barea é muito bem escrito, com uma prosa elegante, argumentos pertinentes e por vezes com uma ironia alegre que atenua a gravidade dos assuntos dos quais trata. Salta às vezes do passado remoto à atualidade, para mostrar que há entre ambos uma concatenação secreta e, frequentemente, indica nas notas o dia exato em que fez aquela citação e verificação nos arquivos (algo que, acredito, se faz pela primeira vez).

A autora desse livro extraordinário me dá um puxão de orelhas, em uma de suas páginas, por ter lembrado que o romance como gênero literário esteve proibido na América Espanhola durante os três séculos coloniais, porque as autoridades religiosas e políticas espanholas consideraram que as invenções disparatadas desses livros poderiam confundir os indígenas e distraí-los dos ensinamentos religiosos. É, acho, o único caso na história em que um gênero literário foi proibido. Roca Barea me recorda que naquela época surgiu na Espanha o romance picaresco (poderia ter mencionado também o principal romance: Dom Quixote). Minha afirmação não é parte da lenda negra, mas se trata de uma verdade inequívoca. A proibição, que existiu e foi reiterada várias vezes ao longo daqueles trezentos anos, dizia respeito somente às colônias, não à metrópole. E, ainda que a proibição tenha funcionado no que se refere à publicação de romances, não impediu que, graças ao profuso contrabando, os romances tenham sido lidos fartamente nas colônias americanas. Mas o primeiro romance, como tal, só foi publicado no México, após a independência: El Periquillo Sarniento (1816). Todas as boas histórias da literatura hispano-americana (recomendo as duas melhores, ou seja, a de Enrique Anderson Imbert e a de José Miguel Oviedo) reproduzem essas proibições que, desde meus anos de estudante, sempre me fascinaram. Por que a ficção foi proibida como tal? O resultado foi que, ceifada a fonte natural da ficção, que é o romance, tudo na América Latina passou a ser impregnado pela ficção proibida: não só os gêneros literários como a poesia e o teatro, também a religião, a política e a própria vida da sociedade e das pessoas.

Os erros de Lula na crise de 2008

Na economia, 2008 é o ano que não terminou. E talvez tenha começado antes do seu princípio. Entender a sucessão de eventos que nos infelicita é fundamental neste período eleitoral em que estão sendo feitas as escolhas. A crise internacional iniciada com a quebra do Lehman Brothers no dia 15 de setembro assustou o mundo e bateu na nossa praia. “Uma marolinha”, gabou-se Lula. Mas os erros cometidos antes e depois daquele dia explicam o buraco fiscal no qual estamos. A onda ainda nos derrota.

A crise não havia começado, o mundo crescia mais do que o Brasil, em 2007, quando foram tomadas decisões que abririam um rombo nas contas públicas. Lula editou o PAC I, com a meta de crescer 5% ao ano, e para isso ampliou muito os gastos públicos. Daí nascem as milhares de obras hoje paradas. O governo tomou várias decisões na mesma direção. Iniciou a construção de quatro refinarias, começou as transferências do Tesouro para o BNDES, ampliou o conceito de micro e pequena empresa para o faturamento de R$ 2,4 milhões. Isso elevou a despesa tributária com o Simples. Existe em outros países, mas o teto é muito menor do que no Brasil. É dessa época também a criação do FI-FGTS, que pegou dinheiro do trabalhador para entregar a empresários a juros baixos e, em algumas ocasiões, em negociatas como a que se viu no caso JBS. O PAC deu também dinheiro à Caixa, R$ 5,2 bilhões.

A crise de 2008 foi um tsunami que ameaçou engolir todas as economias do mundo. Os bancos centrais dos países ricos adotaram medidas para expandir a oferta de crédito, de dinheiro na economia e de gastos públicos. Foi feito aqui no Brasil também. Uma coisa é a emergência que precisava de atenção imediata. Outra coisa foram os estímulos excessivos que começaram antes da crise e continuaram após o pior já ter passado no Brasil.

A ordem dos eventos foi assim: o país crescia a 4% quando em janeiro de 2007 o ex-presidente Lula lançou o programa para acelerar o crescimento. “Não vamos descer a Rua Augusta a 120 por hora. O objetivo é acelerar o crescimento sem comprometer a estabilidade”, disse. Mas ele apertou o acelerador em hora errada e em intensidade perigosa. Chegou a 2008 crescendo a 6% quando estourou o tsunami no mundo, provocado pelos empréstimos arriscados e sem lastro no mercado hipotecário americano e europeu. Bancos ameaçavam quebrar nas maiores economias. Lehman Brothers, com 170 anos, não abriu as portas na manhã do dia 15. No Brasil, algumas empresas haviam feito operações perigosas no mercado de derivativo cambial. Sadia e Aracruz encabeçavam a lista de empresas que apostaram em queda constante do dólar. Com a crise, o dólar disparou. O BNDES teve que entrar financiando a fusão da Sadia com a Perdigão, da Aracruz com a Votorantim Celulose. O braço financeiro da Votorantim foi vendido para o Banco do Brasil. O Unibanco uniu-se ao Itaú. O Banco Central ampliou a oferta de dólar na economia usando recursos das reservas cambiais.

Como resultado da crise, o crescimento foi a zero em 2009. As medidas anticíclicas para enfrentar a emergência da crise global foram acertadas. O problema é que haviam começado antes e permaneceram depois. Em 2010, o país crescia 7,5%, e o governo em vez de reduzir os estímulos os aumentou. Era ano eleitoral e a candidata Dilma Rousseff fora uma escolha pessoal de Lula. Neófita em eleições e sem carisma, precisava de um ambiente de euforia econômica e de toda a maquiagem que João Santana e Monica Moura sabem fazer, quando são bem pagos.

O governo manteve os estímulos usados antes, durante e depois da crise. Reduziu impostos para setores escolhidos, turbinou bancos públicos, aumentou o subsídio do BNDES e estimulou o endividamento das famílias. Com isso, houve o período da euforia de 2010, que está na mente dos eleitores como boa lembrança que o PT tenta avivar, e o rombo fiscal que jogou o país na recessão, que o PT tenta apagar da história. São filhos da mesma política, nascida no governo Lula e mantida enquanto foi possível no governo Dilma.

O mundo saiu da crise, nós estamos nela. Dilma poderia ter feito o ajuste, mas expandiu ainda mais os estímulos. Foram os erros locais de Lula-Dilma que produziram a crise da qual ainda não saímos.

Brasil da pedra lascada


Oportunidades iguais a ricos e pobres ajudaram Finlândia a virar referência em educação

Os finlandeses só conheceram o asfalto na década de 1920. Até o começo do século 20, conheciam sobretudo a pobreza. Quando, em 1891, foi inaugurada no Brasil a avenida Paulista, a primeira via asfaltada da cidade de São Paulo, a hoje rica Finlândia era uma economia substancialmente agrária, e seus primeiros 14 km de rodovia seriam inaugurados somente em 1963.

Mas, nos anos seguintes, o país foi transformado por um conjunto de políticas educacionais e sociais - que criaram um dos mais celebrados modelos de excelência em educação pública do mundo. No Brasil, enquanto isso, reduzir a imensa desigualdade de oportunidades educacionais que existe entre as crianças que nascem em famílias pobres e as mais ricas segue sendo um dos principais desafios do país.

É o conhecido milagre finlandês, iniciado na década de 70 e turbinado nos anos 90 por uma série de reformas inovadoras. Em um espaço de 30 anos, a Finlândia transformou um sistema educacional medíocre e ineficaz, que amargava resultados escolares comparáveis aos de países como o Peru e a Malásia, em uma incubadora de talentos que a alçou ao topo dos rankings mundiais de desempenho estudantil e alavancou o nascimento de uma economia sofisticada e altamente industrializada.

Trata-se, à primeira vista, de um enigma: os finlandeses estão fazendo exatamente o contrário do que o resto do mundo faz na eterna busca por melhores resultados escolares - e está dando certo. O receituário finlandês inclui reduzir o número de horas de aula e limitar ao mínimo os deveres de casa e as provas escolares.

Delegações de educadores internacionais vasculham o paradoxal modelo finlandês em busca da fórmula do milagre. E ouvem, dos finlandeses, a seguinte resposta: a educação pública de alta qualidade não é resultado apenas de políticas educacionais, eles dizem, mas também de políticas sociais.

Espaço único com higiene e conforto agrada ricos e pobres
"O Estado de bem-estar social finlandês desempenha um papel crucial para o sucesso do modelo, ao garantir a todas as crianças oportunidades e condições iguais para um aprendizado gratuito e de qualidade", diz o educador Pasi Sahlberg, um dos idealizadores da reforma das políticas educativas da Finlândia nos anos 90, no livro Finnish Lessons (Lições Finlandesas, em tradução livre).

A preocupação em garantir que todos os finlandeses tenham oportunidades iguais de desenvolvimento é visível nas instalações da escola Viikki, um dos centros educacionais de ensino médio e fundamental da capital finlandesa, Helsinque. Como em todas as escolas finlandesas, ali o filho do empresário e o filho do operário estudam lado a lado.

No amplo refeitório, refeições fartas e saudáveis são servidas diariamente aos estudantes.

Serviços de atendimento médico e odontológico cuidam, gratuitamente, da saúde dos 940 alunos. Todo o material escolar é também gratuito. Equipes de pedagogos e psicólogos acompanham cuidadosamente o desenvolvimento de cada criança, identificando na primeira hora problemas como a dislexia de um aluno e fornecendo apoio imediato. Mensalidades escolares não existem.

Pasi Sahlberg destaca ainda o impacto fundamental exercido no ensino pelo modelo de igualdade e justiça social criado gradualmente pelos finlandeses a partir do pós-guerra: saúde, educação e moradia para todos, generosas licenças-paternidade para cuidar das crianças e creches altamente subsidiadas ou até gratuitas, além de uma vasta e solidária rede universal de proteção aos cidadãos.

"A desigualdade social, a pobreza infantil e ausência de serviços básicos têm um forte impacto negativo no desempenho do sistema educacional de um país", pontua Sahlberg.
A transformação

Até o fim dos anos 1960, apenas 10% dos finlandeses completavam o ensino secundário. As oportunidades eram limitadas, e o acesso, desigual: muitas famílias não tinham condições de pagar por instituições privadas de ensino, e as escolas públicas eram insuficientes.

Um diploma universitário era considerado, na época, um troféu excepcional - apenas 7% da população tinha educação superior. Em todas as faixas de aprendizado, a Finlândia era um símbolo de atraso.

Mas a História do país sempre foi marcada pela resiliência do seu povo, que só conquistou a independência em 1917 - depois de seis séculos sob o domínio do reino da Suécia e mais de cem anos como grão-ducado do Império Russo e seus cinco czares.

Na década de 70, a nação foi convocada a mudar. Uma educação pública estelar passou a ser percebida como a base fundamental para a criação de um futuro menos medíocre: desenvolver o capital humano do país tornou-se a missão primordial do Estado finlandês.

O princípio da igualdade e da inclusão social marcou o desenvolvimento nos anos 70 da nova peruskoulu, a educação obrigatória finlandesa, que abrange o ensino fundamental e médio. Em uma decisão histórica do Parlamento finlandês, todas as crianças, independentemente de background socioeconômico ou região de domicílio, passaram a ter acesso igualitário e gratuito a escolas de qualidade para cumprir os nove anos da educação básica.

O vital passo seguinte foi uma valorização sem precedentes do professor. A Finlândia lançou programas de formação de excelência para o magistério nas universidades do país, criou notáveis condições de trabalho e ampla autonomia decisória nas escolas, pagando razoavelmente bem seus professores. E a carreira de professor tornou-se uma das preferidas entre os jovens finlandeses - à frente de profissões da Medicina, do Direito e da Arquitetura.

Verba pública que bancou candidatura cenográfica de Lula não foi devolvida

Até o momento, o PT já gastou em sua campanha presidencial algo como R$ 26 milhões. Dinheiro majoritariamente público. O grosso serviu para cobrir despesas da candidatura-fantasma de Lula. E o partido trata a verba do contribuinte como pasta de dente que deixou o tubo. Não cogita devolver. Incorporou as cifras à contabilidade da campanha do substituto Fernando Haddad. E espera que tudo fique por isso mesmo.

Todos no PT —do porteiro aos dirigentes— sabiam que Lula seria proibido de disputar o Planalto. O partido estava tão ciente de que a Justiça Eleitoral barraria o seu ficha-suja que enfiou na chapa um candidato-laranja: Fernando Haddad. A insistência de Lula em prolongar a polêmica sobre sua falsa candidatura teve o propósito de ludibriar o eleitor.

Sob instruções de Lula, mobilizou-se uma infantaria de advogados para esticar um processo sabidamente inviável. Por quê? A polêmica dava contornos emocionais ao caso, preparando o ambiente para a transferência de votos de Lula para Haddad. As pesquisas sinalizam que o cambalacho pode ser um sucesso.

Se nada for feito, o PT terá atingido o ápice da malandragem perfeita: retirou do bolso do eleitor o dinheiro usado para ludibriar o mesmo eleitor. É como se a verba pública, nas mãos do petismo, fosse dinheiro gratuito.

E não é facultativo?

Voto é da inteligência, é da lucidez, é da consciência política, é da responsabilidade pública
 Alvaro Dias, presidenciável pelo Podemos

A internet é nossa garantia de liberdade

O ambiente das redes sociais anda tóxico. Mais especificamente, o ambiente do Facebook e do WhatsApp, onde transcorre o grosso do tiroteio político. Odeio a ideia de safe spaces, lugares seguros, mas, diante do ambiente polarizado dessas eleições, tenho cada vez mais vontade de me fechar em grupos que discutem livros, gatos e aquarismo, onde as pessoas (ainda) se tratam com civilidade e gentileza.


O último fim de semana foi particularmente agressivo, numa amostra do que deve vir por aí. A vítima da vez foi o grupo “Mulheres unidas contra Bolsonaro”, que contava com mais de 2 milhões de inscritas quando foi hackeado: a imagem de abertura foi trocada, o título foi mudado para “Mulheres com Bolsonaro” e algumas das suas administradoras sofreram ameaças.

Na noite de sábado, o próprio Facebook tirou a página do ar enquanto tentava estabelecer um mínimo de ordem. No domingo a página voltou, mas foi hackeada mais uma vez.

Quem não entende o que está em jogo faz pouco caso do incidente.

“Gente, vcs ficam com esse lance de grupo no face, se incomodando com essas bobagens enquanto Gilmar Mendes solta vários políticos??? Isso de grupo a gente decide na urna... Nossa, com certeza isso só faz esquecer um mal bem maior!!!!”, escreveu uma das pessoas que comentaram o assunto na minha página, refletindo um sentimento comum.

Um grupo de Facebook, afinal, é só um grupo de Facebook: um coletivo de ativistas de sofá, exercendo o seu jus sperneandi. Ou não?

Na verdade, não. Um grupo de Facebook é um coletivo virtual — mas é, acima de tudo, um grupo de pessoas de carne e osso reunidas em torno de uma ideia ou de um interesse comum. Se não estiverem infringindo a lei ou as normas de conduta da rede, espaços de reunião devem ser preservados; quem não concorda com o que se conversa ali tem todo o direito de se retirar e de fazer o seu próprio grupo.

“Mulheres unidas contra Bolsonaro” trouxe uma novidade em termos de grupo político: é suprapartidário e reúne eleitoras de diferentes candidatos, em torno apenas do que já sabem que não querem, de uma proposta de Brasil que preferem evitar.

É bastante impressionante que o grupo tenha reunido, até a noite de segunda-feira, mais de 2,5 milhões de mulheres — mas, ainda que fossem 25, ou 250, ele deveria ser respeitado da mesma maneira.

A internet é a ferramenta mais poderosa de que um cidadão dispõe contra o sistema — contra partidos políticos, contra a burocracia, contra a opressão do Estado. Graças à internet foi possível, por exemplo, fazer a lei da ficha limpa.

Ela é um baluarte da cidadania, a nossa garantia de liberdade. Derrubar essa ágora, essa praça pública, é atentar contra os cidadãos e contra a democracia.

Era de se esperar que todos os candidatos tivessem vindo a público denunciar o ataque — mas, que eu tenha visto, apenas Marina se manifestou. Era de se esperar, sobretudo, que a campanha de Bolsonaro tivesse repudiado a ação e se distanciado dela.

O que se viu, porém, foi o contrário: o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o general Mourão atacaram o grupo com notícias falsas.

Assim provaram, os dois, que “Mulheres unidas contra Bolsonaro” tem sólidos motivos para existir.