terça-feira, 14 de junho de 2016

genildo

Quem é quem no drama brasileiro?

Como uma trovoada distante o aumento de R$ 59 bi do funcionalismo relampejou no céu do “jornalismo de acesso” e logo se apagou quase sem ruído. Não se sobrepôs sequer à “propina” do dia esse prêmio aos culpados que aumentou em 1/3 a pena de quase 200 milhões de inocentes. Lindbergh Farias, Fernando Collor, Vanessa Graziotin, Eduardo Cunha e sua gangue, Jandira Feghali, Sérgio Machado, todos suspenderam por um minuto as hostilidades para apertar juntos o “sim“. E o “dream team” engoliu com casca e tudo essa terça parte do maior déficit de todos os tempos na largada da missão impossível para deter a mais desenfreada corrida de volta à miséria da história deste país. Tudo tão discreto que a manobra mal foi percebida na fila de seis meses de espera pelo exame de câncer do SUS, que é onde se “zera” esse tipo de fatura.

Quantos serão, dentre os 11,1 milhões de funcionários que comem 45% do PIB, aqueles que Ricardo Paes de Barros afirma que pesam o bastante para distorcer a média nacional de desigualdade de renda? Quanto custam os “auxílios” todos que o Imposto de Renda lhes perdoa? E os “comissionados” que mais que dobraram o gasto público sem que mudasse um milímetro a quase miséria dos médicos e professores concursados? Como vivem os aposentados e pensionistas sem cabelos brancos que, 900 mil apenas, pesam mais que os outros 32 milhões que pagaram Previdência a vida inteira somados?

Quanto, afinal de contas, o Brasil com “lobby” suga do Brasil sem “lobby”? A esta altura do desastre todo debate que se desvia dessa pergunta é enganação; toda pauta que não se oriente por essa baliza da desigualdade perante a lei é uma traição aos miseráveis do Brasil.

O mais é circo. Eduardo Cunha e o PT nos provam, acinte por acinte, o quão livre e indefinidamente se pode escarnecer da lei neste país desde que se esteja posicionado na altura certa da hierarquia corporativista. Variam as razões alegadas para se locupletar mas ninguém nega que é disso mesmo que se trata. São meses, são anos – são séculos, considerado o Sistema desde o nascimento – desse joguinho de sinuca silogística invocando pedaços de fatos para negar os fatos, meias verdades para servir à mentira, cacos de leis para legalizar o crime e o país inteiro esperando pra ver o que vai sobrar.

O jogo é esse porque nós o aceitamos. Não faz muito o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação fez a compilação: até 2014, já tinham sido editadas 4.960.610 leis e variações de leis para enquadrar nossa vida do berço ao túmulo desde que a Constituição foi promulgada em 1988. 522 a cada 24 horas destes 27 anos. 320.343 eram normas tributárias, 46 novas a cada dia útil!

É esse o truque: quem pode estar em dia com tudo isso no país onde a única função discernível do aparato legal é tornar impossível cumpri-lo?

Não fazer sentido é o elemento essencial do Sistema. Daí a palavrosidade ôca valer mais que os fatos nos nossos plenários e nos nossos tribunais. Se houvesse um meio racional de escapar, uma forma segura de se prevenir, uma regra que pudesse ser cumprida perdia-se o caráter de onipotência da autoridade constituída. Tem de ser irracional. Tem de ser impossível escapar deste “vale de lágrimas” a não ser pela unção dos “excelentes” com ou sem batina, ou toda essa indústria se esboroa. É ao que sempre estivemos acostumados…


Esboça-se uma resistência mas ela é isolada. Só vai até onde pode ir o pedacinho são da 1º Instância do Judiciário. E quem mais a saúda é quem mais a apunhala. Até agora, nem de leve foi arranhada a isenção a essa condição de permanente exposição à chantagem em que vivemos para os que a desfrutam por pertencer a corporações privilegiadas. A “lista de Teori” continua trancada e secreta. Foram afastados, sujeitos a confirmação, os que destruiram a obra de toda uma geração, mas não por isso; porque ficou claro que sua permanência implicaria a morte da galinha-dos-ovos-de-ouro. Mesmo assim, vultos sinistros nadam por baixo da decisão final do Senado. Só quem desafia a hierarquia do Sistema está sob ameaça real de remoção. Até Teori é objeto de chantagem. Mas o Sistema mesmo nunca esteve em causa.

Os “grandes empresários“? Estes jamais estiveram realmente isentos. “Culpados” por definição como somos todos e eles mais que os que jogaram menos, são os “hereges” da vez. Festeje-se com realismo, portanto. Nesse nosso modelo lusitano o Tesouro Real sempre saiu dos seus apertos com grandes Autos-de-Fé em que re-devora as “nobrezas” que fabrica.

“Eles”, os “nós” dos comícios do Lula, estes sim, continuam sem crise como sempre. São regidos por leis e julgados por tribunais que só valem para eles. Têm regimes de trabalho, remuneração e aposentadorias só seus. Entram no seu bolso a qualquer hora e sem pedir licença.

Dessa casta fazem parte réus e juízes da presente refrega. Desde que a corte de d. João VI desembarcou no Rio de Janeiro chutando os brasileiros para fora de suas casas seguem, todos, deitados no berço esplêndido da indemissibilidade para todo o sempre que se auto-outorgaram, tão “blindados” que já nem uns conseguem expulsar os outros quando a disputa pelos nossos ossos os leva a considerar exceções à sua regra de ouro. Reagem com fúria se alguém tenta devassar-lhes os segredos, vide Gazeta do Povo x Judiciário; Estadão x Sarney.

O “ajuste” começa pelo ajuste do foco. Por mais heróico que seja o esforço não se porá o país na reta correndo atras de tudo que essa máquina de entortar fabrica em série. Deixada como está, fará do herói de hoje o bandido de amanhã, sejam quantas forem as voltas no mesmo círculo. É preciso rever a conta que está aí pela ótica da igualdade perante a lei e, a partir daí, inverter, de negativo para positivo, o vetor primário das forças que atuam sobre o Sistema. O voto distrital com “recall” acaba com essa indemissibilidade e, com isso, põe o poder nas mãos do povo. Daí por diante tudo passa a ser feito pelo povo para o povo.

Aí sim, funciona.

Dilma II - a volta ao poder

São cinco horas da manhã, e estou na fila para comprar comida e, se tiver sorte, papel higiênico. Penso muito no passado mais recentes de meu país tão quebrado hoje, país que sempre foi regido por seu passado; hoje analiso-o do futuro. Em que ano estou? Minha lembrança mais antiga jaz no deserto, quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente Médio, chegando até as bordas de Israel-Palestina, já considerada “área insolúvel”. Depois da bomba que o presidente Trump lançou no Paquistão – hoje conhecido como Talebania –, muita coisa aconteceu nesses anos loucos.

Mas vou me ater às memórias do Brasil.

Aqui, passados muitos anos, me lembro ainda do calafrio que senti no dia em que Dilma voltou ao governo. Lembro-me de seu olhar gelado de vingança, perdoada pelo Senado, graças à aquisição de três senadores por R$ 10 milhões cada um.

Lembro-me de Dilma proclamando na ladeira do Planalto: “Vamos retomar a Nova Matriz Econômica! Gasto público é vida!”

Mantega já a esperava lá no alto, vendo a equipe econômica do Temer se esgueirando pelos fundos. E aí foi aquele carnaval bolivariano.

O MST encheu a Esplanada de miseráveis erguendo enxadas depois de terem arrasado a agroindústria, a CUT convocou milhares dos 12 milhões de desempregados e, com ônibus e sanduíches de mortadela, animou-os com a promessa de trabalho, protegidos pelos black blocks, agora nomeados a “guarda revolucionária da presidenta”. Acabou a insuportável Lei de Responsabilidade Fiscal, voltaram pedaladas muito maiores, pedaladas agora chamadas de “revolucionárias”, até que o real despencou face ao dólar, sendo cotado a R$ 13,788. Aí, elementos desobedientes e, segundo o PT 2, da “direita neoliberal” começaram a reclamar da fome, querendo fazer greves. Muitos sem-teto invadiram a sede da Petrobras para fazer suas moradias.


Mas Dilma e seus assessores logo conclamaram brilhantes intelectuais, professores e artistas para explicar ao povo que seu sofrimento era “belo e corajoso”, porque eles estavam penando por causa dos ricos e que um dia (sempre falavam “um dia”) o Brasil seria um paraíso social. O povão, como sempre, não entendeu nada e continuou passando fome, só que mais conformado, porque nossos intelectuais tinham explicado que há uma “pureza doce na miséria”, que a dor dignifica e fortalece para as lutas futuras. E proclamaram: “É melhor um país pobre do que desigual. Que todos sofram igualmente!” Os miseráveis se sentiram importantes, porque sofriam em nome do socialismo.

Mas a nova crise, chamada por Dilma de Crise 2 ,não dava refresco. A inflação cresceu com todos os seus demônios, batendo a “bela marca” de 1992, de 80% ao mês. Imediatamente, a Nova Matriz Econômica 2 revigorou a inesquecível tradição do passado – a correção monetária. E o Brasil reviveu os dias emocionantes com a volta do “overnight”. As maquininhas de “tlec-tlec” para a remarcação encheram os supermercados (cada vez mais vazios) com a doce melodia dos anos de ouro da inflação. Mas, segundo o Governo da Presidenta – Parte 2, canalhas neoliberais e a mídia conservadora diziam que a vaca ia para o brejo.

A pressão foi grande, e os assessores do Planalto notaram, preocupados, que Dilma começou a delirar, falando compulsivamente que “ela não era vaca no brejo”, que “gasto publico é vida”, que a mandioca e os homens sapiens iam nos salvar, que ela iria saquear (usou a palavra) o Tesouro acumulado pela “burguesia” de direita no Estado para financiar um grande consumo de geladeiras e fogões. A medida fascinou os pobres, que se acotovelaram em frente às vitrines de TVs e liquidificadores. Só que ninguém podia mais comprar nada.

Dilma engordou brutalmente – tinha gastado dez vezes mais em comida para o Alvorada, numa compulsão compensatória.

Mas a pressão ficou tão grande que ela caiu em depressão profunda e foi internada numa clínica de sonoterapia, onde dormiu até o fim do mandato, pois os médicos recomendaram que ela não visse “a cagada que tinha aprontado de novo”.

Lula sucedeu-lhe em 2018, continuando em 2022, criando uma dinastia de si mesmo, reeleito em vários mandatos, até 2034, quando ele já não falava mais e tinha sido mumificado num carro de vidro que desfilava entre a multidão de fiéis ajoelhados. Quando se iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado no Museu Bolívar, um palácio de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer. A partir daí, tudo começou a desmoronar. A própria ideia de “país” ficou questionada porque, na realidade, tínhamos virado um arquipélago de poucas ilhas de vida social, cercadas de merda por todos os lados.

Alguns chegaram a sugerir que o Brasil fosse cortado em pedaços, ficando o “capitalismo escroto neoliberal” em São Paulo e o Nordeste com uma espécie de socialismo feudal, uma mistura de Renan, 96, com o bolivariano ex-Maduro, devorado por milícias famintas em 2025.

A corrupção diminuiu muito nessa época, não pela operação Lava Jato, mas porque não havia mais grana nenhuma no Tesouro para roubar.

Brasília ficou mais vazia. Como abastecer aviões públicos e privados sem combustível?

Poucos políticos vagavam pela praça dos Três Poderes abordando até transeuntes em busca de algum bom negócio. Eduardo Cunha, 87, acusado do assassinato de Janot, foi morar em um truste na Suíça. Nessa fase, houve o Segundo Crash da Bolsa de NY, entre nuvens de suicidas e filas de desempregados.

Aqui foi uma surpresa. O Brasil afundou mais ainda, e nada aconteceu. Houve, claro, legiões de famintos atacando os supermercados, mas logo ficou claro que a miséria é autorregulável. Muito simples, explicaram os acadêmicos: a fome diminui a população, dado benéfico para a incrível falta de comida, provocada pela decisão acertada do governo de jamais cortar gastos fiscais.

As lembranças me emocionam por sua dor e delícia. Sofro com o fim do país, mas sorrio com um prazer meio perverso, rememorando os estrambóticos delírios da política porra-louca. A fila andou. Consegui entrar no supermercado com minha carteira de consumidor na mão. Mostrei minhas digitais. Numa prateleira, ainda há uma caixa de biscoitos. Corro, mas um cara chegou antes e levou. Pergunto ao agente militar do supermercado onde é que está o papel higiênico.

Acabou, disse ele. E, ao ver meu suspiro de desconsolo, riu irônico e acrescentou: “Limpa com o dedo!...”

As covulsões da América Latina: três mitos

O mundo não está interpretando corretamente as mudanças que estão ocorrendo na América Latina. Popularizaram-se, em especial, três ideias que, embora guardem certa relação com a realidade, não refletem adequadamente o que está acontecendo nesta região.
1) A América Latina repudiou a esquerda e deu uma guinada para a direita. Não é assim. Os eleitorados latino-americanos não experimentaram uma profunda mutação ideológica, e sim uma profunda desilusão econômica. Os Governos de esquerda que regeram os destinos da América Latina desde o começo do século XXI contaram com o dinheiro gerado pelos altos preços internacionais das matérias-primas que exportam para estimular maciçamente o consumo. Isto, obviamente, os tornou muito populares. Com a queda no preço das exportações e, portanto, da capacidade do Estado de continuar financiando o consumo, desmoronou o apoio popular a esses mandatários. A família Kirchner deixou o poder na Argentina, e seu candidato perdeu as eleições. No Brasil, Dilma Rousseff está fora, e Lula da Silva, desprestigiado. Na Venezuela, o sucessor de Hugo Chávez, Nicolás Maduro, preside uma inédita catástrofe econômica e política. No Peru, Pedro Pablo Kuczynski, um empresário, será o próximo presidente. Na Bolívia, Evo Morales foi derrotado em sua tentativa de alterar a Constituição para poder disputar um novo mandato presidencial.

Mas essas elites políticas “de esquerda”, agora deslocadas, não estarão para sempre fora do jogo. As correções à política econômica que os novos Governos latino-americanos se verão obrigados a fazer serão impopulares e criarão oportunidades para que os políticos saibam capitalizar a nostalgia pelos bons tempos de Chávez, Kirchner e Lula.

2) Acabou-se o populismo. Não. A propensão dos políticos a dizer o que os eleitores querem ouvir nunca acaba. Essa é uma prática da esquerda e da direita, de laicos e religiosos, de verdes e desenvolvimentistas. Nenhum político pode se dar ao luxo de desdenhá-la, e por isso o populismo existe em todas as partes, dos Estados Unidos à África do Sul. O populismo se torna um problema quando os políticos perdem qualquer pudor em propor o que sabem que não poderão cumprir, em promover sedutoras políticas que na prática são tóxicas, ou em lançar iniciativas que dividem a sociedade. E, evidentemente, um problema ainda maior que a desonestidade de alguns quantos políticos populistas é a ingenuidade dos milhões de seguidores que acreditam nas suas atraentes mentiras.

A abundância econômica que a América Latina viveu no começo deste século permitiu que o populismo “de sempre” se transformasse em “superpopulismo”, alcançando assim os níveis inéditos que vimos na Venezuela de Chávez e na Argentina dos Kirchner. Esse populismo escancarado é que acabou. Não porque as pessoas não acreditem mais nas ideias ruins, porém atrativas, que os populistas promovem, e sim porque não há mais dinheiro para financiá-las. Assim, voltará o populismo “normal”.

3) A América Latina por fim está lutando contra a corrupção. Em parte sim. Mas… Não há dúvida de que a defenestração política da presidenta do Brasil tem muito a ver com o gigantesco escândalo de corrupção que ocorreu durante seu mandato e o de seu antecessor, Luis Inácio Lula da Silva. O presidente da Guatemala também foi destituído e está na prisão sob a acusação de corrupção. No México, o Governo de Enrique Peña Nieto está muito fragilizado pelos escândalos que envolvem vários de seus principais líderes. Michelle Bachelet no Chile também se viu afetada por um escândalo que alcançou seu filho e sua nora. Na Argentina, a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner e pessoas do seu entorno mais próximo enfrentam graves acusações.

As gigantescas passeatas de protesto contra a corrupção se tornaram comuns em muitos países da América Latina. O repúdio popular à corrupção também serviu de apoio a novos protagonistas que estão fazendo a diferença nessa luta: juízes e promotores valentes que estão com sucesso enfrentando os corruptos, inclusive aqueles, por seu poder político ou econômico, pareciam intocáveis.

Essa nova intolerância à corrupção é tão bem-vinda como os sucessos dos juízes “caçadores de corruptos”. Mas é preciso tomar cuidado. A luta contra a corrupção não deve depender da boa vontade ou da valentia de indivíduos, e sim da existência de instituições e regras que desestimulem a corrupção, eliminem a impunidade e aumentem a transparência nos atos de governo. Colocar os orçamentos públicos na Internet e permitir que todos saibam como as verbas são gastas, reduzir o número de decisões discricionárias que os funcionários públicos podem tomar e desenvolver um marco jurídico eficiente e confiável são exemplos de maneiras mais sérias de lutar contra a corrupção do que apostar no surgimento de um presidente honesto ou de um juiz corajoso.

Aposentadoria por vagabundagem


Eu já estou com uma idade de me aposentar
Lula, desempregado desde 1980

Mentalidades

O Brasil vive um processo particularmente complexo de transição de uma mentalidade patrimonialista, “aprimorada” em seu caráter bolchevique graças aos governos petistas, para uma mentalidade moderna, própria de um Estado em que começa a vigorar o império da lei.

Ou seja, estamos presenciando uma difícil transição do governo de uma classe política acostumada a manipular leis e instituições, como se estas devessem estar a seu serviço e proveito, para um governo ancorado em instituições, cujo validade transcende à ação direta dos políticos.

As gravações do ex-senador Sérgio Machado com os senadores Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney são, neste sentido, particularmente ilustrativas. Com efeito, elas exibem intenções e tentativas de manipulação das leis e instituições, como se ações junto a ministros e juízes fossem de natureza, por si sós, a alterarem todo um processo judicial.

De fato, estavam e estão acostumados a um tipo de comportamento que se espelha em uma concepção patrimonialista, como se a coisa pública não estivesse a serviço da coletividade, mas de seu proveito próprio e pessoal.

Não se trata, aqui, somente da questão de se tal comportamento configura ou não um crime determinado como obstrução de Justiça, mas de um tipo de atitude que se pauta, como se fosse seu direito próprio, em considerar leis e instituições como se pudessem ser modificadas a seu bel-prazer.

Mais especificamente, habituaram-se à impunidade como se as leis a eles não se aplicassem. Espantam-se com o que está acontecendo, pois não perceberam que o país está mudando, e esta mudança está fortemente ancorada em uma sociedade que está dando um basta a esta mentalidade.

Caberia aqui uma observação relativa ao suposto “patrimonialismo” petista. Lê-se frequentemente, inclusive em intelectuais de esquerda, que o PT teria incorrido nas práticas dos partidos políticos tradicionais, como se, em sua pureza, ele tivesse sido seduzido pelo atraso.

Os petistas procuram se desresponsabilizar do que fizeram, dizendo ter feito somente mais do mesmo. Igualam-se para se eximirem de sua própria culpa. Tal posicionamento tem ainda o objetivo de manter a pureza da ideia de esquerda, como se esta pudesse simplesmente ser recuperada sem nada reconhecer de feito próprio.

Ora, a corrupção petista é fruto do aparelhamento partidário do Estado, com o intuito de, progressivamente, levar a cabo uma transformação socialista da sociedade brasileira. Ela é bolchevique. Para eles, esse aparelhamento e a sua corrupção seriam meros meios de uma progressiva mudança revolucionária.

Ou seja, a corrupção, para além dos benefícios pessoais, seria um instrumento de captura da sociedade e de controle, para isto, de seus meios de comunicação privados. Nesta perspectiva, a corrupção petista, de caráter político revolucionário, inscreve-se na tradição patrimonialista para dela tirar proveito. A corrupção e o aparelhamento partidário do Estado pertencem à própria ideia de esquerda, fazem parte de sua essência.

O que é particularmente interessante no cenário político atual é a clivagem estabelecida entre a sociedade e a classe política. A primeira se caracteriza por valores não patrimonialistas, exigindo de seus representantes um comportamento condizente com a proteção pública dos recursos públicos.

Não mais admite que os recursos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, entre outros, sejam drenados pela corrupção, desviados de seus objetivos específicos.

Ela abomina o fisiologismo, a barganha de cargos e todo esse espetáculo explícito de negociação ou de negociatas de posições, emendas e outras benesses em detrimento do bem público. Para isto, foi às ruas e criou as condições do impeachment.

A sociedade brasileira não se deixou corromper, e talvez seja este o nosso maior ativo, um patrimônio propriamente nacional. Ela clama, portanto, por um novo Estado, livre do patrimonialismo histórico brasileiro e de sua vertente petista. Ela já efetuou uma mudança de mentalidade, que não ocorreu ainda na classe política, que dela fica a reboque.

A operação Lava-Jato, por sua vez, é a expressão desta nova mentalidade que já opera no nível propriamente estatal. Ela começa a fazer valer o governo das leis e instituições, resgatando a ideia propriamente republicana de coisa pública. Sua tradução mais imediata é a punição de poderosos, daqueles que viviam à margem da lei, desrespeitando as instituições e considerando a coisa pública como se fosse privada.

A impunidade, graças a ela, está sendo progressivamente abolida, trazendo agentes políticos e empresariais às suas respectivas culpas e responsabilidades. Tudo isto, evidentemente, surpreende, precisamente por revelar o surgimento de uma nova mentalidade em um setor da burocracia estatal, no caso no Judiciário, no Ministério Público e na Polícia Federal.

A sociedade se sente na Lava-Jato representada. Na verdade, esta não teria condições de ser bem-sucedida se não contasse com esse imenso apoio social. O país se modernizou socialmente. Goza de uma ampla liberdade de expressão, com jornais independentes, investigativos e de opinião, em linhas gerais em defesa do avanço da democracia.

Para todos os efeitos, não se trata de um movimento social dirigido contra um partido determinado, mas de afirmação de novos valores e princípios, voltando-se contra qualquer partido que não seguir esses novos valores. Ontem o PT foi o foco principal, hoje é o PMDB, talvez amanhã seja o PSDB ou qualquer outro partido. A moralidade pública tornou-se um princípio da sociedade, e esta exige que a classe política se paute por este novo padrão político.

A ética na política é atualmente um bandeira social. Exige a prudência que a classe política e o novo governo entrem em sintonia com uma sociedade portadora de uma nova mentalidade.

Denis Lerrer Rosenfield

Programas de governo e partidos são uma ode ao vazio


Alguém será capaz de resumir o programa do governo Michel Temer? Em dez postulados que sejam, quem se anima? Também, nos cinco anos de exercício no poder, como se definiria o governo Dilma? É bom nem olhar para trás, no caso, os dois mandatos do Lula. E outros, de Fernando Henrique a Fernando Collor e a José Sarney. Escapa apenas Itamar Franco, para depois cairmos no período militar.

A conclusão é de faltar um plano diretor ao Brasil. Nas sucessivas administrações da Nova República, inclusive agora, com Michel Temer, nunca apareceram programas ordenados e definidos. A começar pelas mais recentes. No máximo um conglomerado de iniciativas esparsas e conflitantes, sem começo, meio ou fim.

Ficará sem resposta quem indagar o que pretende Michel Temer. Habitamos um país sem rumo.

Também, um país sem partidos, em meio a 35 legendas que naufragam. Nos programas de todos, batem cabeça as siglas mais diferentes, a maioria utilizando rótulos como “social”. “democrata”, “dos trabalhadores” ou “populares”. Até os “comunistas” nada tem a ver com os complementos.

Quando se volta a falar em definições, bem que valeria à pena convocar seus dirigentes para ver como carecem de objetivos. Do PMDB ao PT e ao PSDB, configuram uma ode ao vazio. Uma falta de metas.

Onde o povo está

Por que nunca antes, em qualquer lugar do mundo, houve um programa de combate à inflação que durasse décadas? Por que estaríamos condenados à mais longa sequência de bilionários escândalos políticos da História? “Enormes somas passando pelas mãos do Estado”, diria Marx. “Impunidade”, diriam Barbosa e Moro. “Faltou a dimensão fiscal”, diria o Prêmio Nobel em Economia de 2011, Thomas Sargent. Estariam todos certos.

A ininterrupta escalada dos gastos públicos como porcentagem do PIB foi um problema estrutural herdado do antigo regime militar e agravado por sucessivos governos de uma obsoleta social-democracia, que lubrifica fisiológicas alianças com o descontrole de gastos. Foi essa falta de compromisso com o controle dos gastos públicos o calcanhar de aquiles de todos os nossos programas de estabilização. Levando sempre ao aumento dos juros e à elevação dos impostos na tentativa de frear a aceleração inflacionária, derrubou investimentos e nossa dinâmica de crescimento a longo prazo.

A corrupção na política e a armadilha do baixo crescimento na economia são as duas faces de um governo central hipertrofiado e disfuncional. A proposta de emenda constitucional para o controle dos gastos públicos federais é fundamental para escaparmos a essa armadilha. As degeneradas práticas políticas sob investigação da Lava-Jato estão também associadas à concentração de poder no Executivo federal, à hipertrofia da engrenagem estatal e à centralização administrativa.

São legítimas as ampliações de gastos de uma democracia emergente em saúde, educação e previdência. É meritória a democratização dos orçamentos públicos com programas de transferência de renda. Mas a implementação descentralizada das políticas públicas é uma exigência e também uma garantia de serviços mais eficientes. Controles locais, menos corrupção.

O povo vive nos estados e nos municípios, e não em Brasília. O dinheiro da saúde, da segurança, do saneamento e da educação precisa ir aonde o povo está. A reforma administrativa do Estado para enxugamento radical do número de ministérios e descentralização de recursos fiscais para estados e municípios, apoiada por um pacto federativo, torna possível essa troca de eixo na sustentação parlamentar e na gestão dos recursos públicos.

Paulo Guedes

República de boteco


É inegável que o Brasil se tornou uma república egoísta, corporativista. Temos socialistas de botequim, ganham altos salários, cuidam dos seus interesses corporativos e entre um champanhe e outro fazem discursos pelos pobres
Gilmar Mendes, ministro do STF

Reunião de bacana

Se os Originais do Samba estivessem ainda atuando, certamente não seriam convidados para cantar em Brasília o sucesso de Ari do Cavaco, “Reunião de Bacana: “se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”. O risco seria o Congresso Nacional ficar quase entregue às moscas.

O compositor morto em 2011 era um visionário: previu a Lava Jato

Imaginem se ele ainda hoje estivesse compondo seus sambinhas, num ambiente onde até o Japonês da Federal foi em cana.....

Não se sabe se outros expoentes da corrupção vão seguir o mesmo caminho. Parece que não. Duvida-se que o Supremo encane Renan Calheiros, Romero Jucá, José Sarney e Eduardo Cunha, entre outros menos votados. Pelo menos agora. Como até hoje não encanou o Lula.

A impressão que se tem é que não vai acontecer nada e que o Japonês da Federal vai ficar sozinho na sua cela.

Parece que ninguém quer se meter com políticos de peso, resumindo as punições mais severas a empresários e afins. Coitado do Delcidio do Amaral, bode expiatório cujo exemplo não serviu para nada.

Como vivemos um momento de vergonha nacional, convenhamos que prender o Presidente do Senado a esta altura do campeonato poderia colocar em risco o processo de impeachment: seria uma jogada magistral em apoio aos que querem a volta de Dilma.

Há quem esteja se perguntando se o Janot estaria jogando no time do PT com estes pedidos de prisão que só agora vieram à tona.

O Supremo deve ter desconfiado que só deve mandar prender o Renan depois da votação final do impeachment, para não bagunçar ainda mais o coreto.

Enquanto isso, a corrupção segue em frente solta e faceira, com políticos roubando até de merenda escolar, muitos deles protegidos pelo infame foro privilegiado, excrescência que persiste. E que vai persistir. Julio Cesar já dizia em pleno senado romano que não existe congresso suicida. Nenhum dos “ínclitos” representantes do povo vai querer diminuir seus privilégios tão ”duramente conquistados” através de campanhas infladas com dinheiro sujo.

E nada de reforma politica, sem a qual não há futuro que se possa vislumbrar para o país, dentro do regime democrático.

Infelizmente, parece que o modelo italiano da Operação Mãos Limpas vai ser tropicalizado, deixando os figurões da política e as empresas corruptas atuando impunemente. As grandes empreiteiras que estão afanando os cofres públicos teriam que acabar mesmo com sua prática histórica de mamar nas tetas do governo e mudar de ramo. É uma falácia dizer que sem elas o Brasil vai parar, quando, na verdade, foram elas que pararam o Brasil. Tem um monte de outras empreiteiras menores que pegariam o serviço de bom grado, e em moldes mais decentes dos que os atuais. Pelo menos no início...

Outro dia assisti no SECOVI mais uma brilhante palestra do professor Modesto Carvalhosa, que, na sua luta contra a corrupção, continua se batendo pela adoção pelo Brasil dos “performance bonds”, que colocam as seguradoras entre as empreiteiras e o governo, zelando e garantindo que as obras sejam feitas de acordo com o orçado e dentro dos cronogramas estabelecidos. “Performance bond” existe nos Estados Unidos há 120 anos.

Mas, ao que tudo indica, as coisas não vão mudar muito, a despeito da Lava Jato. As declarações gravadas de Renan, Jucá, Sarney e Cunha são a mais clara demonstração de que no fundo eles não querem consertar o Brasil. Querem deixar as coisas como estão, manter um “status quo” que lhes trouxe enormes benefícios e lhes permitiu amealhar colossais fortunas inconfessáveis.

A boa notícia é que pelo menos o Eduardo Cunha está em maus lençóis, com sua mulher tornada ré. Ela, que tanto esbofeteou nossa cara esbanjando riqueza e luxo pelo mundo afora, está seriamente arriscada a passar uma boa temporada na cadeia sem poder usar a enorme quantidade de bolsas e sapatos Chanel e Luis Vuiton que comprou nos últimos tempos. E pode levar seu marido junto, ele que continua dizendo que não tem contas bancárias no exterior.

O fato é que de ouvir tantos e tantos escândalos, um atrás do outro, não me sai da cabeça o samba “Reunião de Bacana” e seu refrão magistral e contemporâneo: “se gritar pega ladrão, não sobra um meu irmão.

Talvez esteja aí a chance do Brasil recomeçar.

Ociosidade remunerada

A Comissão de Ética Pública chiou quando o ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, demitiu o Secretário-executivo do órgão. O presidente da comissão, Mauro Menezes, decidiu questionar o ministro e pedir a recondução de Hamilton Cruz, cujo afastamento não foi bem explicado. Mas nos bastidores a notícia que corre é que ele estaria protegendo auxiliares da Dilma na análise das quarentenas que já beneficiou mais de trinta. Assim, no ócio remunerado, eles vão permanecer por seis meses.

No final dos 120 dias mais de 10 milhões de reais terão saído dos cofres públicos para dar boa vida a ex-ministros como Jaques Wagner (Lava Jato), Aloizio Mercadante (Lava Jato), Miguel Rosseto (Lava Jato), Valdir Simão, Inês Magalhães, Eva Chiavon, Carlos Gabas, José Eduardo Cardozo, Tereza Campello e Luiz Navarro entre outros.


Imagine que nesse trem da alegria até o ex-secretário de Imprensa Rodrigo de Almeida também queria ocupar uma das poltronas especiais como se guardasse com ele segredos de estado. Em boa hora, o Tribunal de Contas da União impediu a sua entrada no comboio de luxo. Com isso, Almeida vai fazer companhia aos mais de 11 milhões de desempregados que a sua chefe produziu apenas nos últimos dois anos de governo.

Os petistas da quarentena alegam ser legal. Dizem estar protegidos pela lei que eles mesmos criaram. Está escrito na lei 12.813/2013 que aqueles que tenham exercido cargo de ministro ou algum outro no alto escalão do governo federal devem ficar de "quarentena" por seis meses recebendo os salários integrais.

É verdade, é legal. Mas é imoral. Como ela onera os cofres públicos e acarreta prejuízo ao contribuinte deve ser revogada. Essa lei pode ser inconstitucional na medida em que provoca sérios prejuízos à nação. Ora, se até as regras do seguro desemprego, que envolve milhões de trabalhadores, estão mudando o que impede o governo de acabar com a quarentena que privilegia uma elite que exerceu cargos por indicação política?

Esse negócio de ministro não trabalhar depois que deixa o governo é pura balela. A alegação de que ele detém segredos de estado e, portanto, fica vulnerável na iniciativa privada é outra falácia. Para evitar isso, bastava uma lei que punisse aqueles descobertos revelando segredos de estado e não uma lei para beneficiá-los, como se o tempo os deixassem mudos.

Você acha, por exemplo, que a quarentena iria inibir que os ex-ministros Zé Dirceu e Erenice Guerra intermediassem negócios do governo com a iniciativa privada? Pois é, assim que deixaram o poder logo montaram escritórios de lobbys para fazer negócios com empreiteiras, como mostram as investigações da Lava Jato.

Zé já foi condenado. A Erenice continua impune, na boa vida, mesmo depois dos escândalos e das revelações de segredos de estado para a iniciativa privada, como foi acusada por empresários à época. Quando deixou o governo, foi submetida a investigação da Comissão de Ética. Inocentada, continuou na gatunagem.

Diante de tanta parcimônia da Comissão de Ética Pública, seus integrantes ainda têm a cara de pau de pedir a recondução do Secretário–executivo, que comete deslizes, sob a ameaça de paralisar os trabalhos. Como? Qual a contribuição dessa comissão ao país desde que foi criada? Nenhuma, zero. Só serviu para dar certificado de inidoneidade a alguns pilantras do governo envolvidos em crimes de corrupção.

O TCU já detectou a imoralidade das quarentenas e promete tratar com mais rigor os novos pedidos. A recusa em não autorizar a solicitação de secretário de imprensa é um bom sinal. Espera-se, portanto, que a análise ética e sem apadrinhamento prevaleça nas próximas avaliações, mesmo sendo imoral. Afinal de contas, os mais 11 milhões de brasileiros desempregados não podem sustentar a malandragem de um grupelho que destroçou a economia e deixou tanta gente na rua da amargura.

Sensatez militar

O presidente interino não chega a ser o líder que sonhamos, mas ele é a esperança disponível para a travessia desse período negro da nossa história política e garantir, num clima de relativa Paz, as eleições gerais de 2018. E aí que se ouça a voz da sociedade. E que tenhamos juízo
General Gilberto Pimentel, presidente do Clube Militar

Gente louca

O gato sorriu quando viu Alice. Parecia bem disposto, mas , mesmo assim, tinha umas grandes unhas e muitos dentes, por isso era melhor tratá-lo com respeito.

- Gatinho - chamou Alice, bastante receosa, pois não estava certa que ele gostasse de ser tratado assim. Mas o Gato sorriu ainda mais. «Até agora não se zangou», pensou Alice. E continuou: - Podes dizer-me, por favor, como hei-de sair daqui?

- Isso depende muito do sítio para onde quiseres ir - respondeu o Gato.

- Não me interessa muito para onde...- disse Alice.

- Nesse caso, podes ir por um lado qualquer - respondeu o Gato.

- Desde que vá ter a qualquer lado - acrescentou Alice, em jeito de explicação.

- Oh, para que isso aconteça, tens de caminhar muito - disse o Gato.

Alice achou que isto era inegável e por isso tentou outra pergunta:

- Que espécie de gente vive por aqui?

- Naquela direcção - disse o Gato, levantando a pata direita - vive um Chapeleiro, e naquela, uma Lebre de Março. Vai visitar o que quiseres, são ambos loucos.

- Mas eu não quero estar ao pé de gente louca - respondeu Alice.

- Oh, não podes evitá-lo - disse o Gato. - Aqui todos são loucos. Eu sou louco. Tu és louca.

- Como sabes que eu sou louca? - perguntou Alice.

- Tens de ser, de outro modo não estarias aqui.

Alice não achava que isso provasse coisa nenhuma, mas continuou:

- E como sabes que és louco?

- Para começar, um cão não é louco. Aceitas isso? - perguntou o Gato.

- Creio que sim - respondeu Alice.

- Bem, nesse caso... - continuou o Gato. - Um cão rosna quando está zangado e abana o rabo quando está satisfeito. Ora eu rosno quando estou satisfeito e abano o rabo quando estou zangado. Por isso sou louco. 

Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas"

Lula desce ao inferno da 'República de Curitiba'

Hoje em dia, segundo uma crença que se espraia por toda a oligarquia nacional, Curitiba é outro nome para inferno. Inquéritos sempre existiram. A novidade —que não começou agora, mas ganhou escala industrial com a Lava Jato— é que o investigador, o procurador e o juiz passaram a investigar, procurar e julgar como se todos fossem iguais perante a lei.

“Sinceramente, eu tô assustado com a República de Curitiba!”, exclamou Lula no grampo que o juiz Sérgio Moro mandou instalar em março, quando ainda ajustava o nível das labaredas reservadas ao pajé do PT. Para fugir da grelha do doutor, Lula topou tudo, inclusive virar subordinado da sucessora que carregara nos ombros em duas eleições. Trocou a condição de ex-presidente pela de piada.



Depois de fracassar no sonho do poder eterno, Lula tentou pelo menos evitar a realização dos seus pesadelos. Não deu. Na noite passada, o ministro Teori Zavascki, relator da Lava Jato no STF, enviou a anedota para o inferno. E Lula amanhece nesta terça-feira (14) sob o tridente do doutor Moro. Junto com ele, desceram do Supremo à grelha três ex-ministros petistas: Edinho Silva, Jaques Wagner e Ideli Salvatti.

Brasília conviveu razoavelmente com a Justiça convencional, que desafiava autoridades, mas não atentava contra a integridade do sistema inteiro. O petismo aguentou os seus anos de decomposição escorando suas desculpas no cinismo e protegendo seu líder atrás do escudo do “eu não sabia”. Mas a Lava Jato abalou tradições e costumes. Foram em cana pessoas que se imaginavam acima da lei.

O inferno registra altos índices de produtividade. Em dois anos, Sérgio Moro proferiu 105 condenações. Somam 1.140 anos, 9 meses e 11 dias de prisão. A frase “onde é que isso vai acabar?” perdeu momentaneamente o sentido. Até onde a vista alcança, não acaba. Ou por outra: Lula chegou, finalmente, a uma República onde o descalabro costuma acabar na cadeia.

O bichinho que desafia Deus

“Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz”, escreveu Milan Kundera emA Insustentável Leveza do Ser. E tem algo que fala, ou melhor, grita, numa praia de Badalona, perto de Barcelona: a que é dominada pela Ponte do Petróleo. Por esse dique de 250 metros, que penetra no mar Mediterrâneo, eram descarregados produtos petrolíferos até o final do século XX. E a seus pés se levanta desde 1870 a fábrica do Anís del Mono, o licor em cujo rótulo aparece um símio com cara de Charles Darwin em referência à teoria da evolução, que gerava polêmica na época.

Hoje, a Ponte do Petróleo é um belo mirante com uma estátua de bronze dedicada ao macaco com rosto darwinista. E, por um acaso que fala, entre seus frequentadores se encontra uma equipe de biólogos evolutivos do departamento de Genética da Universidade de Barcelona. Os cientistas caminham pela passarela sobre o oceano e lançam um cubo para fisgar um animal marinho, o Oikopleura dioica, de apenas três centímetros, mas que possui boca, ânus, cérebro e coração. Parece insignificante, mas, como Darwin, faz estremecer o discurso das religiões. Coloca o ser humano no lugar que lhe corresponde: com o resto dos animais.

“Temos sido mal influenciados pela religião, pensando que estávamos no topo da evolução. Na verdade, estamos no mesmo nível que o dos outros animais”, diz o biólogo Cristian Cañestro. Ele e o colega Ricard Albalat dirigem um dos únicos três centros científicos do mundo dedicados ao estudo do Oikopleura dioica. Os outros dois estão na Noruega e no Japão. O centro espanhol é uma salinha fria, com centenas de exemplares praticamente invisíveis colocados em recipientes de água, num canto da Faculdade de Biologia da Universidade de Barcelona.

“A visão até agora era que, ao evoluir, ganhávamos em complexidade, adquirindo genes. Era o que se pensava quando os primeiros genomas foram sequenciados: de mosca, de minhoca e do ser humano. Mas vimos que não é assim. A maioria de nossos genes está também nas medusas. Nosso ancestral comum os possuía. Não que tenhamos ganhado genes; eles é que perderam. A complexidade genética é ancestral”, diz Cañestro.

Em 2006, o biólogo pesquisava o papel de um derivado da vitamina A, o ácido retinoico, no desenvolvimento embrionário. Essa substância indica às células de um embrião o que têm que fazer para se transformar num corpo adulto. O ácido retinoico ativa os genes necessários, por exemplo, para formar as extremidades, o coração, os olhos e as orelhas dos animais. Cañestro estudava esse processo no Oikopleura. E ficou de boca aberta.

Fêmea de 'Oikopleura dioica' cheia de ovos
“Os animais utilizam uma grande quantidade de genes para sintetizar o ácido retinoico. Percebi que no Oikopleura dioica faltava um desses genes. Depois vi que faltavam outros. Não encontramos nenhum”, recorda. Esse animal de três milímetros fabrica seu coração, de maneira inexplicável, sem ácido retinoico. “Se você vê um carro se mover sem rodas, nesse dia sua percepção sobre as rodas muda”, diz Cañestro.

O último ancestral comum entre nós e esse minúsculo habitante do oceano viveu há cerca de 500 milhões de anos. Desde então, o Oikopleura perdeu 30% dos genes que nos uniam. E fez isso com sucesso. Se você entrar em qualquer praia do mundo, ali estará ele rodeando o seu corpo. Na batalha da seleção natural, osOikopleura ganharam. Sua densidade atinge 20.000 indivíduos por metro cúbico de água em alguns ecossistemas marinhos. São perdedores, mas só de genes.

Albalat e Cañestro acabam de publicar na revista especializada Nature Reviews Genetics um artigo que analisa a perda de genes como motor da evolução. Seu texto despertou interesse mundial. Foi recomendado pela F1000Prime, uma publicação internacional que aponta os melhores artigos sobre biologia e medicina. O trabalho começa com uma frase do imperador romano Marco Aurélio, filósofo estoico: “A perda nada mais é do que mudança, e a mudança é um prazer da natureza”