sábado, 7 de abril de 2018

Todos soltos, então?

No Brasil, a prisão sempre se deu em segunda instância. Desde o Código de Processo Penal de 1941. Por uma razão técnica. É que o recurso nas decisões em primeira instância, apelação, tem efeitos devolutivo (fazendo com que o assunto seja rediscutido por tribunal) e suspensivo (a decisão não produz efeitos, até decisão de tribunal). Enquanto os recursos subsequentes, especial e extraordinário, contra decisão já desse tribunal, apenas têm efeito devolutivo. Determinando seja o caso reexaminado por Tribunais Superiores, STJ e Supremo. Sem poder rediscutir provas por conta das Súmulas 279 (do Supremo) e 7 (do STJ). E sem suspensão da decisão do tribunal anterior, que deve ser executada.

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Mesmo depois da Constituição de 1988 (art. 5º, LVII), continuou sendo assim. Suspensa num brevíssimo interlúdio (2009, em pleno Mensalão, quando gente graúda passou a ser condenada), no julgamento do HC 84.048, voltou a ocorrer (em 2016) com o julgamento do HC 126.292. A tese, de resto, é compatível com o princípio da Presunção de Inocência. Nenhum tratado internacional (ou sua jurisprudência) indica ser necessário mais que segunda instância para início do cumprimento de pena. Assim está, por exemplo, nas regras da Convenção Americana de Direitos Humanos, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Sem contar que, nas democracias maduras, condenados começam a cumprir suas penas em decisões já de primeira instância. Como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, Espanha. E ninguém, por lá, jamais considerou isso ilegal ou antidemocrático.

Temos 726.712 presos, no país. Mais de metade, sem sentença definitiva no Supremo. Queremos que vão todos para as ruas? É isso? Com prisão provisória são (cerca de) 240 mil. E com mandatos de prisão por cumprir, (cerca de) 500 mil. Para ser coerente, quem pensa diferente deve pleitear que ninguém mais seja preso. Nenhum deles. Posto não ter sentido prender se são inocentes, como proclamam. Ao menos até pronunciamento do Supremo. O Ministro Levandoski soltou, dias atrás, o traficante Galo. Já condenado, pelo Tribunal de São Paulo, a 60 anos de prisão. Fez isso para se proteger do voto que daria na tarde de anteontem. Só no Supremo há, hoje, 5.036 Habeas Corpus pendentes de julgamento. Se o tribunal tivesse dado o que Lula lhe pediu, beneficiaria todos os outros, inclusive estupradores, traficantes, milicianos, pedófilos, corruptores e corruptos. Todos seriam soltos, ou deveriam ser.

O bom senso prevaleceu. Só se espera que não seja por pouco tempo.

José Paulo Cavalcanti Filho

Imagem do Dia

❝ Bondhusdalen - Un lago de aguas cristalinas alimentadas por glaciares, Noruega por Florian Boepple ❞ ↪ Vía: Entretenimiento y Noticias de Tecnología en proZesa
Bondhusdalen (Noruega), Florian Boepple

Jogo perigoso

A posição de enfrentamento que o PT adotou em relação ao Ministério Público, à Justiça e aos meios de comunicação desde o escândalo do mensalão, com maior radicalização a partir do início do processo de impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, tem sido danosa para tudo e para todos. Por um lado, prejudica o próprio PT, haja vista a surra que o partido levou na eleição municipal de 2016. Por outro, faz surgir, como reação a esse clima de beligerância, algo impensado até pouco tempo, como o apoio à volta dos militares ao poder ou o crescimento de uma candidatura que se propõe a ser a antítese de Lula, esta representada pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ).

Pior de tudo é que a polarização que se vê nas ruas tem atingido, de forma indireta, as instituições garantidoras do Estado Democrático de Direito, com divisão clara e ataques pessoais, como os verificados no dia a dia do Supremo Tribunal Federal (STF), além de esgarçar o tecido social. A polarização, ao contrário do que se diz por aí, não surgiu somente por causa das disputas eleitorais entre PT e PSDB. Ela surgiu principalmente depois dos discursos carregados de ódio do “nós contra eles”, em que o “nós” era vendido como aqueles que, no petismo, defendiam os pobres e oprimidos, e o “eles” os contrários à luta pela igualdade social. 

Charge Super FC 07/04/2018

A posição de enfrentamento constante, apregoada pelo próprio Lula, quando ameaçou chamar o “exército do Stédile”, ao se referir ao MST, movimento que orbita em torno do PT, ou quando disse que não cumpriria a decisão judicial se essa fosse por sua prisão, e o foi, pode até dar uma sensação de onipotência em determinado momento. Como no dia em que, num comício dentro do Palácio do Planalto, Vagner Freitas, da CUT, prometeu pegar em armas para defender o mandato de Dilma Rousseff. Ou na noite de quinta para ontem, quando a sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo foi tomada por militantes que para lá se dirigiram em solidariedade a Lula, levando o ex-ministro Gilberto Carvalho a dizer que a multidão impediria a prisão do ex-presidente. Mas todo mundo sabe que o tempo passa e os planos de desobediência precisam ser desfeitos, mesmo que José Rainha, desaparecido como anda, ameace com uma guerra civil.

É tudo marketing político, uma tentativa de transformar Lula em vítima. Acontece que, se para o militante petista tais atitudes o animam a se manter acordado, com a bandeira lá no alto e com a sensação de que é um revolucionário, para o cidadão comum não há esse efeito. Se houvesse, Lula já estaria com mais de 50% da preferência dos eleitores. E o militante, que levanta a bandeira imaginando-se parte da revolução, já a estaria fazendo para proteger seu líder.

A consequência imediata de todo esse espetáculo pode ter efeito contrário ao que o PT espera obter. A tropa de choque do partido tanto aprontou durante o processo de impeachment que hoje dois de seus líderes, os senadores Gleisi Hoffmann (PR) e Lindbergh Farias (RJ), sabem que enfrentam sérias dificuldades para se reeleger. Em compensação, enquanto houver um resto de possibilidade de Lula disputar a Presidência da República, a candidatura de Bolsonaro mais se consolidará.

O PT não pode se esquecer de que em seus 38 anos de vida foi um instrumento fundamental para a consolidação democrática. No momento em que ameaça não cumprir o que determina uma instituição que é um dos pilares da democracia, como o Judiciário, não a está defendendo. Está ajudando um setor que é claramente contrário a ela a propagar suas ideias numa sociedade que não aguenta mais a corrupção, a violência e a ausência do Estado.

Embargo do embargo

Gostaria de estar à altura do nível dramático desta semana no Brasil. No entanto, aconteceu algo que me deixou frio e calmo. Viajávamos para Serafina Correa (RS) e, na altura de um lugar que se chama Encantado, um carro perdeu a direção, cruzou a estrada e bateu violentamente no nosso. Em meio à fumaça, lembro-me de ter dito apenas: sobrevivemos.

Quando se vê a morte tão de perto e se escapa dela, pelo menos no primeiro momento tudo fica mais simples.

Horas depois conseguimos um novo carro, o outro teve perda total, e voltamos a ouvir os longos votos dos ministros do Supremo sobre o habeas corpus de Lula. Sinceramente, talvez influenciado pela alegria de sobreviver, não via o fim de tudo se o STF derrubasse a prisão em segunda instância.

O velho mecanismo de corrupção seria de novo azeitado e, para nos impressionar, de vez em quando prenderiam um ancião e criariam um vaivém de cadeiras de rodas no presídio. Como somos sentimentais, aceitaríamos que os anciões fossem libertados logo para cumprir prisão domiciliar.

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O único problema dessa opção: a Justiça no Brasil deixaria de funcionar em nome do belo princípio de presunção da inocência. As vítimas dos crimes continuariam desemparadas.

Mas a recusa do habeas corpus também não me parece um drama. É apenas a continuidade do bem-sucedido processo da Lava-Jato e da política do STF desde 2015.

Quando Lula foi condenado na segunda instância, não entendia os repórteres que diziam: o destino de Lula é incerto. Destino incerto é o meu e de todos que estão em liberdade. Lula será preso.

Infelizmente, com a calma dos sobreviventes, não consigo entender a agitação da imprensa. Há sempre alguém falando de um recurso, de um embargo do embargo, dando a falsa impressão de que as coisas vão mudar. Uma pessoa que vê a imprensa à distância pode supor que produzir tantas tramas artificiais é algo feito para ajudar Lula. Mas não é o caso. As pessoas precisam de emoção, de criar tramas que mantenham o interesse. Nesse filme, o ator não pode morrer no princípio, pois seria um anticlímax.

Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, pouco me importam as pancadas, mas devo dizer que o fato mais previsível do mundo quando alguém é condenado pela Justiça, caso não fuja, é ser preso.

Todo esse miolo dramático, todas essas tramas que se criam entre a definição da Justiça e o momento da prisão são apenas tentativa de alongar o interesse pelo caso. Somos novelistas, criando enredos secundários.

Naturalmente, para o PT e seus aliados, as manobras e as constantes dúvidas mantêm a chama e podem ser de interesse político. Mesmo nesse caso, duvido da eficácia do cálculo. Se estivessem de olho no futuro, talvez escolhessem outra tática.

Toda essa intepretação talvez seja resultado da visão esquisita que tomou conta de mim desde o acidente em Encantado. Nada mais tedioso de quem supõe que conhece todo o enredo e subestima os lances emocionantes das tramas que eletrizam a imprensa.

Espero me curar disso, na próxima semana. Ou então deixar de escrever, pois, realmente, eu me sinto numa outra galáxia. Num lugar onde a lei vale para todos, as pessoas são condenadas e o fato mais banal é sua prisão.

A cidade onde nos acidentamos chama-se Encantado. Ao contrário do que seu nome sugere, foi ali que o Brasil finalmente se desencantou para mim.

Precisaria voltar a viver todas essas emoções, como um ateu que recupera sua fé. E voltar a acreditar em embargos dos embargos e em toda essa conversa.

Previsões

Em outubro de 1895 a Marinha Real Italiana teve a péssima ideia de enviar o contratorpedeiro Lombardia para uma visita de cortesia ao Rio de Janeiro. Dizia-se, é bem verdade, que apesar de suas belezas naturais a cidade vivia amaldiçoada por epidemias de cólera, varíola, peste bubônica e, sobretudo, pela febre amarela. Mas talvez fosse apenas um boato, paranoia ou exagero.

Não era.

Em poucos dias depois de chegar ao porto, o Lombardia perdeu 106 dos seus 240 tripulantes e ficou sem comando nem assistência médica, pois o comandante e o médico de bordo figuravam entre os mortos.

Incidentes como esse fizeram com que as companhias de navegação entre a Europa e Buenos Aires declarassem nos seus folhetos que a ligação seria direta, sem escalas nos perigosíssimos portos brasileiros.

A campanha levada a efeito por Oswaldo Cruz provocou uma violenta reação popular, com cenas de vandalismo e um motim dos alunos da Escola Militar da Praia Vermelha sob o comando do general Travassos. Só se entregaram depois do prédio bombardeado e invadido pelas tropas fiéis ao governo, numa operação de guerra.

Por outro lado, poucos meses mais tarde a varíola desaparecia do Rio de Janeiro. A febre amarela urbana decresceu mais lentamente, mas o último caso comprovado data de 1942. Esse lembrete histórico vem a propósito da dificuldade recorrente quando se tenta prever se uma nova ameaça sanitária ou de outra espécie qualquer é uma tragédia anunciada ou não tem grande importância.

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Todas as eventualidades ocorreram recentemente. Os primeiros registros de aids foram menosprezados como algo restrito a casos esporádicos na África, depois se noticiou que estariam expostos apenas certos grupos de risco, até se tornar a pandemia catastrófica que todos conhecemos. Entre 1981 e 2006, a aids foi responsável pela morte de mais de 25 milhões de pessoas, dois terços delas fora da África. Cinco anos mais tarde esse número subira para 39 milhões e só não foi maior graças à eficácia dos novos tratamentos, pois 78 milhões de pessoas haviam sido contaminadas.

O caso do ebola seguiu trajetória oposta. Foi detectado pela primeira vez em 1976, em surtos simultâneos em Nzara, no Sudão, e Yambuku, na República Democrática do Congo, numa região próxima do Rio Ebola, que dá nome à doença. Não se conhecia tratamento e as taxas de mortalidade em certas variedades atingiam 90%. O pânico foi considerável.

O vírus é transmitido por contato com sangue, secreções ou outros fluidos corporais. Apesar da semelhança com o contágio pelo HIV, e de todas as previsões alarmistas, a epidemia de ebola na África Ocidental ficou sob controle em 2015 e praticamente desapareceu em 2016.

Outro exemplo de alarme falso, embora de outra espécie, foi o chamado bug do milênio. Como nos computadores todas as datas eram representadas por somente 2 dígitos, os programas assumiam o 19 na frente para formar o ano completo. Assim, quando o calendário mudasse de 1999 para 2000 o computador iria entender que estava no ano de 19 + 00, ou seja, 1900.

Caso as datas realmente voltassem para 1900, clientes de bancos veriam suas aplicações dando juros negativos, credores passariam a ser devedores e boletos de cobrança para o próximo mês seriam emitidos com cem anos de atraso.

No campo oposto, das maravilhas anunciadas que se transformaram em decepção, tivermos o cometa de Halley, que na sua aparição em 1986 deveria maravilhar a humanidade transfigurando a noite com o brilho de sua cauda gigantesca. Mal e mal se conseguiu divisar alguma coisinha a olho nu.

Sobre os enganos das previsões políticas, o exemplo brasileiro mais recente é a reforma da Previdência, expulsa do palco na véspera da estreia pela intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro. No mundo, tivemos a saída da Inglaterra da União Europeia, contrariando todos os prognósticos, e as ameaças sinistras na ordem do dia impulsionadas pelas bravatas nucleares entre o presidente Donald Trump e seu colega norte coreano, Kim Jong-un.

Em suma, a tecnologia progrediu imensamente, mas a natureza e a política continuam a nos deixar perplexos e desconfiados. Se a grande maioria das pessoas acredita nos riscos do aquecimento global, ninguém encontrou uma explicação convincente para a diminuição do buraco na camada de ozônio.

As grandes explicações científicas mostram seu alcance e seus limites. A revolução darwinista respondeu a muitas perguntas, mas deixou outras sem resposta. Conseguimos entender o mecanismo da evolução das espécies, mas sem o auxílio de alguma religião continuamos totalmente incapazes de dizer qual o seu sentido. Temos o “como”, continuamos a ignorar o “por quê”.

Além disso, ainda hoje cada progresso suscita novas dúvidas. Até hoje não sabemos a que ponto as leis de Darwin se aplicam à sociedade dos homens, mesmo porque não sabemos até que ponto somos “animais como os outros”.

Pode-se falar numa ética da natureza? Qual a correspondência entre a lei da sobrevivência do mais apto e nossos sistemas econômicos e sociais? O chamado capitalismo selvagem é desejável, inevitável, natural? Se rompermos com ele, seremos “castigados” como a natureza castiga as espécies “degeneradas”? Ou, ao contrário, a solidariedade, existente até entre os lobos unidos em alcateias para a caça, é uma característica da raça humana a ser valorizada, respeitada, a única que nos pode salvar do holocausto nuclear? A sociobiologia é uma estupidez nazistoide de terceira classe ou um avanço real?

E agora, como se as dúvidas imemoriais não bastassem, temos a nos assombrar a biotecnologia, a engenharia genética, os alimentos transgênicos, o patenteamento de animais e plantas transformados pelo homem. Em feliz contraponto, a eterna esperança da cura do câncer, escondida nas provetas dos laboratórios ou na biodiversidade da Amazônia.

Gente fora do mapa

Poverty isn't just for adults.  Children can be in poverty too.  In countries other than this one, some children have to work to help provide with their families in the worst conditions possible. Its hurting them physically and mentally.  All some of these kids know is poverty. Our world needs to get these children a place to sleep and food to eat.

A prisão, o passado, E o futuro/

Guimarães Rosa dizia que à ''muita coisa importante falta nome''. A sentimentos coletivos, sobretudo. A prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, o homem e sua história, é um pouco disso: ''fogo que arde sem se ver''. Fogo de paixão de amor; fogo de paixão de ódio. Paixões que queimam sem resultar em energia, nem produzir calor. Paixões de desconcerto.

Para uns, a prisão de Lula é ''ferida que dói e não se sente''; para outros, ''um contentamento descontente''. O certo é que as imagens de logo mais, quando Lula já for prisioneiro não mais do mito que construiu, mas das grades, os sinos das seis da tarde dobrarão, pouco depois, despertando sentimentos diversos aos quais faltará nome.

Terá sido bom? Terá sido mau? Que destino amassamos sob os pés nessa hora incerta?

Tudo dependerá da disputa de narrativas que se formará logo na sequência da prisão. A luta pelo ''enquadramento da foto'', nos jornais, nas TVs, nas redes, na memória de cada vivente, eleitor ou não. A política seguirá agora ainda mais como uma guerra de comunicação.

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Naturalmente, haverá os que comemorarão, soltando rojões, como na Copa do Mundo, redenção de um time há tempos humilhado e sem títulos. Felizes, como se essa prisão bastasse para consertar o país. E dar-se-ão por satisfeitos, como piranhas que devoram o boi, desatentas ou sem se importar com a boiada que atravessou o rio às suas costas.

E haverá os que chorarão jurando desforra, como órfãos da Faixa de Gaza. Sem admitir, no entanto, os erros do caminho; as faltas de processo ou de caráter, a conivência cúmplice ou a capitulação ao poder. Sem perceber nem negar a arrogância e o sectarismo pueril que levou a nada e só trouxe até aqui.

Mas, haverá também outros, que não vestem camisas nem de uns, tampouco as faixas palavras-de-ordem de outros. Para quem tudo o que sobra mesmo é esse enorme desconcerto. A lucidez, num momento como este, tudo o que traz é o desconcerto.

E frustação com o que não se cumpriu, com o que poderia ter sido o país e não foi. E, talvez, nunca será. Um desconcerto, vergonha alheia e de ninguém, mais das circunstâncias, talvez, do fundo-de-poço sem luz que parece ser o presente. O desconcerto que, no entanto, obriga a olhar para frente.

O fato é que o país não se conserta sem Lula tanto quanto não se consertaria com ele. Os problemas estruturais são profundos e não se resumem a fulano. É um sistema que rui; crise das instituições e entre as instituições. Um deserto de lideranças, onde não há Legislativo, não há presidente e, possivelmente, nem República haja.

Mesmos juízes e promotores que se arvoram paladinos, prometendo justiça ou greve de fome, são um pouco resultado do vazio e da desolação com a falta de Política. Da Grande Política com ''P'' maiúsculo, que insatisfeitos comentadores de Blogs não conseguem alcançar o que seja. Não é mesmo fácil alcançar seu sentido.

***

Há duas noites, o pânico se alastra pelo sistema: na primeira, o Supremo negou um habeas corpus o qual, talvez, não pudesse mesmo conceder. ''Consequencialistas'' gelaram: na liberdade de Lula, muita gente se abrigaria, escondendo a impunidade. ''Garantistas'' arderam: vão-se lá com os privilégios também os direitos e o que resta de segurança. Cada um com sua razão, talvez estejam todos certos. É fato que não há escolha fácil.

Na segunda noite, já sob o impacto com o rápido gatilho da decretação de prisão, os sons das bruxas soaram às portas: amanhã, logo cedo, o Japonês da Federal pode chegar para qualquer um. Não haverá mais tranquilidade no reino desse magote de nababos da política. Há duas noites, muita gente, preocupada, não dorme. Gilmar Mendes já alertara: serão os Lulas de amanhã, no MDB, no PSDB, em todo lugar,

É exatamente isto o que não se sabe.

Se Lula for o único, independente do gáudio punitivo da moçada dos patos e dos panelaços, o processo estará desmoralizado. Se Lula for o único, se revelará o preconceito ao mesmo tempo em que emergirá desse cárcere seletivo a vítima, o mártir encarnado. Se Lula for o único, o país estará acabado de verdade.

Por isso, talvez, Raquel Dodge tenha se estimulado a pedir ao STF que torne Aécio Neves réu definitivamente e a sério. Por isso, talvez, Luís Roberto Barroso se aferre com vontade aos calcanhares de Michel Temer, nos processos que envolvem a si e a seus amigos do peito. Por isto, talvez, o sentimento de desconcerto tenha que acelerar o botão da eliminação do foro privilegiado.

O que se passa é que os que jogam pedras em Lula terão que olhar para entulho de dentro de casa; os mensalões de Minas, as malas andarilhas pelo Brasil, o rodoanel e os merendeiros protegidos em São Paulo. Os cadáveres no armário, os corruptos favoritos, a cegueira ocasional. Instigar isto tudo e remover a dissimulação será bom? Será ótimo. Até porquê, sem isto, comemorar a prisão de Lula será fogo tão fátuo quanto farisaísmo deslavado. Bumerangue que volta à testa.

Novamente, Guimarães Rosa: o “julgamento é sempre perigoso, porque o que a gente julga é o passado”. Julga o passado engolindo quinhões do futuro, engasgando com a fumaça do presente, digerindo a agonia pão nosso de cada dia que a vida nos dá hoje.

O que Rosa — o Guimarães, não a Weber — talvez tenha pretendido dizer é que julgar o passado é pouco para anunciar o futuro. O meio-julgamento do passado é menos ainda. Que se julgue e puna todo o resto e se institucionalize um novo padrão ou o futuro será apenas a interminável continuidade deste presente.

***
Ninguém saberá dizer se, ao final, a prisão de Lula regenerará o presente ou se calcinará o futuro. Somente a história dirá. E mesmo ela nem sempre é sábia. Às vezes, a única coisa que a história faz é fazer-se acontecer, resultando em nada. Mais uma vez, resultará em nada?

Carlos Melo

Declaração de rendimentos como item de cidadania

A Receita Federal espera receber, neste ano, 28,8 milhões de declarações de rendimentos de pessoas físicas. É um número insignificante em relação aos 208 milhões de brasileiros, porque são apenas 13,85% da população total. Isso escancara a amplitude da pobreza no país, pois prestarão contas os que estão inseridos no sistema produtivo ou previdenciário e recebem acima de R$ 1.903,98. Excluindo-se crianças, jovens dependentes e notórios sonegadores, predominam aqui, portanto, cidadãos que não têm essa renda mínima, embora ela ainda seja insuficiente para cobrir as necessidades do mundo moderno, como moradia, transporte, lazer, alimentação, higiene, vestuário, comunicação e outros itens alheios às obrigações diretas do Estado com seus contribuintes. Indispensável ressaltar que ele não garante, em condições adequadas, escola pública, assistência médica, segurança, urbanização, saneamento, proteção às categorias fragilizadas e mercado de trabalho dinâmico, embora cobre muitos outros tributos em dezenas de situações.

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Aquela renda inicial corresponde a, aproximadamente, US$ 560, que é um valor desprezível, nos países desenvolvidos, para um chefe de família com um ou dois dependentes. Como disse meu amigo, que se assustou, em 1987, com a desigualdade social no Brasil, ninguém ganhava, na Suíça, naquela época, menos de US$ 1.000. Ou seja, a régua de burocratas para medir o bem-estar dos povos é mesmo elástica, pois eles afirmam que apenas 22,1% dos brasileiros estariam abaixo da linha da pobreza, com renda per capita de US$ 5,50 por dia. É claro que os custos de subsistência variam muito entre o campo e a área urbana, entre a pequena e a grande cidade, pois o acesso ao alimento para os pequenos agricultores é pleno, mas lhes faltam recursos inerentes à vida moderna, como a escola para os filhos, o consumo efetivo de bens e serviços, a participação nas informações, o planejamento de dias melhores ou a pronta assistência médica. Daí, dizer que o habitante da área rural tem o suficiente para viver é negar-lhe o direito de aspirar a mais conforto, além da comida na mesa. Esse grupo precisa apresentar declaração de rendimentos apenas se tiver renda anual acima de R$ 142.798,50...

Por outro lado, milhões de famílias improvisam moradias em vias públicas e favelas, passando por severas dificuldades, diante da insegurança de localização, ausência de título de propriedade e falta de endereçamento formal, inclusive perante a Justiça. Constituem parcela significativa dos que têm renda anual abaixo de R$ 28.559,70; portanto, não precisam prestar contas à Receita deste país.

Declaração de renda é cidadania, que, infelizmente, está ao alcance apenas dos 28,8 milhões de contribuintes e seus dependentes. Assim, embora R$ 1.903,98 não sejam suficientes para cobrir todos os custos de subsistência no Brasil, cujo Estado falha, constantemente, na prestação de serviços básicos, aqueles cidadãos têm o mínimo para comer e morar.

Gilda de Castro

Quando a raiva cega a militância

“Não podemos permitir que esta minoria bandida e covarde ameace a vida das pessoas.” Há uma semana, a executiva estadual do PT no Rio Grande do Sul subia o tom ao repudiar as agressões sofridas por mulheres petistas durante a passagem da caravana de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Estado. Dois dias depois, foi a vez da executiva do Paraná qualificar o ataque a tiros aos ônibus da caravana em Laranjeiras do Sul como um ato fascista e compará-lo ao contexto social que levou à ascensão do nazismo na Alemanha. Porém, após a mobilização da militância diante da iminente prisão do ex-presidente, o partido ainda não se pronunciou oficialmente sobre os distúrbios violentos protagonizados por seus seguidores nos últimos dias.

Na noite da última quinta-feira, quando o líder do PT se reunia com aliados na sede do Instituto Lula, em São Paulo, um opositor do ex-presidente foi parar no hospital depois de ter sido hostilizado e agredido por militantes petistas. Empurrado, ele acabou batendo a cabeça no para-choque de um caminhão que passava pela rua. A cena é chocante. O manifestante anti-Lula, que havia provocado o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) e Márcio Macedo, um dos vices-presidentes do PT, ficou alguns minutos desacordado no asfalto antes de se dirigir ao hospital e ser diagnosticado com traumatismo craniano. Nesta sexta-feira, o deputado federal de extrema-direita, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ferrenho opositor de Lula, protocolou queixa por tentativa de homicídio no Ministério Público de São Paulo contra o ex-vereador Manoel Eduardo Marinho, o Maninho, do PT de Diadema, acusado de empurrar o manifestante contra o caminhão.


Ainda na noite de quinta, jornalistas que cobriam a mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, sofreram intimidações de simpatizantes mais exaltados de Lula. Um homem, que não foi identificado, mas vestia uma camisa da Central Única dos Trabalhadores (CUT), arremessou ovos em direção aos profissionais de imprensa. Em Brasília, onde também houve atos em solidariedade ao ex-presidente, equipes de televisão alegaram ter sido ameaçadas por manifestantes. Um grupo deles, inclusive, relataram que o vidro de um carro do jornal Correio Braziliense foi quebrado em frente à sede da CUT na capital federal. Entidades de classe como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) condenaram os ataques praticados contra jornalistas.

Já no fim da tarde desta sexta-feira, militantes ligados ao MST e Levante Popular da Juventude que se dirigiam à manifestação em apoio a Lula no centro de Belo Horizonte jogaram tinta vermelha no prédio da ministra Cármen Lúcia como forma de protesto pela negação do habeas corpus no STF. Segundo funcionários do edifício, não houve agressões nem quebra-quebra durante o ato. Os manifestantes deixaram as imediações do prédio após a chegada da Polícia Militar. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) saiu em defesa da ministra do Supremo, entendendo que “não é absolutamente razoável que um magistrado, desde a primeira instância do Judiciário até a Suprema Corte brasileira, veja-se constrangido, punido ou de algum modo violado pelo conteúdo das suas decisões”.

Integrantes do PT que engrossam a concentração no Sindicato dos Metalúrgicos não quiseram fazer comentários sobre os incidentes e episódios violentos. Em nota oficial divulgada no último dia 25 de março, o partido afirmou que “a política do ódio é o oposto da política do PT”. Para manifestar seu repúdio aos atentados sofridos pela caravana de Lula no Sul do país, a executiva nacional do PT ressaltou que “o país não pode conviver com a violência destes setores autoritários, que usam métodos fascistas para calar e interditar aqueles de quem discordam”. Os últimos episódios registrados, no entanto, destoaram dessa filosofia.