quarta-feira, 26 de maio de 2021

A eleição do estômago

A eleição de 2018 se resolveu com o fígado. A de 2022, ao que tudo indica, será decidida pelo estômago. A realidade da fome ou da insegurança alimentar de milhões de brasileiros está posta à mesa do debate político. Isso explica mais que tudo a dianteira alcançada por Lula nas intenções de votos. E pode determinar o rumo do desgoverno de Jair Bolsonaro daqui por diante.

Paulo Guedes continua encenando o papel de um ministro liberal num governo que já não faz questão de disfarçar seu verdadeiro caráter: negacionista na gestão da pandemia, reacionário nos costumes, autoritário na política, populista e fisiológico no trato da coisa pública e alheio a pautas que dizem respeito à inserção do país na agenda econômica e geopolítica do século 21.

O ministro já entendeu que é a eleição a única coisa que interessa a Bolsonaro, e que terá de fazer o jogo se quiser continuar onde está. Diante da cada vez mais delicada situação eleitoral do chefe e da inflação galopante de alimentos, que só faz com que essa situação se deteriore mais, Guedes terá de se dedicar única e exclusivamente a entregar uma versão turbinada e de grande potencial de votos do Bolsa Família lulista.

A volta do auxílio emergencial não resolveu em nada a emergência social do país e ainda teve um efeito contrário do ponto de vista político. “Quem recebia R$ 600 no ano passado e agora recebe R$ 150 ou R$ 250 está com ódio de Bolsonaro”, me disse um político do Centrão.

Não só o valor é nominalmente uma fração do anterior, como tudo aumentou. A inflação do dia a dia do eleitor é muito maior que a medida pelos indicadores oficiais, sobretudo a do prato de comida. É isso, combinado à falta de vacinas (que se traduz também em falta de emprego e de perspectiva de luz no fim do túnel), que explica a draga na popularidade de Bolsonaro.


“Quem comeu lembra o que comeu.” Essa frase me foi dita não por nenhum marqueteiro ou político, mas por um parente próximo, que vive na pele os efeitos do desemprego e da carestia. É essa lembrança de um passado não distante, em que havia proteína animal no carrinho de compras, os filhos tinham acesso a crédito estudantil e existia a perspectiva de ascensão social, que explica por que Lula está sendo perdoado pelo eleitor, ainda que não esteja absolvido pela Justiça, como prega a narrativa petista.

Dirigentes do DEM receberam nesta semana o resultado de uma ampla pesquisa qualitativa que analisa o cenário de 2022 para Bolsonaro, Lula e eventuais candidatos alternativos.

Chamou a atenção quanto a decisão de não votar de jeito nenhum em Bolsonaro está consolidada: 49% a manifestam. A rejeição a Lula também é alta, na casa de 35%.

Quando a pesquisa começa a investigar as preocupações do eleitor, um fator emerge sobre todos os demais: inflação, inflação, inflação. E a força de Lula é associada diretamente ao período em que ela estava controlada. “Os políticos todos roubam, mas pelo menos no tempo do Lula…” é a frase que mais foi colhida, com suas variações.

“A inflação do estômago é o grande cabo eleitoral do Lula”, me disse uma pessoa que analisou a pesquisa. Qualquer marqueteiro consegue trabalhar isso de forma clara, basta lembrar os filmes com a comida sumindo do prato que João Santana fez em 2014 na campanha de Dilma Rousseff, que serviram para fustigar Marina Silva.

Bolsonaro é tudo de ruim, mas não é bobo e não queima cédula de papel. Vem aí a pressão máxima do presidente sobre o Posto Ipiranga para roubar do principal rival esse atributo, nem que seja preciso arrombar o que resta do cofre e implodir qualquer miragem de equilíbrio fiscal. Só por isso, aliás, o Centrão ainda está fazendo hora extra em seu barco prestes a adernar.

Ponha foco!

O foco da CPI da Covid, portanto, teria de ser um só: Jair Bolsonaro e sua tara eleitoral. Os 450 mil cadáveres são o resultado direto disso

Deus, FH, Lula e o Brasil

Corre nas altas esferas celestes uma anedota instrutiva sobre as preocupações de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e a opinião de Deus Todo-Poderoso.

Aflito com a polaridade brasileira, preocupado com o número de almas que, por causa da pandemia, estão lotando o céu e fazendo com que os anjos do purgatório façam jornadas duplas de atendimento, as Altas Esferas chegaram a pensar em ampliar o espaço de recepção do purgatório devido a essa dramática emergência.

Soube disso por meio de um amigo médium. O astral, disse-lhe uma entidade espiritual adiantada e de muita luminosidade, está muito assoberbado, precisamente pela quantidade de almas que vem recebendo. Nessa emergência, comentou que os ex-mortos brasileiros são difíceis. Dão trabalho, pois a maioria chega ao purgatório demandando tratamento privilegiado. 

- Já tivemos que intervir em discussões de caráter político — absolutamente proibidas no outro mundo — quando controvertiam que morreram por sabotagem de vacinas... Os espíritos brasileiros (que são brasileiros de espírito), prosseguiu o médium, demoram a aprender que, no outro mundo, não há disputas de poder, pois o poder do Absoluto Poder é total. E não é fascista, porque é obra da eternidade, que se fez num quando não havia tempo ou espaço.

Um dos maiores problemas das almas brasileiras é a igualdade cósmica. Elas querem manter suas hierarquias materiais nacionais, e isso torna difícil lidar com políticos, juízes, militares, empresários e policiais, bem como com os criminosos por eles mortos em algum confronto.


O médium relatou que, em muitas preleções de adaptação, anjos superiores e poderosos dissolveram manifestações de queixosos que, mesmo no outro mundo, exigiam atendimento usando o “você sabe com quem está falando?”, que não é válido no astral. Aqui, disse a alma por meio do médium, não se pode negar a regra da fila, segundo a qual quem primeiro chega, primeiro é atendido. Numa certa ocasião, tivemos que chamar o Arcanjo Gabriel e seu irmão, Rafael, ambos com estatura suficiente e prontos a usar suas espadas de lâminas de fogo para obrigar as relutantes almas brasileiras a obedecer à fila final que os levaria ao infinito glorioso do nada.

As almas nativas do Brasil querem manter suas prerrogativas sociopolíticas, e uma delas perguntou a um anjo se aqui havia um STF, ficando muito decepcionada ao descobrir que, no plano imaterial, a alma já se encontra no Supremo e já passou pelo umbral, presidido por São Pedro, em cujo gigantesco cinema astral ela vê o filme de sua vida e testemunha todos os seus pecados, devidamente conferidos pelo anjo cobrador em seu computador da velha maçã.

Um dia essas almas recusaram o maná. Queriam pizza ou feijoada. Disseram que o maná celestial não tinha gosto. Houve um novo tumulto, debelado pelos anjos exterminadores comandados por Luis Buñuel.

Foi nesse ambiente um tanto conturbado que Deus resolveu conceder a FH e Lula um encontro. Coisa raríssima, mas concedida porque o almoço que fraternalmente os reuniu tornava-os dignos de uma graça especial.

— Vou conceder a cada um de vocês, ex-presidentes desse Brasil machucado com a pandemia, que o demo vos enviou sem minha expressa permissão, uma grande graça. Perguntem o que mais os preocupa, e Eu responderei.

(Ao ouvir a pergunta, Lula cochichou a FH: “Deus é populista...”.)

— Quem vai perguntar primeiro? —retumbou o Altíssimo, criando uns dois ou três buracos negros.

Fernando Henrique sorriu e, com sua voz melodiosa, falou:

— Deus, Você, que é um ente dos mais capazes e cultos que conheço, um ser cosmopolita e civilizado, quando é que vamos liquidar a má-fé, a hipocrisia e a corrupção no Brasil?

Deus respondeu:

— Meu filho, um dia isso vai acabar. Houve avanços, nas não foi na sua administração.

Voltando-se para Lula, Deus indagou:

—E o que você, Luiz Inácio, pensa disso?

Lula foi veemente:

— Bem, Deus Todo-Poderoso, nos meus governos não houve corrupção, muito menos má-fé e hipocrisia. A herança maldita era enorme. Toda essa narrativa foi inventada por gente que queria condenar a mim, o PT e a política.

Deus ouviu, recordou o conto de Machado de Assis “A igreja do diabo”, que motivou revolucionários debates no céu e no inferno, e, olhando para os dois, respondeu:

— Fiquem tranquilos. Continuem praticando a sagrada comensalidade que une aqui no céu e elege nesse vosso mundo sofrido. Mas prestem atenção: a corrupção, a má-fé e a hipocrisia um dia vão acabar no vosso país, que será justo e democrático. Mas não será na minha administração.

Se há uma ventura na clausura

A janela e sua gelosia em um esboço de praia em suas linhas fundamentais de céu, areia e mar, desfocando e balouçando ao rumor da maresia e do vento. Um horizonte incompleto de prédios forma um skyline recortado em quadrados baixos, provinciano, aparentemente desabitado. Uma usina de gás, puro esqueleto, utilidades esquecidas que agora mais proveitosas parecem por ainda ocuparem seu espaço, além de renderem uma homenagem aos engenhos desaparecidos. O mundo é de mentiras perfazendo nas janelas.

Por que a vida exterior adquiriu uma aparência irreal, enquanto a vida interior se tornou a quadratura da realidade? Precisamos sair para atestarmos que a existência prossegue reunida em suas frações todas? A conjugação das ruas, das árvores, dos postes, das lojas: haverá algo se alterado? Podemos esperar que algum novo tipo de milagre finalmente tenha se desvencilhado da terra dos homens terríveis, para se desenhar diante dos nossos olhos atomizados? O Sol terá sofrido qualquer quebra em sua aparente trajetória expecta? E a sequência: manhã, tarde, noite – terá ela se solucionado em algum outro tipo de divisão?

Reconheceremos rosto, voz e corpo com simpatia? Será de uma futilidade nauseante ou de uma sensibilidade programada a tentativa de transformar os acontecimentos de isolamento pandêmico dos privilegiados em uma fantástica jornada? Conseguiremos, isso sim, enfim pensar nos animais de vida confinada, estes sim completamente apartados de seu habitat? Os encontros quedarão já desinteressados, ou frenéticos, naturais, impensados? Um encantamento pré-pandemia poderá ser revisitado, ou, caso não, se provará um peixe que cedo morre pela boca? Melhor do que se arraste na linha aos poucos, se um bem-querer não se reitera.

E nas esplanadas, os habitantes e os turistas que iniciam a desconfinar bradam ao mundo sua valentia desusada, recostando-se folgazãos no encosto fofo das cadeiras. Tudo vai dar certo. Nem que seja na base da arrogância. Andaremos, na medida e no sentido contrários ao imposto, seremos para já ansiosos, nessa sequência de embaraços, tossindo propositalmente para as mãos ou para os ares, caminhando ledos e fortes sem máscara, tocando indiscriminadamente, um em direção ao outro, em uma fúria, como um estranho orgulho de não ter medo. Haverá madeira ilegal, cloroquina, mísseis interceptados, Ceuta, Bielorússia, Odemira, projetos de leis debatidas sob nosso desconhecimento, alterações à nossa revelia, cuja posterior aceitação tácita por alguns será disposta como uma institucionalização do recrudescimento dos radicalismos desumanos e ilegais?

A exterioridade disposta em quadrados de janelas e varandas, em céus de quintais. Se há uma ventura na clausura… Quando estamos assim, dentro, a realidade exterior se dispõe em retalhos, peças coloridas dispersas. Teremos que as juntar para uniformizar e completar o jogo novamente? A exterioridade do corpo, esta também a ser reconstituída, a ser reconstruída, a ser vestida com o aceitável ou o atraente. E as verdades inventadas a serem confrontadas que os aproveitadores e os ditadores, inicialmente, apenas nos oferecem?
Elisa Andrade Buzzo