quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Pensamento do Dia

 

Tocar a vida?

“Tá chegando em 100 mil (talvez hoje). Mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar disso daí.” A frase, já inscrita na Enciclopédia Geral da Infâmia que Jair Bolsonaro resolveu compor durante a pandemia do novo coronavírus, foi dita por um presidente serelepe ao lado de um ministro interino da Saúde bonachão na última quinta-feira, numa das lives que ele insiste em impingir a um País traumatizado.

O número que ele previu como quem joga no bicho, depois de com a mesma sem-cerimônia dizer, lá no início da pandemia, que os mortos não chegariam a 800, não chegou naquele dia, mas o vaticínio nefasto se cumpriu neste fim de semana.

A única maneira aceitável de “tocar a vida” para que o Brasil não saia dessa tragédia ainda mais dilacerado em todas as suas dimensões é apontar as omissões, as ações criminosas, os ardis políticos e autoritários e o cinismo que nos jogaram nesse buraco, e apontar e punir em todos os fóruns cabíveis os responsáveis por ela.


A começar por esse presidente que insiste em cuspir na cara daqueles que deveria governar perdigotos de imbecilidade com relação a uma situação que não faz a menor ideia de como ao menos tentar mitigar. Ele olha para a cara de uma Nação em que mais de 3 milhões foram oficialmente infectados e 100 mil perderam a vida e dá de ombros, como se esses números num intervalo de menos de seis meses fossem toleráveis.

Nenhum governante do Brasil, dos mais nocivos que já passaram por aquela cadeira eleitos ou usurpando-a, teve em relação aos problemas que enfrentou ou provocou a desídia de Bolsonaro. Ele nem sequer finge que está tomando qualquer providência.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que o Supremo Tribunal Federal impede o governo federal de coordenar a resposta à pandemia. Deveria ser advertido ou punido pelo próprio STF por isso, pois esta não foi a decisão da Corte. Em um País sério um presidente jamais repetiria essa empulhação sem que fosse admoestado, sequer.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que cloroquina e hidroxicloroquina têm efeito para tratar covid-19. Ele atenta contra a saúde pública ao impor ao Ministério da Saúde acéfalo um protocolo sem nenhum amparo científico indicando esses remédios para casos leves e moderados. Ninguém responsabiliza o presidente e o ministro, o Conselho Federal de Medicina não vai à Justiça, e o tal protocolo anticientífico está em vigor há mais de 3 meses. O STF, o Ministério Público e o Congresso apenas assistem.

Jair Messias Bolsonaro promoveu aglomerações, cumprimentou pessoas depois de tossir e assoar o nariz com a mão, anunciou que estava coronado diante de repórteres e câmeras e tirou a máscara para isso, cumprimentou garis sem máscara já doente. Ele comete essas nojeiras diante de um País enlutado, traumatizado, desamparado. É aplaudido por um grupo de celerados e não é impedido por algum dos muitos encarregados pela Constituição de contê-lo e lembrá-lo de que ele tem de governar, e não mostrar cloroquina para a ema.

Jair Messias Bolsonaro não decretou luto oficial quando os mortos foram mil, cinco mil, dez mil, vinte mil, cinquenta mil, cem mil. Ele assiste a esse número de vítimas, pessoas que tinham vidas, sonhos, famílias e planos como quem acompanha entediado uma partida de futebol comezinha com uma daquelas camisas de time falsificadas que adora envergar.

Jair Messias Bolsonaro condena o Brasil a ser um dos piores países do mundo na chaga da covid-19 e se fia na conta cínica de que os pobres coitados socorridos com auxílio emergencial vão lhe reeleger em 2022, sua única preocupação genuína. E quem deveria responsabilizá-lo assiste a todas essas atrocidades com cara de paisagem.

Faz escuro... e não se revolta

... há muita sombra dentro de nós, sinal de que muitos corpos luminosos deixam de banhar-nos com sua luz, sinal de que nos faltam felicidades, de que muitos pequenos sóis necessários se interromperam em seu caminho até nossos olhos, estes que são, como diz um dos mais belos lugares-comuns, as janelas da alma
Paulo Mendes Campos

 

 

Anormal

Cada data, e lá vamos nós pras redes sociais dar fé pública do nosso amor pra mamãe, pro papai, vovó, vovô, filhão, filhota, neto, neta, melhor amiga/o. E por aí vai.

Agora, sem permissão pra abraços, carinho/afeto em exposição notória até que faz mais sentido. Não importa. A questão não é a circunstância, mas a fé pública daquela porção de amor.

Somos exibicionistas de amores. Está no nosso DNA. As redes sociais testemunham essas tantas celebrações dos - sempre incríveis – celebrados.

Fico aqui pensando, quantos milhares somos nas redes sociais? Milhares de milhares. Em momento de tamanha tragédia humana, seria uma avalanche se, por um tempo, trocássemos nossas paroquiais manifestações de amor por generosa indignação pelos mais de 100 mil mortos da pandemia no Brasil.


Não é normal. Nem consequência natural de uma doença ainda sem remédio, sem vacina. É resultado de muitos erros, muito descaso, da negação da violência do vírus, de desrespeito à ciência e à vida. É desumano.

Assim, sem marcar o horror das mais de 100 mil mortes, que alcançam diretamente 100 mil famílias – além de outras milhares indiretamente -, nos tornamos coniventes com o descaso pela tragédia. Porque é uma tragédia. E a palavra precisa ser repetida. E sentida.

Cadê nossa tão explicitada capacidade de amar demais?

Que porra de amor é esse que não vai além da porta de nossas casas, agora, trancadas?

Cadê nossa indignação?

Mais de 100 mil mortos. Média diária de 1.022 mortos. Alguma mudança de atitude de quem governa? Dos que decidem?

Não é normal. Eles são anormais – no dizer e no agir.

Nada é normal no que vivemos. Não é normal assistir o, ainda interino, ministro da Saúde fazer pose pra dizer que “não é o numero que faz a diferença”. É fé pública no deboche – mais um – com as famílias dos mortos, dos doentes, do nosso medo. Ás vezes, pânico.

Tudo é anormal. Não há novo normal em viver trancada, em temer a respiração do outro, em assistir na TV a contagem diária dos mortos.

Principalmente não é normal realçar os sobreviventes, quando ainda nem sabemos se e com que sequelas seguirão pela vida. Mais fé pública de negação da tragédia.

Normal seria fazer de tudo para evitar mortes, para conter a propagação da doença. Não essa brincadeira de ensaio e erro, de usar ou não a máscara, ou maldita cloroquina e outros inas mais.

Triste o espetáculo que estamos vivendo.

Em contagem antipática, 70% dos brasileiros não mereciam encarar uma pandemia com um governo chulo de tão desqualificado.

Governo que representa o brasileiro mais ignaro, pra quem sentimentos humanitários definem ideologia.

E assim somamos mortos enquanto eles pensam em reeleição, sem nem a preocupação de explicar anos de Queiroz depositando dinheiro vivo em contas bancárias da família presidencial.

Trinta mil reais pagos em dinheiro vivo vira “uma coisinha guardada em casa”, no dizer do filho Flávio, o 01 que, enquanto deputado, guardava essas coi$inhas. Pra despesas corriqueiras. Embaixo do colchão. Certamente.

Deboche com a inteligência alheia. De policiais e promotores inclusive. Declaração de fé pública no nada-vai-acontecer-comigo. Joguinho de cena com “asautoridade” do Rio de Janeiro.

Enfim, somos nós, eles e a pandemia. Eles jogando contra – não a pandemia, mas nós, que seguimos dando fé pública de nosso amor aos nossos.
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Os 100 mil mortos? São só “outros”. Taoquei?

Nós e os outros

Mudou o modo de pensar sobre o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70 milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes. 

Nós somos pessoas orientadas pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro. Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que alavanque os negócios setoriais.


A concordância sobre a omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.

O alegado alívio de demanda para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e 19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada). 

Essas informações não significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras, consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de credenciamento ao debate.

Reagimos com as mesmas palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo do que na população em geral. 

Todos nos indignamos, mas, quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo, reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?