terça-feira, 19 de março de 2019

Nos EUA, Bolsonaro confunde parceria com subserviência

Em 1964, o militar Juracy Magalhães foi nomeado embaixador em Washington e cunhou uma frase famosa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. A máxima da ditadura voltou à moda em Brasília. Agora foi levada a Washington por Jair Bolsonaro.


Ontem o presidente se desmanchou em elogios aos anfitriões. “Hoje os senhores têm um presidente que é amigo dos Estados Unidos, que admira este país maravilhoso”, disse. Ele estendeu as juras de amor a Donald Trump. “Queremos um Brasil grande, assim como Trump quer uma América grande”.

O ministro Paulo Guedes acrescentou um testemunho pessoal. “O presidente ama os americanos, eu também. Adoro jeans, Coca-Cola, Disneylândia”, festejou. Faltou citar o Pateta, que parece inspirar uma ala expressiva do novo governo.

A bajulação não se limitou aos discursos. O Planalto aceitou abrir a Base de Alcântara, antigo sonho de consumo dos EUA. Mais cedo, liberou os turistas americanos da exigência de visto. O Brasil abriu mão da reciprocidade, um princípio básico da diplomacia.

Dois dias antes, o deputado Eduardo Bolsonaro se referiu aos brasileiros que vivem nos EUA sem visto de permanência como “vergonha nossa”. Ao ofender os imigrantes, usava um boné que reproduz, em versão tupiniquim, o slogan eleitoral de Trump.

O país pode e deve reforçar laços com os EUA, mas os gestos de Bolsonaro sugerem uma atitude de subserviência, não de parceria. “É preciso ter foco no interesse nacional, não no de outros países”, criticou Geraldo Alckmin, um tucano insuspeito de esquerdismo.

Em Washington, o presidente voltou a mostrar que a ideologia fala mais alto que o pragmatismo em sua política externa. “Nosso Brasil caminhava para o socialismo, para o comunismo”, delirou, no jantar de domingo.

Ele propôs um brinde a Olavo de Carvalho, ideólogo da ultradireita nativa, e ofereceu uma síntese de seu projeto. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, afirmou. A oposição não conseguiria resumir melhor.
Bernardo Mello Franco

Venha debater comigo, Olavo de Carvalho

Como intelectual acadêmica, tenho uma área de especialização e é sobre ela que gostaria de convidá-lo a uma conversa amigável. Sei que gosta dos temas com que trabalho, em particular a questão do aborto. Cada um terá seu tempo de apresentação, podemos ter réplicas mútuas, seremos gentis e falaremos a verdade. Para facilitar a participação da audiência, sugiro que um grupo independente de checadores de informação acompanhe nossa conversa. Nossos argumentos serão postos à prova no instante em que forem ditos. Nesses tempos de mentiras e notícias falsas, ofereceremos um momento de celebração à verdade.

Li suas postagens em que desdenha das universidades e dos professores, em que expressa suas inquietações sobre o que seja a vida universitária. Tive dúvidas sobre onde teria estudado, pois talvez fosse testemunho do seu tempo ou de sua experiência acadêmica. Busquei seu currículo na Plataforma Lattes, mas não o localizei. A publicidade da trajetória acadêmica foi uma conquista de transparência da ciência brasileira — o currículo Lattes não é como orelha de livro comercial ou postagem de mídia social em que cada um se adjetiva como bem quer.

No currículo Lattes, está a prova do que ousamos pronunciar como ciência. Se der uma espiada no meu currículo, verá que falo sobre aborto porque já fiz pesquisas, publiquei artigos e ganhei prêmios. Arrisco dizer que sou reconhecida na comunidade acadêmica internacional. Como tudo na ciência, até esse deslize de adjetivo no texto preciso comprovar. No meu caso, reconhecimento pode ser o prêmio Jabuti concedido ao meu livro sobre a epidemia de Zika no Brasil ou a recente homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard.

Como não localizei artigos de sua autoria na Biblioteca Scielo ou em qualquer outra base de periódicos científicos internacionais, desconheço os fundamentos de seus argumentos. Para ser sincera, ignoro sua área de especialidade, soube que foi astrólogo, define-se como filósofo e que oferece cursos nas mídias sociais. Peço perdão, mas meu conhecimento de astrologia é limitado, por isso o convido a falar sobre aborto — um tema que nos exige conhecimento de diversas áreas, da filosofia à saúde, da sociologia à história.

Todos temos opiniões sobre vários eventos da vida. Nossas opiniões permitem que nos aproximemos de algumas comunidades e nos afastemos de outras. Opiniões, no entanto, não são argumentos acadêmicos. Para ser um intelectual acadêmico é preciso se submeter ao método científico de busca da verdade. Quando publico um artigo em periódico científico, me submeto ao julgamento de colegas que desconheço, recebo pareceres de avaliação de minhas ideias, torno públicas as razões de minhas teses. É certo que nem todo escritor é cientista; um exemplo são os ficcionistas, escrevem o que imaginam, inventam histórias. Não sei se este é seu caso, mas se o for, não poderia chamá-lo de pesquisador acadêmico. Escritor é já um título honroso.

Não sei se já aplicou o método científico aos seus argumentos. Se não, valeria o experimento para o que alardeia sobre as universidades. Parta de suas crenças como hipóteses, submeta-as ao teste científico — se crê haver "bolinação" e "drogas" em sala de aula, monte um protocolo de pesquisa, colete evidências, escreva um artigo, publique em um periódico. Só aí discutiremos seus argumentos. Antes disso, suas ideias são como opiniões de gente de bem ou fantasias de ficcionistas. Mas até para ser um professor, recomendaria aprimorar seus métodos.

Um professor duvida de suas teses, estuda antes de ensinar, aprende com a comunidade acadêmica. Nem todo professor é escritor, mas os intelectuais acadêmicos são escritores e professores. Ensinam e escrevem, defendem teses de doutorado e mestrado. Também não localizei seus memoriais acadêmicos para os títulos da carreira acadêmica, se é que os têm. Minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado estão disponíveis em diversas bases virtuais. É certo que se pode ser um escritor e professor, sem títulos acadêmicos formais ou mesmo sem experiência universitária. Já conheci pessoas assim, algumas admiráveis, é verdade: elas sabiam sobre marés, ventos, chuva e sol, aquilo que chamamos de conhecimento empírico em contraste ao método científico. Paulo Freire se encantava com os mestres empíricos da vida rural. Gurus e magos são outros que parecem ter este tipo de conhecimento. Eu precisaria estudá-los para dizer com precisão o que fazem ou o que faz alguém crer neles.

Se meus temas de pesquisa forem árduos para um debate, eu posso ajudá-lo na revisão da literatura, um passo fundamental à argumentação científica. Como intelectuais acadêmicos, antes de nos pronunciarmos sobre algum tema, passamos um bom tempo revisando a literatura, isto é, o que já foi pesquisado e publicado sobre um tema. Verá que sou uma das principais autoras sobre aborto no Brasil, por isso, posso facilitar seu esforço de revisão da literatura indicando algumas referências. Como usei outro adjetivo, preciso justificá-lo pelo rigor acadêmico - dê uma olhada no número de citações aos meus artigos ou no fator de impacto dos periódicos em que publico. Deixo uma dica para esta fase de leitura intensa: use um gerenciador de bibliografia, senão poderá se perder nas notas. O risco de notas soltas é plagiar ideias alheias, algo desagradável a um intelectual acadêmico.

Aceite meu convite como uma honra ou como um desafio. Aborto é uma questão de saúde pública no Brasil. Mulheres comuns fazem aborto, esta não é minha experiência nem a sua, por isso falaremos em nome da ciência. Pode ser a ciência dos números ou a do testemunho, a epidemiologia ou a antropologia. Quanto mais conversarmos sobre o tema mais as pessoas se informarão, pois os checadores da verdade qualificarão nosso debate. Essa poderá ser uma experiência transformadora, inclusive para que possa abandonar o uso das aspas no título "intelectual acadêmico" e, quem sabe, usá-lo para si próprio sem transformá-lo em citação.

Quem fala ao país?

Por enquanto, insistimos em reembalar o passado mudando o laço de primitivismo ora para a esquerda, ora para a direita. O país, em sua maioria ampla, não torturou Dilma e repudia quem o fez e quem aplaude essa barbárie; não matou Marielle e Anderson e condena esse horror; não atentou contra a vida de Bolsonaro, prestou-lhe solidariedade e considera abominável o ato de Adélio. Que tal falar desse e a esse país?
Valentina de Botas

Pensamento do Dia


Proibir ficha suja é fazer do óbvio uma boa notícia

Quando quer, Brasília também consegue produzir boas notícias. A decisão do governo de Jair Bolsonaro de proibir que pessoas com a ficha suja sejam nomeadas para cargos de confiança é uma boa notícia com cara de obviedade. É óbvio que o Estado deveria contratar pessoas idôneas. Em tese, não seria necessário editar um decreto para proclamar o óbvio. Mas na administração pública, muitas vezes as pessoas esbarram no óbvio, tropeçam no óbvio e passam adiante, sem desconfiar de que o óbvio é o óbvio. Por isso, deve-se festejar a edição do decreto que proclama o óbvio.


A boa notícia veio na velocidade de uma tartaruga paraplégica. A Lei da Ficha Limpa, aquela que nasceu da iniciativa popular e que proibiu as candidaturas de políticos condenados em segunda instância, é de 2010. Em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal ainda era presidido por Ayres Britto, hoje aposentado, a regra foi estendida para as contratações feitas no âmbito do Judiciário. Só agora, com nove anos de atraso, decidiu-se proibir também no Executivo a nomeação de biografias carunchadas para cargos de confiança.

Jair Bolsonaro celebrou a novidade no Twitter. Mas faltou explicar porque mantém na Esplanada dos Ministérios pelo menos sete ministros com algum tipo de suspeição —entre eles um condenado por improbidade administrativa e um réu em ação penal por fraude em licitação e tráfico de influência. Sempre se poderá alegar que nenhum ministro traz pendurado no pescoço uma condenação de segunda instância. Mas não fica bem justificar os detritos num governo que diz ser limpinho.

De resto, para evitar o pecado da ingenuidade, convém lembrar que leis e decretos não modificam a natureza humana. Por uma dessas coincidências fatais, quem sancionou a Lei da Ficha Limpa, em 2010, foi o então presidente Lula. Ele ajeitou a corda que o enforcaria. No ano passado, já condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, o presidiário Lula teve a candidatura presidencial barrada com base na lei que ele mesmo havia sancionado. Portanto, convém celebrar a boa notícia sem esquecer que, na política, não é incomum que São Jorge prometa salvar a donzela e acabe casando com o dragão.

Por que o Brasil deveria se importar com a morte de abelhas

A morte de abelhas não é um fenômeno recente: é observada por pesquisadores ao menos desde a década passada. No entanto, nos últimos meses, a mortandade alcançou números alarmantes no Brasil.

"A morte de abelhas não é só um risco para o Brasil, mas para o mundo todo. Quando se pensa em abelhas, se pensa em mel. O principal produto delas, porém, é a polinização", afirma Fábia Pereira, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) na área de Apicultura.

Apenas nos últimos três meses, 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas por apicultores no país, segundo um levantamento feito pela ONG Repórter Brasil em parceria com a Agência Pública. A grande maioria dos casos foi registrada no Rio Grande Sul, seguido por Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e São Paulo.

Além da morte em massa de colmeias em apiários, cinco espécies nativas de abelhas estão ameaçadas de extinção – três delas habitam a Mata Atlântica, uma o Cerrado e outra o pampa gaúcho. Não há dados, porém, sobre a mortandade em comunidades selvagens.

As abelhas são responsáveis pela polinização de cerca de 70% das plantas cultivadas para alimentação, principalmente frutas e verduras. Sua morte coloca em risco a agricultura e, consequentemente, a própria segurança alimentar. Sem elas, o ser humano enfrentaria uma mudança drástica na sua dieta, que ficaria restrita apenas a culturas autopolinizáveis, como feijão, arroz, soja, milho, batata e espécies de cereais.

Além da agricultura, as abelhas são ainda agentes fundamentais para a polinização de florestas nativas. Seu desaparecimento poderia desencadear a morte de ecossistemas inteiros. "Se o homem parasse de fazer qualquer outra intervenção ambiental, e as abelhas apenas sumissem, haveria um desaparecimento da mata correspondente a entre 30% e 90% do que temos hoje, provocando um processo de extinção em cadeia até chegar em nós que estamos no topo", ressalta Pereira.

Essa mortandade tem ainda potencial para impactar a economia brasileira. O país é o oitavo produtor mundial de mel e, em 2017, as exportações totalizaram 121 milhões de dólares. A diminuição na produção diante da redução do número de colmeias resultaria numa queda nas vendas. Além disso, em caso de mortes causadas por agrotóxicos, resíduos destas substâncias possivelmente poderiam ser encontrados no mel, o que levaria compradores estrangeiros a rejeitarem o produto brasileiro.

"A exportação para a Europa é muito exigente, e qualquer resíduo é detectado. O mel que foi produzido nos últimos meses está contaminado. No exterior, ninguém vai querê-lo, e não há um mercado interno suficiente para a quantidade produzida. Isso vai desestimular a apicultura", afirma o engenheiro agrônomo Aroni Sattler, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A morte de abelhas começou a chamar a atenção mundial a partir da identificação do Distúrbio do Colapso das Colônias (CCD), em 2006 nos Estados Unidos, quando um forte surto dizimou milhares de colmeias. Na Europa, fenômenos semelhantes estão sendo observados desde o fim da década de 1990. Pesquisadores descobriram que, além das doenças e da redução do habitat das espécies, os agrotóxicos são um dos fatores que desencadeia essa mortandade.

Além da toxicidade elevada de alguns defensivos agrícolas, contribui para esse cenário o uso incorreto destas substâncias. Elas são aplicadas durante o dia, quando as abelhas estão fora das colmeias, sem seguir parâmetros de segurança e sem comunicar apicultores para que possam deixar as caixas fechadas.

No atual caso brasileiro, pesticidas à base de neonicotinoides e de fipronil foram os principais agentes causadores das mortes. "O histórico da mortandades agudas que temos constatado deixa muito clara a sua relação com o uso de agrotóxicos", ressalta Sattler, especialista em apicultura.

No Rio Grande do Sul, onde mais de 400 milhões de abelhas morreram só no primeiro trimestre, 80% das mortes foram causadas pelo fipronil, inseticida usado amplamente em lavouras de monoculturas, mas também em pequenas propriedades rurais. A substância é ainda muito popular no extermínio de formigas e em remédios veterinários para controle de insetos, como pulgas. Em Santa Catarina, resquícios do pesticida foram detectados em colmeias mortas entre o fim do ano passado e início deste.

"Precisamos começar a questionar o modelo agrícola atual. Os efeitos da expansão do monocultivo baseado em agrotóxicos estão comprovados. Os Estados Unidos tinham 6 milhões de colmeias na década de 1940, e hoje estão com cerca de 2,5 milhões", destaca Sattler.

Na Europa, a morte abelhas é há alguns anos um tema presente na mídia e na política. Em 2017, um estudo chamou atenção da opinião pública alemã ao revelar que as populações de insetos voadores haviam recuado 75% ao longo de 25 anos no país. A pesquisa desencadeou um debate sobre a questão.

Atualmente na Alemanha a iniciativa popular "Salvem as abelhas" quer forçar o governo da Baviera a buscar soluções para a diminuição da biodiversidade. A proposta prevê o incentivo à agricultura orgânica, proteção de matas ciliares, a ampliação da ligação de habitats naturais e o banimento de agrotóxicos.

A pressão popular e de ativistas ambientais foi fundamental para a União Europeia (UE) aprovar no ano passado a proibição de três substâncias neonicotinoides – clotianidina, imidacloprida e tiametoxam, que danificam o sistema nervoso central de insetos, como as abelhas. Já a França foi mais além e baniu cinco inseticidas desta categoria de derivados da nicotina.

Já o fipronil teve seu uso restrito na Europa. Proibida completamente na França desde 2004 e, posteriormente, em vários países europeus, a aplicação do pesticida na União Europeia foi limitada em 2013 a cultivos em estufas e de alho-poró, cebola, cebolinha e couve. A substância também é banida da indústria alimentícia do bloco, podendo ser usada apenas para combater pulgas, piolhos e carrapatos de animais domésticos.

A Europa patina, porém, ainda no banimento do glifosato, outro defensivo agrícola que, segundo uma pesquisa divulgada no ano passado, é prejudicial às abelhas.

Enquanto países europeus estão reavaliando e restringindo o uso de agrotóxicos, o Brasil nos últimos meses tem incentivado a liberação de defensivos agrícolas. Em relação às abelhas, o tema continua negligenciado, ainda mais diante do impacto que a extinção destas espécies pode ter.

"Apesar de todos os esforços, ainda não conseguimos sensibilizar suficientemente o público em geral e o próprio governo sobre a importância de trabalharmos na proteção das abelhas. Já foram realizados eventos sobre o assunto, reuniões explicando a importância das abelhas e com sugestões de políticas públicas, mas ainda precisamos avançar nas ações efetivas", ressalta Pereira.

Satller tem opinião semelhante. "A situação é bastante grave, mas ainda dá para reverter", afirma o pesquisador, que defende o questionamento do atual modelo do agronegócio no país e a restrição do uso indiscriminado de agrotóxicos.
Deutsche Welle

Cada povo tem o que merece

Fico pensando o que a gente fez para merecer uma coisa dessa, uma indefinição completa dos interesses do Brasil.
(...) É inaceitável para os militares essa subserviência aos Estados Unidos, assim como para qualquer pessoa de bom senso. O diplomata e doutor em ciências sociais
Paulo Roberto de Almeida, diplomata e presidente exonerado do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), um dos braços do Ministério das Relações Exteriores

O lobo e o bom selvagem

Na política, é muito comum o sujeito achar que o bom rapaz terminará por último, uma expressão do mundo do beisebol, esporte no qual os melhores do mundo atualmente são o Japão, os Estados Unidos, a Coreia e Cuba, com a Venezuela na cola deles. O ardil, a dissimulação, a esperteza e a falta de escrúpulos parecem ser a regra do jogo, mas não é bem assim, existem bons rapazes na política, sem a qual não existe processo civilizatório. O neodarwinista Richard Dawkins, no último capítulo do livro O gene egoísta (Companhia das Letras), discute exatamente isso. Segundo Dawkins, o ser humano é um grande arranjo biológico, uma espécie de máquina de sobrevivência de um gene egoísta reprodutor da espécie. Para isso, porém, também precisa ser altruísta, cooperar com os demais integrantes da espécie para não entrar em extinção. É aí que os bons rapazes podem acabar em primeiro.

Para explicar o raciocínio, Dawkins faz uma analogia com os pássaros de uma mesma espécie, mas com comportamentos distintos: os trapaceiros, os trouxas e os rancorosos, todos em luta com piolhos alojados na cabeça, que poderiam exterminar a espécie. Caso existissem somente trapaceiros e trouxas, a espécie seria extinta, porque somente o segundo cataria os piolhos alheios, o que não seria suficiente para manter o equilíbrio ecológico. Os trapaceiros não catam piolho de ninguém, nem podem removê-los da própria cabeça; com a redução da população de trouxas, todos acabariam extintos.

Quando entram em cena os rancorosos, a situação se modifica. São pássaros que ajudam uns aos outros de maneira mais ou menos altruísta, mas que se recusavam a colaborar com os indivíduos que se recusaram a ajudá-los. Por essa razão, os rancorosos conseguem transmitir mais genes às gerações seguintes do que os trouxas (que ajudavam os indivíduos indiscriminadamente e por isso eram explorados) e também que os trapaceiros (que, implacáveis, tentavam explorar todo mundo e acabaram por se anular uns aos outros). Com o chamado altruísmo recíproco, a população de trouxas diminui e os trapaceiros acabam com a sobrevivência ameaçada pelo isolamento. O Brasil está passando por um período darwinista na política. Nesse contexto é que devemos examinar a crise de segurança pública e o problema da violência.

Os animais agem instintivamente na luta pela sobrevivência, a violência é um elemento natural que faz parte de um ciclo independente e resulta do instinto de conservação. Entretanto, só se utilizam dessa prática na busca de alimento, na luta pelo território ou na disputa pela fêmea; ou ainda, quando se sentem ameaçados. Ou seja, somente em situações extremas, em prol da conservação da espécie. O homem também é um animal que se utiliza da violência para sobreviver. Porém, extrapola os limites do natural e, muitas vezes, age violentamente a ponto de prejudicar a sua própria espécie, fato que contraria as leis da natureza. A desigualdade social, a impunidade e a corrupção estão entre os fatores de violência, mas é preciso saber lidar com isso e contê-las.

Há duas concepções seminais sobre isso: A tese do “lobo do homem”, de Thomas Hobbes, segundo o qual a sociedade está sempre ameaçada por uma guerra civil, onde todos os seus integrantes vivem em uma situação de permanente conflito, “uma guerra de um contra todos e de todos entre si”. O estado da natureza, segundo ele, era um mundo de feras, onde “o verdadeiro lobo do homem era o próprio homem”. Para Hobbes, “um homem não pode abandonar o direito de resistir àqueles que o atacam com força para lhe retirar a vida”. E o mito do “bom selvagem”, do iluminista francês Jean Jaques Russeau, para quem primitivamente o homem é generoso, embora esteja sempre sob o jugo da vida em sociedade, a qual o predispõe à maldade. A condição para reverter essa tendência e transformá-lo num bom cidadão é a construção de um “contrato social”, que estabeleça as regras do jogo: “O mais forte não é suficientemente forte se não conseguir transformar a sua força em direito e a obediência em dever.”

O debate sobre a violência no Brasil gravita em torno dessas duas concepções, que estão na gênese do Estado moderno. O ponto de convergência entre ambos é o monopólio do uso da violência pelo Estado, como estabelece a nossa Constituição. Esse monopólio, porém, foi quebrado pelos “trapaceiros”. Estão aí o PCC, em São Paulo, e as milícias, no Rio de Janeiro, que atuam como “Estados paralelos”. Não será armando a população que esse problema será resolvido. O risco que corremos, com a polarização ideológica que se estabeleceu em torno disso, é o surgimento de uma militância política armada. A saída ainda é depurar, reformar e fortalecer o sistema de segurança pública.