sábado, 9 de agosto de 2025

Pensamento do Dia

 


O fim das guerras

A concepção dialética de história tem como um de seus elementos centrais a categoria da contradição, entendida como a força motriz responsável pela jornada da civilização. Ela envolve ideias, valores e circunstâncias coletivas opostas causadoras de transformações sociais, políticas e econômicas. Sua expressão concreta é o antagonismo, o qual diz respeito à cizânia, ao conflito direto entre forças sociais assentadas em ideologias alternativas, ao choque entre grupos que possuem interesses divergentes. Confrontos entre classes, protestos, revoltas e guerras se mostram como exemplos típicos.

Em relação às guerras, sabe-se que, ao longo do tempo, elas se manifestaram de formas distintas. Na Antiguidade, reis e imperadores comandavam tropas compostas por soldados profissionais, mercenários contratados e grupos de civis. Na Idade Média, os cavaleiros – guerreiros montados, seguidores de um código de ética – apareciam como os grandes protagonistas, seguidos por fileiras de soldados a pé, mercenários e agrupamentos de camponeses. Na Modernidade, as forças armadas nacionais emergiram como os principais atores das hostilidades extensivas, travadas em inúmeras batalhas e campanhas. Já no período contemporâneo, os conflitos envolvem Estados, governos, sociedades, grupos paramilitares, exércitos privados, insurgentes e milicianos.

Um conjunto de fatores tem sido responsável pelo surgimento das guerras. Dentre eles podem ser citados a disputa pelo poder, isto é, grupos que almejam o controle do Estado ou grandes potências que visam obter a liderança de uma região ou do mundo; o interesse econômico que agrega a fruição de bens, riquezas, recursos estratégicos, a obtenção de territórios, o domínio de mercados e a aniquilação de competidores rivais; a imposição ideológica muitas vezes causadora da exterminação cultural de um grupo ou povo e as rivalidades étnicas e religiosas que podem provocar o extermínio de conjuntos populacionais.

É do conhecimento geral que as guerras têm permeado a história humana desde épocas remotas até os dias que correm. A lista delas aponta que há mais de 2.500 anos antes de Cristo até a presente data ocorreram muitas dezenas de conflagrações, além de múltiplas outras que continuam em andamento na atualidade. Dentre as mesmas emergiram as de curta duração como a das Malvinas entre Reino Unido e Argentina que durou dez semanas, as de média duração como a da Coreia do Norte contra a do Sul que se estendeu por quatro anos e as de longa duração como a dos Cem Anos entre França e Inglaterra. Apareceram também as que mais provocaram mortes tais como a Segunda Guerra Mundial com mais de setenta milhões, a dos Três Reinos na China com aproximadamente 36 milhões e a Sino-Japonesa com vinte milhões de falecidos.

Além da extensão e da letalidade, existem outros critérios classificatórios, como o desenvolvimento da conflagração, a intensidade do confronto, a abrangência do conflito, as causas do embate e as armas estratégicas utilizadas na contenda. Uma classificação amplamente aceita e utilizada é aquela baseada no critério da sucessividade, composta por cinco categorias: primeira, segunda, terceira, quarta e quinta gerações. Observa-se que as guerras de segunda e terceira gerações podem ser consideradas modernas, enquanto as de quarta e quinta são vistas como pós-modernas, segundo estudiosos do tema.


Entretanto, qualquer uma dessa guerras acarreta outros efeitos sociais negativos afora o número de óbitos, os quais tendem a perdurar por muito tempo e comprometer diversas gerações. Podem ser mencionados o deslocamento de contingentes populacionais, a fragmentação de comunidades, o aumento da violência e da criminalidade, a destruição de infraestrutura essencial, o exacerbamento da pobreza e da desigualdade social, o comprometimento educacional do povo, a violação de direitos humanos e a estigmatização e discriminação de grupos envolvidos. Agregue-se a este rol os elevadíssimos gastos financeiros das contendas. Apenas para ilustrar, estima-se que a reconstrução da Ucrânia após a conflagração com a Rússia deverá custar aproximadamente 1 trilhão de dólares.

Por sua vez, muitos indivíduos poderão ser afetados pelo denominado transtorno de estresse pós-traumático que atinge cerca de 20% do conjunto de pessoas que testemunharam ou vivenciaram um evento chocante e provocador de ferimentos e ameaças de morte. De um lado tem-se os veteranos de guerra, que sofrem com sonhos angustiantes, sentimento de culpa, dificuldades de concentração e surtos de irritabilidade. Do outro tem-se o impacto na saúde mental da população, haja vista que uma grande proporção de indivíduos desenvolve vários tipos de comportamentos que atrapalham seus atos diários tais como depressão, ansiedade e insônia.

Apesar dessas nefandas consequências deve ser lembrado que as guerras proporcionam repudiáveis vantagens ao desenvolvimento econômico. Além das obras de restauro, aparecem o estímulo à indústria de equipamentos militares e de armas que lucrou 12 bilhões de euros em 2022, a inovação tecnológica, os contratos governamentais com empresas privadas envolvedores de somas elevadas, a obtenção do controle de recursos naturais valiosos, a mobilização da força de trabalho com a redistribuição de empregos e recursos humanos e o impulso ao consumo e à produção interna devido ao possível incremento do nacionalismo.

Parece indubitável que a grande maioria das pessoas deve ser favorável à proposta do término das guerras por causa dos efeitos perversos que exibem. Entrementes, há muita gente visceralmente contra às mesmas que considera utópica a possibilidade de eliminá-las da vida em sociedade. Acreditam que é uma suposição imaginária, de natureza irrealizável e de acordo com a concepção original de utopia, isto é, a descrição de uma sociedade quimérica possuidora de peculiaridades altamente almejáveis, quase perfeita para a convivência entre pessoas, onde ocorre o desfrute da liberdade individual com respeito aos direitos dos outros, a aceitação e a valorização da diversidade e da inclusão, o império da justiça social garantidor dos recursos e serviços básicos e o predomínio da harmonia social, ou seja, o respeito, a empatia e a colaboração entre todos os membros da coletividade.

Existem outros motivos da descrença. A força do realismo pragmático induz os indivíduos focarem seus empenhos em soluções práticas e imediatas. O medo às mudanças de relevo tende a causar resistências. Aparece desconfiança aos ideais quiméricos se advindos de uma possível associação com regimes políticos totalitários. A formulação das utopias por grupos sociais específicos inclina-se a fortalecer a crença do não atendimento a todos os segmentos da sociedade. As questões utópicas podem parecer muito distantes dos problemas enfrentados no presente. A multiplicidade de utopias que falharam nas tentativas de implementação resulta em desilusão e ceticismo.

Esquecem, entretanto, que ideias utópicas podem vir a se materializar haja vista que várias delas já se concretizaram. A história registra que algumas comunidades conseguiram se estabelecer e funcionar a contento com base em valores específicos assumidos pelos seus integrantes tais como os Quakers, os Shakers e os Amish. Países escandinavos como Suécia, Noruega e Dinamarca possuem sistemas de bem-estar social robustos, altos níveis de igualdade, acesso universal à saúde e educação e proeminente qualidade de vida. Propostas como as cidades-jardim idealizadas por Ebenezer Howard no século passado, destinadas à vivência harmônica entre pessoas e natureza, influenciaram o planejamento urbano em vários recantos do planeta, promovendo a integração entre áreas rurais e urbanas, incremento de espaços verdes e aparecimento de comunidades sustentáveis. A denominada sociedade digital oferecedora de tecnologia para promover a colaboração e a inclusão está se estabelecendo de forma célere com o advento de plataformas de coadjuvação, redes sociais e iniciativas de código aberto.

É importante realçar que estas concepções não se transformaram em realidade de maneira rápida. E só se tornaram viáveis porque foram mantidas no decorrer do tempo, permaneceram vivas, se conservaram em estado de potência, persistiram acalentadas. Infere-se, portanto, que a criação e o cultivo de ideias utópicas, por si mesmas, são fundamentais para o possível advento de modificações na vida em sociedade em momentos oportunos.

Ademais, elas são dotadas de um significativo poder para instigar críticas, inspirar ações e mobilizar as pessoas com base em visões do futuro. Possuem então um elevado valor político. De fato, as abstrações imaginosas funcionam como uma fonte de esperança, motivação e incentivo às pugnas relativas a mudanças na sociedade; ajudam a feitura de questionamentos a determinadas circunstâncias evidenciando falhas e injustiças; estimulam o debate sobre valores e ética na vida comunitária; auxiliam na construção de narrativas voltadas para a construção de políticas sustentáveis e inclusivas; tendem a enriquecer o discurso político pela abertura de espaço à pluralidade de ideias.

Este valor político já foi devidamente testado. Veja-se o caso do Manifesto Comunista, de 1848, escrito por Marx e Engels. Ele inspirou uma série de revoluções na Europa conhecida como a Primavera dos Povos, exigente de direitos democráticos e reformas sociais. Levou os bolcheviques liderados por Lenin a derrubarem o governo da época e estabelecerem o regime comunista. Incitou movimentos trabalhistas nos séculos XIX e XX em várias partes do continente europeu e da América do Norte promovendo a luta por direitos trabalhistas e melhores condições de vida. Inspirou movimentos sociais e revoluções na América Latina, tal como a cubana liderada por Castro e Guevara. Influenciou países africanos e asiáticos na luta contra o colonialismo, especialmente em Angola e Vietnã.

Outras proposituras utópicas contribuíram para a ocorrência de mudanças sociais. Os instauradores da Comuna de Paris em 1871 colocaram em prática o recurso da autogestão e o respeito aos direitos dos trabalhadores os quais influenciaram movimentos socialistas e comunistas em várias partes do mundo. O socialismo de Fourier assentado nos falanstérios, coletividades autossuficientes promotoras da igualdade e harmonia social, infundiram diversas experiências comunitárias e ações cooperativas no decorrer dos últimos dois séculos. O projeto da Aldeia de Auroville em 1968 na Índia, uma espécie de comunidade internacional, é voltado para a busca da paz entre pessoas de diferentes origens e culturas. A Ecovila de Findhorn na Escócia busca a concretização de uma vida sustentável, a proteção do ambiente e o estabelecimento de relações sociais mais justas e colaborativas. O movimento feminista assentado na igualdade entre homens e mulheres está conseguindo estipular direitos reprodutivos e paridade no local de trabalho.

Dada sua elevada importância, infere-se que o pensamento utópico deve ser devidamente cultivado pelos indivíduos — tanto no âmbito da educação formal quanto da informal —, sendo possível recorrer a diversas estratégias para esse fim. A título de ilustração, podem ser mencionadas: a análise de iniciativas comunitárias bem-sucedidas, a criação de cenários futuros, a capacitação de pessoas para que se sintam aptas a promover mudanças, a formação de redes de apoio entre aqueles que compartilham visões alternativas, a realização de debates sobre questões sociais e políticas, e a reflexão crítica sobre as realidades atuais e as possibilidades de sua transformação.

Exclusive esta sugestão educacional cabe continuar a análise do tema do fim das guerras, relembrando seu caráter utópico conforme anteriormente mencionado. Porém, é preciso ir além do que foi aludido porquanto existem outras razões que alimentam esse caráter. Uma quantidade elevada de pessoas acredita que a violência é uma parte inevitável da natureza humana. O lucro proveniente da indústria bélica pode dificultar a busca por soluções pacíficas. Diferenças culturais, religiosas e ideológicas tendem a tornar desafiadora a construção de uma paz duradoura. A predominância de desigualdades e injustiças atrapalha o estabelecimento da concórdia. Rivalidades e desconfiança persistentes entre países podem perpetuar a ideia da inevitabilidade dos conflitos. A percepção de ameaças globais inclina-se a gerar uma mentalidade de defesa por meio de conflagrações.

Sem dúvida, essa intelecção quimérica, majoritária e profundamente arraigada, configura-se como um dos maiores óbices à consolidação da conciliação e à tentativa de pôr fim às guerras. Entrementes, há numerosas pessoas empenhadas em impedir e encerrar os conflitos, pois acreditam firmemente nessa possibilidade. Destaca-se, nesse contexto, o esforço dos integrantes da ONU voltado à prevenção da eclosão de confrontos bélicos. Vale ressaltar que a organização desempenhou um papel de grande relevância na contenção de certos conflitos, como na mediação da crise dos mísseis de Cuba, em 1962, entre Estados Unidos e União Soviética; na arbitragem entre as Coreias do Norte e do Sul, entre 1950 e 1953; e na atuação diante da delicada situação entre Geórgia e Rússia, em 2008. 

Também atuou de modo eficaz contra o agravamento e a escalada de prélios. Em 1965, facilitou a ocorrência de um cessar-fogo entre a Índia e o Paquistão e outro, em 1973, na guerra do Yom Kipur envolvendo egípcios, sírios e israelenses. Prevenção da escalada de tensões entre Libéria e Serra Leoa na última década do século passado. Estabilização da Libéria em 2003, após anos de guerra civil, por meio de um acordo de paz e realização de eleições democráticas. Acordo de Paz de Ouagadougou, em 2007, durante a guerra civil na Costa do Marfim. Libertação do Kuwait junto ao fim do conflito com o Iraque nos anos de 1990 e 1991. Promoção do processo de paz na guerra civil de El Salvador entre 1980 e 1992.

Pessoas comuns e não apenas os membros da ONU também podem com vislumbre de êxito, atuarem contra, evitarem o exacerbamento e a ascendência das contendas violentas. Essa tarefa tem cabido aos denominados cidadãos ativos ou civicamente engajados. São indivíduos que abandonam a rotina e o conforto da esfera privada, isto é, do trabalho e da família, para exercerem atividades no espaço público, tais como ruas, praças, meios de comunicação e redes sociais, em defesa não só de seus interesses, mas, principalmente, em benefício das coletividades local, nacional e internacional, por meio do trabalho voluntário, atos de boicote, campanhas filantrópicas e muitas outras ações mobilizadoras.

Ressalte-se que a prática da cidadania ativa encontra respaldo em distintas ideologias políticas, mesmo quando divergentes entre si. O liberalismo, embora incline-se fortemente para a democracia representativa, também a contempla no âmbito da democracia direta, por meio de instrumentos como plebiscitos, referendos, projetos de iniciativa popular e o recall de mandatos. O comunitarismo valoriza o trabalho voluntário, as campanhas de sensibilização e as ações filantrópicas em nível local. Já os defensores da democracia radical enfatizam a atuação dos movimentos sociais, voltados à promoção de transformações diversas no interior da sociedade. Por sua vez, os seguidores do marxismo tendem a favorecer a democracia participativa como meio de controle popular sobre os governantes e como estratégia para a instauração do socialismo.

Dentre os recursos disponíveis aos cidadãos ativos destacam-se os movimentos sociais, ou seja, as ações conjuntas sustentadas por grupos organizados da sociedade que pugnam por diversas causas tais como a paridade entre homens e mulheres, a defesa do meio ambiente e o direito à terra. Esses expressivos e longevos movimentos que emergem em resposta a insatisfações e demandas de grupos existentes na coletividade mais ampla podem apresentar uma organização formal ou espontânea, serem dotados de estruturas hierárquicas ou descentralizadas, perdurarem ou se desfazerem no decorrer do tempo. Entretanto, os mesmos se revelam como expedientes poderosos de mudança e de resistência.

Uma enorme quantidade de movimentos sociais já se manifestou no passado e continua ocorrendo no presente em todas as partes do mundo. Na atualidade, existem alguns que se revelam como os mais importantes e persistentes. O Black Lives Matter, nos Estados Unidos que luta contra a violência e o racismo sistêmico enfrentados por pessoas negras tem estimulado protestos em inúmeras nações. O LGBTQIA+ busca direitos iguais e aceitação para indivíduos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero. O Fridays For Future, mantêm o foco na pugna das mudanças climáticas. Organizações de povos originários lutam contra a exploração de suas terras e buscam maior reconhecimento e respeito por suas tradições. Grupos antifascistas agem em resposta ao aumento da extrema direita com suas rejeitáveis ideologias.

Muitos movimentos sociais se mostraram exitosos, pois alcançaram os objetivos pretendidos. O favorável aos direitos civis nos Estados Unidos na década de cinquenta do século passado, liderados por Luther King e Rosa Parks, foi contra a segregação racial e culminou na aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei de Direito ao Voto, que garantiram direitos iguais para todos os cidadãos estadunidenses. A partir do início do século XX, grupos feministas foram conseguindo relevantes conquistas como o direito ao voto, o acesso à educação e ao mercado de trabalho e a diminuição das diferenças salariais com os homens, inclusive em países desfavoráveis às mulheres, como a Arábia Saudita onde elas estão cada vez mais presentes nos setores da educação, saúde, finanças, diplomacia e forças armadas. Agrupamentos combatentes da corrupção no Brasil contribuíram significativamente para a emergência da Operação Lava Jato a qual trouxe à tona escândalos de deperecimento que afetavam a política e a economia do país e a mobilização da sociedade civil bem como a pressão popular resultaram em mudanças na legislação sobre ela.

Especificamente em relação às guerras sabe-se que vários deles apresentaram efetividade. Alguns frearam o possível surgimento delas. A mobilização Anti-Apartheid na África do Sul, assentada na resistência pacífica e na desobediência civil, liderada por Mandela e Tutu ajudaram bastante a acabar com o apartheid sem uma guerra civil em larga escala. As manifestações pacifistas na Europa durante os anos sessenta e setenta do século passado, lapso da guerra fria, contra a proliferação nuclear e a militarização contribuíram muito para evitar um conflito nuclear. O Movimento de Independência da Índia na década de 1940, sob o comando de Gandhi e pautado na bandeira da não-violência contra o colonialismo britânico impediu a emergência de um confronto armado de elevada proporção.

Outros impediram o andamento e favoreceram o desenlace delas. Nos estados Unidos, a oposição à Guerra do Vietnã cresceu significativamente na década de 1960 e início de 1970. Agregados de ativistas, estudantes, veteranos de guerra e cidadãos comuns realizaram protestos em massa, marchas e outras ações em diversas cidades envolvendo milhares de pessoas. A constante divulgação de informações sobre os bombardeios, as mortes de civis e os demais horrores da conflagração contribuiu bastante para a formação de uma opinião pública contrária à intervenção militar. Por sua vez o aumento da pressão levou a uma mudança na postura de políticos e militares que resolveram reduzir o número de soldados em combate e, posteriormente, tomaram a decisão de proclamar seu término.

A Guerra de Kosovo em fins da década de noventa colocou em ação organizações não governamentais e grupos de direitos humanos que mobilizaram a opinião pública mundial. Denunciaram a violação de direitos humanos e a limpeza étnica, as quais foram decisivas na geração de pressões sobre governos e organismos internacionais. Outras manifestações como o apoio humanitário favorável à promoção da paz, a realização de fóruns e conferências buscadores de soluções diplomáticas, as propostas de reconciliação entre as comunidades sérvias e albanesas e as exigências de justiça para as vítimas de crimes de guerra se integraram às anteriores e acorreram o desfecho do conflito.

Outrossim, existem aqueles que caminham de forma paralela em apoio e revigoramento às exteriorizações contra a guerra. As vultosas e persistentes mobilizações benfazejas ao desarmamento merecem ser citadas. O Control Arms Coalition, uma liga global sediada nos Estados Unidos, inclui múltiplas organizações da sociedade civil e trabalha para propiciar o controle de armas em nível internacional. A Ceasfire Campaign, do Reino Unido, busca ativar a opinião pública e influenciar políticas para reduzir a prática da violência com armas visando garantir a segurança comunitária. Precisam ser mencionadas também os favoráveis à paz. Na Síria, grupos de ativistas tentam promover soluções pacíficas e diálogos intercomunitários, buscando evitar uma escalada do conflito e facilitar a reconciliação. A Liga Internacional de Mulheres Pela Paz e liberdade persiste lutando por liberdades políticas, econômicas e sociais, direitos das mulheres, justiça racial e supressão das armas no mundo.

Observe-se que a real possibilidade do encerramento das guerras traz consigo o factível ocaso das forças armadas. A esse respeito vale recordar que há alguns séculos elas começaram a surgir junto com o aparecimento dos estados nacionais com a finalidade essencial de defendê-los pelo uso da violência. Com o passar do tempo e por causa do irrefreável processo de civilização, se sujeitaram e continuam se sujeitando à uma série de mudanças a partir de sua configuração original. No momento estão enfrentando o curso de um salto qualitativo rumo a uma organização agregada, isto é composta por humanos e robôs. Em seguida deverão encarar outro salto qualitativo que as transformarão em uma legião de androides de aparência humana movidos pela inteligência artificial. A manifestação dos confrontos circunscritos aos batalhões de autômatos poderá favorecer o surgimento de uma gigantesca falange de cidadãos ativos firmemente comprometidos com a efetiva e ininterrupta situação de paz em todos os recantos do planeta.

Ademais, cabe acrescentar que este segundo salto qualitativo tende a se revelar como o último momento da guerra cinética tal como vem se manifestando. Veja-se que as operações psicológicas, eletrônicas, cibernéticas e econômicas se encontram em andamento. Entretanto, uma outra forma de conflagração poderá aparecer, qual seja, a realizada no metaverso, isto é, o universo pós-realidade, o ambiente multiusuário perpétuo e persistente que funde o mundo físico com a simulação digital, a convergência das dimensões concreta e virtual. Com efeito, se a tecnologia continuar sua pujante trajetória atual e as pessoas viverem muito tempo de suas vidas no metaverso as pugnas poderão se estender para ele envolvendo as operações mencionadas como um sexto e talvez o derradeiro domínio, pois o primeiro foi a terra, o segundo a água, o terceiro o ar, o quarto o espaço e o quinto o ciberespaço.
Antônio Carlos Will Ludwig

Colapso no futuro

Eles navegam em sua distância intermediária de órbita terrestre baixa, sua visão a meio mastro. Pensam: talvez seja difícil ser humano, e talvez seja esse o problema. Talvez seja difícil fazer a transição entre pensar que seu planeta está seguro no centro de tudo e saber que ele é, na verdade, um planeta de tamanho e massa mais ou menos normais, girando ao redor de uma estrela mediana num sistema solar em que tudo é mediano numa galáxia de tantos outros, incontáveis, e a coisa toda vai explodir ou colapsar.

Samantha Harvey, "Orbital"

O parvo, o pavão e o ocaso da teoria política

Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos
Nelson Rodrigues

Dizem que na Suprema Corte norte-americana, na qual os juízes são vitalícios, existe uma regra pela qual se um membro muito idoso começa a dar sinais de que está perdendo sua capacidade de julgar, cabe ao segundo membro mais velho avisá-lo que é hora de se aposentar. Mesmo no âmbito do senso comum, se alguém comete algum desvario, alguém por perto pode alertá-lo, repreendê-lo ou, de alguma forma, avisá-lo de que sua atitude ou comportamento não é aceitável.

Entretanto, quando o alucinado inadequado é um Presidente da República parece que não existe esta prática saudável. Qualquer um em um posto de saúde, diante de alguém que entrasse tentando impedir a aplicação de uma vacina, ou pregando os poderes salvadores de um remédio inadequado, o desmentiria de pronto e, se fosse um ser agressivo e claramente parvo, poderia, inclusive chamar um segurança. No entanto, quando um certo presidente miliciano fez exatamente isso, insistentemente, no quadro de uma pandemia mortal, apesar das reações de gente da ciência, do jornalismo mais ou menos sério e do bom senso, parecia que, pelo cargo, devia-se à figura maligna uma espécie de respeito ao direito de dizer e fazer besteiras.

O atual presidente dos EUA especializou-se em dizer e fazer sandices. Vestiu-se com as vestes da rainha louca de Alice e começou a taxar a tudo e a todos, sem disfarçar a falta total de sentido das medidas, jogando taxas de 50%, 100%, baixando para 10% ao sabor do acaso. Indagado por uma repórter sobre qual a fórmula usada para chegar a esta ou aquela taxa, o presidente pavão começa por dizer que não há uma fórmula matemática, mas uma medida baseada no bom senso. O mesmo bom senso que taxou uma ilha onde só tem pinguins, grandes economias aliadas, países pobres, como ameça a países beligerantes ou retalização política a regimes considerados hostis.

Um reporter norte-americano nos explicou que a base para a tal teoria de que o problema dos EUA seria o déficit nas transações comerciais com o mundo viria de um senhor chamado Peter Navarro, encontrado pelo coordenador da campanha de Trump numa busca sobre autores de teoria econômica no site da Amazon. Diante da precária sustentação dos argumentos principais da teoria do déficit pelo autor, surge com frequência a citação a um certo Ron Vera, o qual, como se veio a descobrir, não existe. Trata-se apenas de um alter ego de Peter Navarro, que ele diz ter criado simplesmente como “um recurso estilistico”.

Vejam só, uma professora que corrigisse um trabalho escolar que lançasse mão de um tal recurso criativo teria riscado a folha com caneta vermelha e alertado o estudante de que aquilo não se deve fazer. Em qualquer uma de nossas tão atacadas universidades, qualquer orientador teria advertido o senhor Peter Navarro que isto não seria aceito, e caso chagasse à banca esse senhor teria sido reprovado. Do mesmo modo, qualquer editora séria que fosse informada de tal recurso criativo teria recusado a publicação. No entando, não apenas esse farsante embasa uma teoria sem fundamento que sutenta uma política insana, como se tornou Conselheiro Senior para o Comércio e Manufatura da maior economia do mundo.

Diante desse quadro, temos que rever alguns conceitos caros à teoria política. Devemos acrescentar à definição weberiana de Estado, como monopólio do uso legítimo da força em um determinado território, que seu mandatário tem o monopólio do uso legitimo de sandices. John Locke, Montesquieu, Rousseau, cada um ao seu modo, na origem do mundo burguês em luta contra o Absolutismo, buscavam maneiras pelas quais o poder do Estado não se impusesse aos indivíduos e à sociedade, fosse pelas leis, pela divisão de poderes, por um sistema de pesos e contrapesos, ou ainda pela mítica “soberania popular”. Bom, parece que na fase burlesca da decadência do mundo burguês nenhuma engenharia política consegue evitar que um desqualificado aventureiro assuma o comando de uma nação. Não estamos falando de casos isolados: Trump nos EUA; Bozo no Brasil; um comediante na Ucrânia; o burlesco Berlusconi na Itália; um Milei na Argentina; Erdogan na Turquia.

Vejam, não se trata apenas da constatação folclórica de que o bobo da corte governa; acredito mesmo que as vestes do palhaço sirvam mais à farsa do Estado do que os ternos sérios dos burocratas. Não tem nada de engraçado nesses miseráveis, eles são a expressão pura do mal, da perversidade, da violência e da ignorância. Governam nações e seus arsenais atômicos, produzem guerras e milhares de mortes, praticam genocídios, riem na cara da pobreza, da miséria, da fome, enquanto destroem o planeta. A plateia aplaude e pede bis.

O mais insano é que a sociedade e seus membros civilizados, que reconhecem o caráter bizarro dos governantes, aceitam como normal e legítimo o uso do cargo por um insano perverso. Trata-se os parvos e pavões em posse de mandato com respeito, suas medidas são discutidas como se nelas houvesse alguma lógica, negocia-se com eles, buscando a adequação às chamadas novas condições do mercado como se nada de anormal estivesse acontecendo. Alice assustada segura sua xícara de chá vazia, entre a lebre louca e o chapeleiro maluco, e se propõe a negociar.

Maquiavel inaugurou a teoria política moderna afirmando que não seria possível compreender a moral do príncipe como a moral do cidadão — deste último se espera que não minta ou mate, mas o príncipe não só pode como deve saber usar da mentira e da violência a serviço da preservação do poder. Aqui, também, devemos atualizar as bases da teoria política. Aos mandatários do poder político do Estado são permitidos sandices e desvarios que não se espera ver no povo e nos cidadãos.

Parece que a sociedade capitalista em sua fase terminal e decadente vai encontrando sua forma política adequada.

Um museu de grandes novidades: Onda da extrema-direita continua

A ascensão da extrema-direita no Brasil é um fenômeno que se insere em um contexto global de polarização política, evocando paralelos históricos e preocupações quanto à estabilidade democrática. A extrema-direita no Brasil supera o carisma individual de sua maior liderança, Jair Bolsonaro, mesmo com sua inelegibilidade e várias investigações criminais, as ideias e valores que mobilizou permanecem vivos. A atual transição do campo conservador está esmagando o que havia da direita centrista, radicalizando esses grupos e jogando-os para o espectro mais agudo do reacionarismo. Essa onda do chamado neofascismo fez emergir novas lideranças e novas formas de abordagem política, ampliando sua base de apoio e garantindo sua continuidade por ainda bastante tempo.

O enfraquecimento de Bolsonaro não implica o fim desse novo ciclo da extrema-direita. A figura do ex-presidente, antes central, hoje convive com um movimento fragmentado que se reorganiza em torno de agendas comuns, surfando sempre na insatisfação popular difusa, que antes era canalizada pela figura do ex-presidente, agora se pulveriza, permitindo a emergência de líderes regionais e setoriais. Nomes como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e Nikolas Ferreira ilustram a diversidade dentro da direita.


Tarcísio, com um discurso mais tecnocrático, tenta angariar credibilidade institucional e midiática; Caiado investe em pautas conservadoras ligadas principalmente ao agronegócio; e Nikolas, que tenta encarnar um moralismo radical, difundido em redes sociais, tornando-se popular em parcela importante da juventude. Essas e outras lideranças ampliam a gama de apelos ideológicos, mantendo coeso o núcleo conservador.

As redes sociais continuam sendo o principal veículo de mobilização da extrema-direita no país. Narrativas simplistas e emocionais, reforçadas por algoritmos e notícias sabidamente falsas, criam bolhas ideológicas antagônicas ao debate racional e avessas aos fatos reais. Segundo dados do Relatório de Digital News Report (2023), 62% dos brasileiros acessam notícias principalmente por redes sociais, o que facilita a disseminação de desinformação, essa dinâmica amplia a polarização e dificulta o diálogo, permitindo que a extrema-direita se fortaleça mesmo sem um líder centralizado.

Os traços culturais dos brasileiros, como autoritarismo, nacionalismo e conservadorismo, são alicerces históricos sobre os quais a extrema-direita constrói seu discurso e unifica sua base. Esses valores, consolidados ao longo de séculos, preparam o terreno para a aceitação de soluções políticas simplistas e autoritárias, presente desde a colonização e reforçado pela ditadura militar, o autoritarismo alimenta a crença de que lideranças fortes e centralizadoras enfrentam melhor as crises. O nacionalismo, por sua vez, cria um senso de pertencimento e um furor ufanista exacerbado, contrapondo os destinos da nação aos supostos inimigos da pátria, sejam esses internos ou externos.

O discurso autoritário encontra legitimação em uma memória coletiva falsa que aponta para governos antidemocráticos como solução de todos os problemas. A busca por respostas imediatas a problemas complexos, somada a um crescente moralismo conservador, revitalizado e turbinado principalmente no centro das igrejas evangélicas brasileiras, que valorizam um suposto modelo de família tradicional e combatem pautas progressistas, reforça a ideia de uma ordem social natural, respaldando a manutenção do abismo social. Outro aspecto importante é o discurso que justifica ações anti-institucionais em nome de um pragmatismo supostamente necessário, essa lógica corrói o respeito às instituições e legitima comportamentos contrários ao Estado Democrático de Direito. Esse simplismo político faz ressoar soluções autoritárias na sociedade brasileira, predisposta historicamente a aceitar retóricas salvacionistas.

A força da extrema-direita brasileira não está isolada, integra um cenário mundial de fragmentação política, instabilidade econômica e desconfiança nas elites tradicionais, nesse sentido, o passado oferece ensinamentos valiosos. A ascensão do fascismo na Europa dos anos 1930 ocorreu em meio a crises econômicas, descontentamento popular, uso intenso de propaganda política, supressão de liberdades civis e perseguição a minorias. Tais condições, resultantes em parte do colapso econômico pós-1929, ecoam na atual conjuntura mundial. A retórica do inimigo interno, o apelo à segurança e a hostilidade às diferenças encontram ecos no presente. O alerta histórico torna-se, assim, ainda mais urgente.

O encorajamento à violência, o desrespeito às decisões judiciais e o estímulo à polarização extrema tencionam a democracia brasileira e mundial. Assim como no passado, discursos autoritários podem resultar na erosão de liberdades civis e na fragilização das instituições, criando um ambiente propício ao surgimento de regimes autoritários. Como uma das maiores democracias do mundo, o Brasil exerce influência além de suas fronteiras, a forma como o país lida com o avanço da extrema-direita interessa à comunidade internacional, seja para reforçar valores democráticos, seja para evitar o contágio autoritário.

Enquanto a extrema-direita se consolida, a esquerda enfrenta dificuldades. A falta de renovação de lideranças, a incapacidade de dialogar com demandas concretas como segurança e emprego, e a ausência de inclusão mais ampla de temas emergentes enfraquecem sua capacidade de conter a maré ultraconservadora. Mesmo com a relevância da figura política do presidente Lula, a esquerda carece de novas lideranças capazes de dialogar com as periferias, interior do país, além dos jovens e os trabalhadores precarizados. A sucessão não pode depender de uma única figura carismática. Para se contrapor à extrema-direita, a esquerda precisa articular suas pautas e sua comunicação com soluções para a vida cotidiana. Um projeto que una igualdade, segurança, oportunidades e respeito à diversidade pode recuperar apoio popular, tornando-se um antídoto contra o autoritarismo.

Além dos partidos, outras esferas da sociedade precisam se mobilizar. Mídias independentes, ONGs, movimentos sociais, universidades, igrejas progressistas, sindicatos e instituições como o Judiciário e o Ministério Público, além dos democratas em geral, sejam esses centristas ou os que ainda restam na direita, todos desempenham um papel-chave no fortalecimento da democracia. A tarefa fundamental será fiscalizar o poder, promover debates qualificados, garantir direitos fundamentais e construir pontes entre atores diversos, esses setores formam uma barreira contra o avanço do autoritarismo.

O Brasil encontra-se em um momento decisivo, a ascensão da extrema-direita, alimentada por valores culturais enraizados e pela tensão global, ameaça a democracia. O paralelo com os anos 30 do século passado destaca o perigo real de retrocessos institucionais e a necessidade de uma mobilização ampla e contínua para além da esquerda. Aprendendo bastante com os erros dos estadunidenses, que trouxeram de volta ao comando do seu país, um autocrata com viés fascista, que ao retornar ao poder veio ainda mais truculento e avalizado abertamente pela plutocracia local, esperemos que o Brasil fique distante desse exemplo.

O fortalecimento das instituições, o engajamento da sociedade civil, a ação de lideranças comprometidas com o diálogo e a manutenção de uma frente ampla nos diversos setores da sociedade são fundamentais para evitar a deterioração democrática. Cabe ao país decidir se abraçará soluções autoritárias e simplistas ou se, ao contrário, reforçará os alicerces de uma democracia inclusiva, plural e resiliente. Essa questão começará a ser respondida no próximo pleito eleitoral nacional.

O brasileiro de fabricação ideológica

Não basta nascer no Brasil para ser brasileiro. Aos poucos, vamos sendo outra coisa que ainda não sabemos o que exatamente é. Cada vez mais, muitos nascidos no Brasil gostariam de ter nascido em outro país. As demonstrações nesse sentido avolumam-se. Agora mesmo, nas manifestações direitistas e antipatrióticas na avenida Paulista, em favor de réus de crimes políticos contra o Brasil, muita gente abraçada à bandeira americana, a aplaudir Trump, o presidente americano que nos vê como fundo de seu quintal.

Já não somos um país verde e amarelo, apenas amarelo, com a camisa da seleção brasileira, bolsonarizada. A esfera azul é hoje uma bola de futebol. Torcemos pelo time, mas não pela pátria. Um traidor da pátria anexou-se ao quintal da Casa Branca e conspira contra a economia brasileira e contra as instituições brasileiras.


O condomínio familiar de poder que se instalou mais no Palácio da Alvorada do que no Palácio do Planalto, em governo anterior, que mais morou e mais desgovernou do que outra coisa, conspira contra o que somos. Contra aquilo que nos tornamos à custa de privações e de determinação, de vontade de vencer. O capitalismo brasileiro do nacional-desenvolvimentismo derrubado pelo golpe de Estado de 1964.

Desde que, em 1942, o imaginativo Walt Disney, depois de uma vinda ao Brasil, inventou o brasileiro ideológico, tendo como parceiro o Pato Donald, o depressivo personagem da família do Tio Patinhas, um brasileiro criado na prancheta começou a nascer. Para nos anexar nos marcos ideológicos da geopolítica que estava sendo gestada durante a Segunda Guerra Mundial, a de nova concepção de colônia e de sujeição política.

Dei-me conta disso nestes dias difíceis. Interesso-me há anos pelo familismo anômalo do milionário infértil da mítica moedinha número 1, quando publiquei num jornal de Porto Alegre “Tio Patinhas no centro do universo”. Um texto para compreender o capitalismo inacabado e inacabável da periferia do planeta. Escrito numa tarde chuvosa de sábado, correu mundo.

Trata de seres imaginários. Todos ligados por parentesco suposto e não real, seres castrados. Vinculam-se como tios e primos. Nenhum é pai ou mãe. Uma família de agregados pelo afã de dinheiro, que nunca logram obtê-lo. Num mundo em que só o trabalho cria, não trabalham. Fazem de conta.

De certo modo, nasce um modelo da nova classe média, a do consumo, já longe da classe trabalhadora que lutou pela ascensão social como justa recompensa pelo trabalho. Aquela concebida por um dos grandes empresários brasileiros, industrial, agrícola e financeiro, Antônio da Silva Prado, um pai da abolição da escravatura em 1888.

Nesse mesmo ano, no Senado do Império, fez um discurso emblemático em favor do trabalho livre. No lugar do negro caçado a laço e escravizado, o do tráfico negreiro, o imigrante do trabalho livre disposto a vir para o Brasil pela possibilidade de se tornar proprietário de sua própria terra e dono de seu próprio trabalho.

E explicava o imigrante: “Se o colono for morigerado, sóbrio e laborioso, fará pecúlio e se tornará dono de terra”.

Nessa síntese, a ética do trabalho do que deveria ser o fundamento de um capitalismo brasileiro. Não há capitalismo sem técnicas de inclusão social de quem trabalha. Não há capitalismo com exclusão social e desemprego.

John Maynard Keynes, professor em Cambridge, teorizou sobre isso em sua teoria do emprego e renda que daria origem ao Estado do bem-estar social, integrativo.

Vivi e testemunhei alguns dos benefícios dessa concepção de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social quando fui pesquisador visitante e professor da Universidade de Cambridge. Margaret Thatcher tentou acabar com isso. A nova direita estava nascendo. Chegaria aqui, a de um capitalismo do qualquer um que só quer ganhar e não quer distribuir.

O neoliberalismo econômico criou o fascismo bolsonarista e deu-lhe a cara da dupla ideológica Zé Carioca e Pato Donald. O pato da dupla é um pato mesmo, um parvo, e o carioca é um malandro que ensina o tolo Donald a tomar cachaça.

É o que querem nos tornar como gente de segunda classe da era Trump. Bajuladores, brasileiros de faz de conta e pseudo-americanos de coisa nenhuma, tirados de casa repentinamente e despachados de volta para o Brasil todas as semanas, em aviões lotados. Brasileiros fora do lugar, sobras demográficas. Excesso de contingente.

O Estado americano não gosta de nós. Fomos amansados. Gostamos da subalternidade. Temos um lambe-botas nos fundos da Casa Branca.

Não é estranho, portanto, que haja quem vá à rua para aplaudir e bajular atos antibrasileiros de Trump contra nossa economia e nossas instituições democráticas.

Ascensão e queda dos Estados Unidos

Arnold Toynbee, em “A Study of History”, diz que as civilizações surgem através das “Elites Criativas”, que formatam o projeto de uma nação, que se dissolve à frente quando perdem a capacidade de adaptação às novas circunstâncias que se vão apresentando.

Roma nasce em 753 aC, segundo os valores da “virtude” romana, da força, da dignidade, da austeridade, e da perseverança. A República é constituída em 509 aC, com o Império a partir de 27 aC. Roma desvirtua-se na sucessão dos Césares. A partir de 180 dC, Roma se deteriora, caindo em 476 dC. Edward Gibbons, em “The History of the Decline and Fall of the Roman Empire”, diz que a pergunta não é por que Roma caiu, mas por que demorou tanto a cair. Caiu pelas Guerras Civis e a deterioração das finanças para se manter as províncias. Demorou a cair porque não havia um Império suficientemente grande em suas proximidades que o confrontasse. O Cristianismo substituiu a cultura romana, ajudando a sua dissolução. A Europa entra na Idade Média, enquanto o Império Romano do Oriente em Constantinopla, a Pérsia e a China prosperam.


Os Estados Unidos nasceram da Revolução Americana, de 1775 a 1783. Os “Pais da Nação” fundaram o país dentro dos princípios das teorias liberais de Adam Smith e outros, da liberdade que gera o consenso, e do mercado que gera a prosperidade. A partir de 1880, os Estados Unidos tornaram-se superavitários na balança de pagamentos, predominantemente negativa a partir de 2010. Durante a Segunda Guerra Mundial, o PIB dos Estados Unidos aumentou +69%; Inglaterra +15%; França -49%; Alemanha -19%; Itália -39; Japão -22%. Em 1960, o PIB dos Estados Unidos representava 40% do PIB mundial, caindo para 26% em 2024; China hoje com 17%; União Europeia 17%; países do BRICS somando 29%. Adicionalmente, os dados do World Inequality Report mostram que as classes médias têm sido comprimidas desde 1980, possibilitando o surgimento de líderes radicais de direita, na deterioração social, e no arrobo das decisões. Hoje, os Estados Unidos vão contra os fundamentos da nação, da liberdade política e da economia de mercado. que fizeram o país crescer. Decai a grande nação.

O declínio das civilizações e grandes nações é geralmente acompanhado por guerras. Como diz Maquiavel, “o homem chora mais a perda de seu patrimônio do que a morte de seu pai”. No caso do “Império Britânico”, a Inglaterra perde importantes colônias a partir de 1850; Canadá em 1867; Austrália em 1901; Nova Zelândia em 1907; África do Sul em 1910. Devido ao crescimento e expansão da Alemanha e do Império Austro-Húngaro no início dos anos de 1900, a Inglaterra e a França impõem tarifas sobre os seus produtos. A Primeira Guerra Mundial eclode em 1914 em Sarajevo. Em 1917, o Tratado de Versailles impõe multas à Alemanha que chegam a 80% de seu PIB, com a emissão de papel moeda pela Alemanha em 1922 e geração da hiperinflação. Segue-se o crescimento do Partido Nazista e a Segunda Guerra Mundial.

O problema é que hoje temos a bomba atômica.