segunda-feira, 10 de setembro de 2018
Fé cega, faca amolada
Nas redes sociais dominam a belicosidade e as acusações sem pé, cabeça e muito menos lógica, incluindo até promessas de revanche feita por fiéis. Fora delas, mais absurdos.
No palanque do Grito dos Excluídos, realizado na Avenida Paulista como contraponto às comemorações oficiais do 7 de Setembro, o candidato a governador pelo PT, Luiz Marinho, levantou dúvidas quanto ao atentado – “não vi sangue”. Nivaldo Orlandi, do PCO, disparou a máxima: “anjinho fascista não merece solidariedade”. A presidente deposta Dilma Rousseff jogou a culpa na vítima, aplicando o popular dilmês ao dito popular – “quando se planta ódio você colhe tempestade”. No dia seguinte, demitiu sua assessora de imprensa por usar raciocínio idêntico.
Na outra ponta, o general Antônio Mourão, candidato a vice de Bolsonaro, antecipou-se às investigações e apontou o culpado: “Eu não acho, eu tenho certeza, o autor do atentado é do PT”.
Tudo a contribuir para acirrar mais os ânimos.
Ainda que os candidatos embolados no miolo das pesquisas eleitorais – Ciro Gomes, Marina Silva e Geraldo Alckmin – tenham se manifestado com velocidade e contundência contra qualquer tipo de violência, suas falas não conseguem ter a efetividade que as mensagens de ira alcançam.
Se quiserem contribuir para baixar a fervura terão de ir além do discurso protocolar. Usar seus preciosos minutos no horário eleitoral em nome da pacificação, agir contra a guerrilha nas redes, desarmar correligionários. O problema é como dosar isso sem abrir flancos para o opositor hospitalizado, cuja turma é eficiente no marketing. A começar pelos filhos, que correram para misturar informes do estado de saúde do pai com slogans de campanha.
Bolsonaro é vítima e qualquer lado que se utiliza do atentado perde a razão. Insere-se em um país no qual facas e tiros fazem parte do cotidiano das pessoas. Em um país recordista em crimes violentos, com 62,5 mil vítimas, segundo o Atlas da Violência 2018. País em que esses números obscenos não envergonham e muito menos provocam as autoridades públicas a combatê-los com seriedade.
A execução sumária de Marielle Franco, ainda não elucidada, foi incapaz de lançar luzes na quase uma centena de prefeitos e vereadores assassinados na última década. A teia de episódios que tirou a vida do prefeito de Santo André, Celso Daniel, e de sete testemunhas do crime acendeu o alarme, mas continua sem solução. Os 79 candidatos mortos em campanha eleitoral entre 2000 e 2016, que só vieram a público em um excelente trabalho da UniRio, não comoveram ninguém.
Resta a torcida para a rápida recuperação do candidato do PSL. E, embora pouco provável em um país que insiste em nada aprender, para que essa faca possa despertar a consciência dos que usam a liberdade intrínseca da democracia para degradá-lá com ódio e fel.Mary Zaidan
Nosso herói usou o bisturi
Essa é a versão oficial. Nas redes sociais, a turma do Bolsonaro acusa o PT de ser mandante da agressão; militantes petistas divulgam que o atentado foi uma conspiração militar para levar o general Hamilton Mourão à presidência de República. Teorias conspiratórias costumam construir versões que partem do pressuposto de que o mandante do crime seria o grande beneficiado pela sua consumação. A partir daí, um arrazoado supostamente comprovatório serve para construir uma narrativa verossímil. No limite, a esquerda pode imputar à CIA o planejamento de tudo; a direita, a agentes cubanos. Num ambiente eleitoral empesteado pelo ódio político e o radicalismo ideológico, não faltam os que acreditam em ideias malucas. Além disso, o passado político da América Latina condena.
O assassinato de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque foi uma das causas da Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís. Governador da Paraíba, morreu no Recife, em 26 de julho de 1930, aos 52 anos, com um tiro na cabeça. Naquele ano, fora candidato a vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas, mas ambos perderam para a chapa governista, encabeçada por Júlio Prestes. Como dizia Gilberto Freyre, no Nordeste “havia os Cavalcanti e os cavalgados”; se fosse Albuquerque, mandava mais ainda. João Pessoa era porta-voz da elite nordestina. Foi morto por um desafeto político, o advogado e jornalista João Dantas, na Confeitaria Glória, no Recife, num encontro quase casual. Ao contrário da versão difundida à época, a motivação do crime foi passional: a casa de Dantas havia sido invadida pela polícia, a mando de João Pessoa, que abjetamente vazou para os jornais cartas íntimas trocadas com a jovem professora Anaíde Beiriz, belíssima, personagem do filme Paraíba masculina, mulher-macho sim senhor, de Tizuka Yamazaki. Dantas foi chacinado na prisão; Beatriz foi marginalizada e se matou, aos 25 anos.
Há outros exemplos de atentados que catalisaram grandes eventos políticos, como o da Rua Toneleiros, contra Carlos Lacerda, no qual foi morto o major Rubens Vaz, cujos desdobramentos resultaram no suicídio de Getúlio, em 1954. Felizmente, Adélio Bispo não logrou seu objetivo. No episódio, o grande herói usou um bisturi: o cirurgião vascular Paulo Gonçalves de Oliveira Júnior largou ao meio o almoço com a família e foi para Santa Casa socorrer Bolsonaro. Localizou o local da hemorragia e evitou a morte do ex-capitão. De acordo com a tabela do SUS, receberá R$ 367,06 pela operação; a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora será reembolsada em R$ 1.090,80, nos revelou a revista Piauí. Heróis salvam vidas!
Agora falta o Ipiranga
Educação, cultura, ética são palavras que perderam o seu sentido, tais os ataques semânticos perpetrados contra os verbetes e contra o que pretenderam significar. Estão presentes no discurso de todos, principalmente dos menos sensíveis a encará-los com seriedade. Não será por acaso que se deixa de investir na preparação das futuras gerações. Pessoas conscientes, com capacidade crítica, não pactuariam com os rumos conferidos à vida pública. Teriam discernimento para eleger melhor. Fiscalizariam aqueles que se autoproclamam “servos do povo”, mas atuam como “donos do pedaço”, para perseguir outros interesses. Nem todos lícitos, conforme a História recente comprova.
O abandono dos museus reflete essa tendência de inverter a equação de um processo que respeitaria a memória, que incutiria na criança e no jovem o apreço por aqueles que permitiram a preservação de uma Nação territorialmente íntegra. De uma Nação que teve um imperador respeitado, mecenas a sustentar inúmeros patrícios num consistente aprendizado na então considerada fonte da sabedoria, a velha Europa.
Quanta degradação a partir de então. Seu avô, dom João VI, conseguiu salvar das tropas napoleônicas tesouros insuscetíveis de avaliação financeira, pois sabia que lhes era destinado viver muitos anos – talvez até o final da existência – na colônia e que precisava de elementos substanciais à nutrição do patriotismo. Do senso de pertencimento. Não foi uma excursão turística, mas uma transferência do Reino para o Novo Mundo.
Tais relíquias subsistiram às tempestades. Foram abrigadas e tiveram lugar de honra no Vice-Reinado convertido em Corte. Aos poucos, a criança treinada para imperador do Brasil evidenciaria seus dotes de estadista e acrescentaria à coleção do avô outros inestimáveis valores. O respeito que dom Pedro II fruía em todo o planeta foi a porta de acesso a bens históricos, arqueológicos, geológicos, culturais. Não foram apenas 200 anos os que se consumiram no flagelo daquela noite de domingo. Foram milhares de anos de História. Luzia, o primeiro fóssil destas plagas, conseguiu permanecer como testemunho dos primórdios da civilização por 12 mil anos. Não suportou o descaso do governo, cego ao que realmente vale a pena.
Emblemático o incêndio no início da Semana da Pátria. São Paulo, que pretende celebrar o segundo centenário da Independência daqui a poucos anos – em 2022 –, deve prestar atenção. Também viu imersos em chamas alguns de seus mais significativos modelos de museus, alguns já sob a contemporânea concepção de usina produtora de transformações sociais. O Memorial da América Latina, que deveria ser o centro de manifestações que irmanassem esta parte do globo, tão desunida e tão desigual, ardeu em flamas. Se tivesse atendido em plenitude à sua vocação, talvez não tivéssemos uma Venezuela dizimada como a destes dias. Poderíamos influenciar nossos coirmãos à adoção de políticas públicas democráticas e harmonizadoras, em lugar de favorecer ditaduras escancaradas ou disfarçadas.
O Museu da Língua Portuguesa consumiu-se no fogo. Deixou de receber crianças que talvez acordassem para o prazer da leitura e não engrossassem a legião dos desletrados ou analfabetos funcionais que mostram a falta de carinho governamental com os educandos.
O Butantan também entrou em combustão. Mas não se ouviu choro ou indignação compatível com a perda sofrida por essas calamidades, célere retrocesso rumo à indigência cultural que a mediocridade sustenta e aplaude.
Agora só falta o Museu do Ipiranga, cujo nome não é esse. É Museu Paulista. Fruto de subscrição pública, pois desde a Independência já não se comovia o governo com a valia de aplicar recursos em História, em memória, em culto ao passado. Só interessa a ele uma única dimensão de tempo: a da próxima eleição!
A justificativa para não terminar as obras do Museu do Ipiranga é sempre a mesma: falta de recursos. Estes não faltam para estações ostentosas de Metrô, com estética modernosa, que encarece o que poderia ser mais comedido, menos pretensioso. Também não parecem faltar para outras obras que “permanecem” e servem para avalizar candidaturas. Já as obras intangíveis, estas não entram em cogitação. Por que se lembrar de Pedro I, de Leopoldina, de José Bonifácio, o patriarca, de Amélia de Leuchtenberg?
A fome de cultura contemporânea se retroalimenta de “viradas”, de shows, de “pancadões” e de happenings, de instalações e de outras manifestações. Ninguém é contra elas. Para certa parcela dos pensadores, tudo o que o ser humano faz e modifica o ambiente pode ser chamado “cultura”.
Mas desconhecer, premeditadamente, o que a ancestralidade legou é condenar o porvir a reiterar equívocos, a não se orgulhar de epopeias que explicam certas contingências que ainda hoje definem nossos rumos. Sonegar recursos do povo, resultantes da volúpia arrecadatória exercida sobre gente cada vez mais miserável e excluída, é o decreto de morte da potencialidade de redenção da indigência cultural a que ela foi execrada.
Reduzida a dimensão de um Estado que se mostra, ao menos em sua imensa parcela visível, impregnado de corrupção e de ineficiência, não faltariam meios para salvar o que ainda resta de tradição e de lembrança. A respeito de tudo isso, o que dirá o memorialista da posteridade dos atuais governos?
Heróis não matam
O direito à asneira é um pilar das sociedades livres e democráticas. Desde que não incitemos à violência ou difamemos o próximo, devemos ser livres de nos expressar como bem entendermos e de proferir as idiotices que nos trepam à cabeçaJoão Miguel Tavares
Herói nunca elimina prisioneiros sob a guarda do Estado, porque não se sentiria digno. Estaria no mesmo saco do cambojano Pol Pot, generais nazistas comandantes de campo de concentração, ou mesmo ditadores militares de republiquetas bananeiras que com o braço forte dos seus carrascos eliminaram gente nas prisões como gado. Emilio Massera, também chamado de "Comandante Zero", que comandou a Escola Superior de Mecânica da Armada nunca será considerado herói na Argentina.
O herói nunca vai eliminar o mais fraco em favor do mais forte. Heroísmo é para muito poucos. Não é medalha para se cravar no peito de qualquer um de que lado esteja por estar acima das ideologias, invariavelmente vesgas.
No mês passado, a Espanha aprovou a exumação dos restos do ditador Francisco Franco do Vale dos Caídos, monumento para glorificar sua vitória na Guerra Civil com o trabalho de milhares de presos políticos. O generalíssimo deve deixar o cemitério que abriga os mortos de ambos os lados daquela guerra, mas não mais o “herói”. É um recado de que se precisa rever o heroísmo de quem matou não em batalha, mas como carcereiro.
Luiz Gadelha
O futuro que já não conheceremos
Um museu atua em três frentes. Oferece um olhar para o passado, ou seja, um parâmetro para medir mudanças, uma escala de tempo. Também educa, no presente, sobre o mundo que nos rodeia, tanto o físico como o das ideias. E, principalmente, cria oportunidades para resolver problemas que ainda não somos capazes nem de imaginar. Ou seja: abre portas para o futuro desconhecido. E esse potencial, como é imprevisível, é sem dúvida a mais tremenda das perdas que sofremos no domingo passado.
Nos séculos XVIII e XIX, ninguém imaginava que a mudança climática causada pelos humanos seria um dos maiores desafios da humanidade no século XXI. No entanto, foram os dados coletados sobre a distribuição em altitude da vegetação entre 1773 e 1858 por Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland nas montanhas do Equador − cuidadosamente preservados em coleções científicas − que, em 2015, permitiram que a humanidade entenda o efeito do aquecimento global na distribuição da vegetação. Quem diria aos milhares de paleontologistas que dedicaram suas vidas a coletar e preservar fósseis em todo mundo durante séculos, e aos cidadãos que com seus impostos e doações permitiram que estes cheguem até nossos dias, que esses restos orgânicos mineralizados acabariam sendo a evidência empírica definitiva de um problema que nem sabíamos que poderíamos ter: um evento de extinção em massa de espécies, equiparável em magnitude à dos dinossauros.
Ou, mais perto de casa, o crânio de Homo sapiens conhecido como Luzia esteve 20 anos nas coleções do Museu Nacional até que um pesquisador descobriu sua importância. Conhecer a data da colonização da América não é algo sem importância. Permite, entre outras coisas, entender a capacidade dos humanos de povoar e conquistar um continente.
Fechou-se repentinamente a porta para futuras descobertas desse tipo, que poderiam ter saído do incalculável patrimônio científico do museu. As políticas mesquinhas dos sucessivos Governos − cada um agravando uma situação que já era insustentável − em relação ao patrimônio só podem ser fruto de uma ignorância superlativa combinada com interesses legalmente turvos. Mas, na verdade, isso não está muito distante de outros episódios como a recente anistia aos destruidores da selva, a impunidade diante da catástrofe ambiental no Rio Doce e o abandono de museus e edifícios históricos, que já causou o incêndio que destruiu em 2010 a coleção do Instituto Butantan, que é responsável pela maior parte dos antídotos contra veneno usados no Brasil.
Em um museu de ciências podemos aprender as semelhanças e diferenças entre os humanos e outras espécies de primatas, ou que nosso corpo contém tanta quantidade de microrganismos (principalmente bactérias, sem muitas das quais morreríamos), que eles equivalem em número às nossas próprias células. É o lugar onde nossos filhos podem aprender que o ovo evoluiu milhões de anos antes que a galinha. Onde os descendentes do povo Wari’ podem ir para entender como viviam seus parentes poucas gerações atrás. É onde aprendemos de forma intuitiva nossa insignificância no universo. No domingo, entretanto, aprendemos nossa insignificância no Brasil. Juntamente com o Museu Nacional ardeu muita da nossa memória, nosso presente ficou mutilado e nos roubaram um futuro que agora nunca conheceremos.
Santiago Castroviejo-Fisher, professor de Biologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
É fogo. É faca. Zune no ar a palavra
“O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. As palavras podem ser tão cortantes quanto uma traiçoeira faca, que também nos atravessou – a todos – numa ensolarada tarde em Minas Gerais. Uma semana que jamais será esquecida, e que botou fogo em um museu, numa história, e criou uma outra que será levada adiante muito tempo, todas transmitidas ao vivo.
As pessoas estão tão loucas nesse nosso tropical país que não bastou o atentado a Jair Bolsonaro praticamente ser transmitido ao vivo, registrado por inúmeras câmeras de celulares, em detalhes e vários ângulos. Elas queriam ver o sangue, vermelho, muito sangue, como veem nos filmes – aquele ketchup que jorra nas paredes. Então, muitas duvidaram. Duvidaram. Duvidaram durante horas, mesmo com informações minuto a minuto sobre a gravidade do ocorrido. Aquela gigantesca faca que um ser brandiu e enfiou 12 centímetros no candidato e na democracia, ferindo-a e expondo – ainda mais – as suas delicadas entranhas.
É a desordem, mais do que algo fora da ordem, estamos mesmo em um país com os nervos à flor da pele, caótico, dividido, raivoso. Do fogo e da faca surge a ignorância total, o desconhecimento e a falta de compromisso com a lógica e com a verdade, coisas sobre a qual ficamos evitando falar para não parecermos uns melhores do que os outros.
É mais séria do que poderíamos prever, no entanto, a situação. Muito além do frigobar instalado com fios desencapados no quarto do imperador, que o diretor do museu fez de seu para gabinete. Além dos pedaços de reboco que caiam tentando alertar, calados apenas por espaços e portas fechadas ao público, como vendas nos olhos. Quantas situações parecidas acompanhamos ainda silenciosos? Quantas ainda serão reveladas?
Na política, o fogo das paixões, o caldeirão fervendo, a água derramando, e uma incompetente escolta policial veio à luz no brilho da lâmina brandindo à luz do dia e em meio a uma multidão. Não consigo deixar de ironizar a cada vez que ouço falar em “inteligência” seja nesta ou em qualquer investigação. Andava observando que em todas as aparições o candidato que se fez pela truculência aparecia cercado de brucutus muito assemelhados inclusive à velha e terrível imagem da supremacia branca: caras enfezadas, postura agressiva, seguranças particulares, seguidores da doutrina da bala, do armamento. Mas como tudo parece apenas virtual…
Entretanto, a realidade é sempre cruel. Ironia ter sido uma faca, não uma bala. Não há muito o que pensar se o autor é ou não desequilibrado mental. Parece óbvio que não é inteligente, autor de um atentado estudado, planejado, pelo menos não por profissionais. Preso na hora, sortudo por não ter sido linchado, é o exemplo da disseminação do ódio nas redes sociais, estimulado pelos dois lados dessa corda, os dois extremos. Queria matar, parece que sim. Queria ficar famoso? Quem mais?
Agora é acompanhar a saga médica, que começou estrondosa. Salvo da morte que se apresentou com sua foice, pela equipe de Juiz de Fora, em horas já ocorreram conflitos de equipes dos dois hospitais que disputavam, de São Paulo, o show em que já se transformou essa recuperação, essa eleição, e tudo o que virá em seguida.
Vídeos, fotos, gravações e declarações dispensáveis feitas de dentro de uma UTI. Boletins anódinos. Desfile de visitas que se apresentam à imprensa que dormirá nessa porta durante dias. Cobri a permanência de Tancredo Neves no Incor há 33 anos e vejo a exata repetição.
Como já relatado por comentaristas, os nove segundos que o candidato contava agora viraram 24 horas diárias, sete dias da semana. Talvez alguns anos para todos nós.
As pessoas estão tão loucas nesse nosso tropical país que não bastou o atentado a Jair Bolsonaro praticamente ser transmitido ao vivo, registrado por inúmeras câmeras de celulares, em detalhes e vários ângulos. Elas queriam ver o sangue, vermelho, muito sangue, como veem nos filmes – aquele ketchup que jorra nas paredes. Então, muitas duvidaram. Duvidaram. Duvidaram durante horas, mesmo com informações minuto a minuto sobre a gravidade do ocorrido. Aquela gigantesca faca que um ser brandiu e enfiou 12 centímetros no candidato e na democracia, ferindo-a e expondo – ainda mais – as suas delicadas entranhas.
As chamas, as labaredas do fogo que consumiu objetos e detalhes milenares guardados no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ainda fumegavam, mostrando um outro lado do descaso, da incompetência, da barriga que empurra, da corda rota que se estica até que rompa, dando vazão a todo mal que seguravam. Nem os deuses e divindades gregas personificados em imponentes e trágicas estátuas que do alto do telhado daquele Palácio a tudo observavam, do nada que restou de seu interior, e que como que estranhamente protegeram a casca do Museu, nem o próprio Oráculo de Delfos, creio, poderiam prever mais fatos dessa longa semana.
É a desordem, mais do que algo fora da ordem, estamos mesmo em um país com os nervos à flor da pele, caótico, dividido, raivoso. Do fogo e da faca surge a ignorância total, o desconhecimento e a falta de compromisso com a lógica e com a verdade, coisas sobre a qual ficamos evitando falar para não parecermos uns melhores do que os outros.
É mais séria do que poderíamos prever, no entanto, a situação. Muito além do frigobar instalado com fios desencapados no quarto do imperador, que o diretor do museu fez de seu para gabinete. Além dos pedaços de reboco que caiam tentando alertar, calados apenas por espaços e portas fechadas ao público, como vendas nos olhos. Quantas situações parecidas acompanhamos ainda silenciosos? Quantas ainda serão reveladas?
Na política, o fogo das paixões, o caldeirão fervendo, a água derramando, e uma incompetente escolta policial veio à luz no brilho da lâmina brandindo à luz do dia e em meio a uma multidão. Não consigo deixar de ironizar a cada vez que ouço falar em “inteligência” seja nesta ou em qualquer investigação. Andava observando que em todas as aparições o candidato que se fez pela truculência aparecia cercado de brucutus muito assemelhados inclusive à velha e terrível imagem da supremacia branca: caras enfezadas, postura agressiva, seguranças particulares, seguidores da doutrina da bala, do armamento. Mas como tudo parece apenas virtual…
Entretanto, a realidade é sempre cruel. Ironia ter sido uma faca, não uma bala. Não há muito o que pensar se o autor é ou não desequilibrado mental. Parece óbvio que não é inteligente, autor de um atentado estudado, planejado, pelo menos não por profissionais. Preso na hora, sortudo por não ter sido linchado, é o exemplo da disseminação do ódio nas redes sociais, estimulado pelos dois lados dessa corda, os dois extremos. Queria matar, parece que sim. Queria ficar famoso? Quem mais?
Agora é acompanhar a saga médica, que começou estrondosa. Salvo da morte que se apresentou com sua foice, pela equipe de Juiz de Fora, em horas já ocorreram conflitos de equipes dos dois hospitais que disputavam, de São Paulo, o show em que já se transformou essa recuperação, essa eleição, e tudo o que virá em seguida.
Vídeos, fotos, gravações e declarações dispensáveis feitas de dentro de uma UTI. Boletins anódinos. Desfile de visitas que se apresentam à imprensa que dormirá nessa porta durante dias. Cobri a permanência de Tancredo Neves no Incor há 33 anos e vejo a exata repetição.
Como já relatado por comentaristas, os nove segundos que o candidato contava agora viraram 24 horas diárias, sete dias da semana. Talvez alguns anos para todos nós.
Luzia abrindo cabeças
A noite do incêndio foi uma das mais difíceis para mim. Pesadelo, tristeza, raiva e uma dose de culpa. No Congresso, destinei verba parlamentar para o Museu Nacional. O desastre mostrou como era pobre nossa visão de tapar buracos no orçamento de organismo que precisa de uma proteção sistêmica.
Infelizmente, compreendi tudo isso muito tarde, daí minha tristeza e raiva com as chamas. Na verdade, não foi apenas a passagem de Luzia que abriu minha cabeça.
À volta ao jornalismo, tratando de pequenos museus locais, sobretudo em lugares que precisam deles para encontrar sua identidade e agregar valor às suas riquezas naturais, compreendi que eles não são um fardo que deva ser tratado com migalhas. Na viagem à Rússia, onde escritores, sobretudo do século XIX, são cultuados, e há museus de todo tipo, ficou claro para mim que não se trata apenas de preservar a memória, mas transformá-la também numa fonte de renda através do turismo.
Em viagens pelo Brasil, vejo quase toda semana algum tipo de museu. Mantido por um empresário, o Instituto Ricardo Brennand, em Recife, é uma boa surpresa. Nele existem, entre outros, os quadros do holandês Frans Post, que nos deixou belas imagens sobre o Brasil Colonial. É uma coleção que só perde para a da própria Holanda.
Tive boa impressão do Museu Mazzaropi, em Taubaté, construído numa área em que também foram reproduzidos os cenários dos seus filmes: é um hotel fazenda.
Aqui no Brasil, temos um pouco o complexo do novo mundo, da permanente construção e destruição. Nosso lema parece ter surgido da frase de Marx, que também é o título do livro de Marshall Berman: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
Na semana do incêndio, trabalhava, precisamente, em algo ligado a essa frase. É o projeto do trem Minas-Rio, comprado em Três Rios sem ajuda do governo. Ele vai ligar nove cidades, inclusive Cataguases, Minas.
Passei por algumas delas e, em Cataguases, procurei estimular a criação de um museu que fale um pouco do papel da cidade no modernismo. Ali houve uma revista antenada com o movimento, a “Revista Verde”, e um escritor e poeta de destaque: Rosário Fusco.
Não é o primeiro lugar em que trato do tema. Na verdade, na semana anterior estive na Bahia precisamente mostrando o projeto de museu hippie em Arembepe.
No momento em que as cidades precisam se reinventar para enfrentar a crise, é mergulhando na sua tradição e cultura que podemos achar uma saída, através da economia criativa. O que me dói no incêndio é ter percorrido tantas experiências locais e não ter percebido com clareza como o Museu Nacional poderia ter sido importante para o Rio de Janeiro, uma espécie de porta de entrada do Brasil mas que, na verdade, escondia um dos seus principais tesouros culturais.
Ao invés de uma campanha para transformá-lo num momento em que se construíam tantos estádios e um Museu do Amanhã, por que esquecemos o ontem, o anteontem, os dias primordiais de Luzia?
Havia um ar de decadência no museu. Fios de ligações improvisadas, infiltrações, telhas quebradas; enfim, todos esses incômodos de um corpo velho e mal tratado. Diante de museus internacionais bem cuidados e interativos, talvez não nos orgulhássemos dele como deveríamos.
Agora é tarde. Mas não significa que vamos continuar apenas chorando pela perda. Se o crânio de Luzia, perdido nas cinzas, conseguir, pelo menos, abrir nossa cabeça, será uma pequena vitória.
No passado, recusou-se uma ajuda do Banco Mundial porque não se aceitava o Museu como fundação privada. Conseguimos criar um bloqueio duplo: arrogância do novo mundo diante do passado e a ilusão de que tudo deve ser feito pelo Estado.
Não sou inocente nessa história. Quase não há nada nos programas presidenciais sobre a proteção do patrimônio. Se iniciasse uma discussão no tempo em que apenas tapávamos goteiras, talvez hoje já houvesse uma política disponível aos candidatos.
Mas o pássaro da consciência canta apenas ao entardecer. Precisamos sempre de grandes traumas para vislumbrar o caminho. Algo em nós parece hibernar: suspeito que seja o raciocínio.
Não se deve confundir solidariedade pessoal com adesão eleitoral
Operadores financeiros respondem automaticamente aos fatos com a pretensão de adiantar-se às suas consequências. Trata-se de um jogo de compra e venda, onde sai ganhando quem, sem trocadilho, for mais rápido no gatilho. Não raro, os cálculos são apressados e as análises simplistas. O “racional” desta vez foi o seguinte: a vitimização de Jair Bolsonaro o favorecerá eleitoralmente, podendo leva-lo à vitória. Bolsonaro, assessorado pelo economista Paulo Guedes, promete um governo pró-mercado, de liberalização radical da economia e privatização de empresas estatais.
Logo, se o atentado o vitimizar e se a vitimização o favorece, favorecendo também os interesses de mercado, então, viva ao atentado. Simples assim. Só que não.
Em primeiro lugar, porque o principal ativo de um país é a sua democracia. Colocá-la em risco pode até, supostamente, trazer ganhos imediatos, mas no longo prazo, a incerteza de regras e o abalo das instituições cobrarão um preço altíssimo e todos, no final, perderão. Claro que sempre restará a alternativa de “sair antes”, vender tudo e realizar lucros. Mas, é uma dinâmica pouco saudável, além de arriscada.
Em segundo lugar, porque nada está “dado”: as consequências do atentado ainda virão e ninguém consegue exatamente antecipá-las. Logo, é muito provável, sim, que Jair Bolsonaro ganhe votos, depois do incidente do qual foi vítima. A dramatização de uma eleição e a martirização de candidatos funcionam sempre como um apelo ao eleitor e é claro que há eleitores suscetíveis a isso.
Difícil, no entanto, é afirmar quantos votos; se suficientes para superar a elevada rejeição que Bolsonaro carrega. O mais certo é que o ex-capitão tenha, agora, sim, consolidado os eleitores que já haviam aderido a ele, como também possa atrair pessoas que, por algum motivo, se sentiam constrangidas em declarar o voto – o chamado “voto envergonhado”–, mas que já eram simpatizantes. Um nível de sensibilização de eleitores antes indecisos também é razoável. Mas, em qual proporção?
Não há, porém, elementos capazes de garantir como e porquê eleitores que antes o rejeitavam passem agora automaticamente ao seu apoio; que eleitores que desconfiavam de sua retórica passem a aprova-la. Não se deve confundir a solidariedade natural de momentos assim com a automática transferência de votos. É plenamente possível repudiar o atentado e ao mesmo tempo rejeitar o candidato. Repúdio a um e apoio a outro são elementos distintos.
Passada a comoção, é possível que uma reflexão mais racional do fato ganhe espaço. Suas raízes, infelizmente, estão no processo de radicalização política que se estabeleceu no Brasil nos últimos 4 anos. E Jair Bolsonaro é um dos símbolos desse processo, ainda que possa não ser o único. Ao mesmo tempo que a solidariedade existe pode também ser despertada uma consciência de que políticos que propõe a liberação do uso de armas, por exemplo, acabam levando poder desmedido a malucos, como parece ser o caso do sujeito que praticou o atendado na tarde de ontem.
A eleição não será depois de amanhã; há, na verdade, um mês pela frente, até que se definam os nomes para o segundo turno. É verdade que novos fatos podem ainda piorar a situação, que uma escalada de violência deve ser evitada e se houver precisará ser contida. Mas, também é possível que um clima de esclarecimento e racionalidade, levando a repudiar qualquer modo de radicalismo, possa se estabelecer. Por que não?
Assim, pode-se apostar nessa “ponta” também; por quê ela seria menos razoável que a anterior, a que aposta na comoção eleitoral e na vitória de Jair Bolsonaro?
O raciocínio contrafactual torna-se útil: tivesse o ex-presidente Lula sofrido um atentado, por que os eleitores de Bolsonaro e Geraldo Alckmin, por exemplo, teriam que necessariamente passar a votar no PT? Os assassinatos de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, não resultaram no favoritismo do PSOL nem da esquerda, automaticamente. A queda do avião que levou à morte Eduardo Campos e toda a tripulação do voo não foi suficiente para dar a vitória à Marina Silva. Por que agora seria diferente?
Mais uma vez é conveniente assinalar: não se deve confundir solidariedade com adesão. A primeira não leva natural ou necessariamente à segunda. Com o tempo, à comoção podem-se impor mecanismos de ponderação. Então, calma. Tem muita estrada pela frente.Carlos Melo
Peruada não é democracia
Existe peru à brasileira, mas não soluções à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos
Sobral Pinto
Mais que dinheiro, falta critério no país da gastança
No Brasil, o dinheiro desperdiçado vai para o ralo por várias canaletas. No próximo ano serão consumidos R$ 306,4 bilhões só com os chamados gastos tributários, segundo estimativa divulgada na semana passada pela Receita Federal. São vantagens fiscais concedidas, nem sempre de forma justificável, a regiões, empresas, organizações sem fins lucrativos, grupos diversos e indivíduos às vezes muito bem de vida. Não há uma avaliação clara dos benefícios produzidos pelas várias facilidades incluídas nesse conjunto.
Apesar de obscuros quanto aos efeitos, esses gastos crescem seguidamente. Deste ano para o próximo o aumento previsto é de R$ 23 bilhões, como informou o Estadão na quarta-feira. No Ministério da Fazenda, segundo noticiou o jornal no dia seguinte, técnicos têm procurado meios de reduzir ou eliminar parte das concessões. Se tiverem sucesso, o presidente eleito em outubro receberá um Orçamento um pouco mais administrável.
Mesmo sem grandes encargos adicionais, o governo central terá dificuldade em 2019 para manter o déficit primário dentro do limite previsto de R$ 139 bilhões. O resultado primário é calculado sem o custo dos juros vencidos. Os juros e o principal vêm sendo rolados há vários anos e, por isso, a dívida tem crescido. Essa tendência só será alterada quando houver algum superávit primário, isto é, alguma sobra para a liquidação pelo menos parcial dos encargos financeiros. Isso poderá ocorrer, segundo especialistas, lá por 2023, se nada sair muito errado. Esta última hipótese é obviamente otimista, nas condições de hoje.
Não basta, no entanto, encontrar meios de reduzir ou eliminar parte dos benefícios. Um corte linear também será uma solução de qualidade muito duvidosa. Parte das facilidades tributárias pode ser justificável com razões muito sólidas. Incentivos podem ser econômica e socialmente benéficos quando fazem, de fato, diferença para o desenvolvimento regional, para a pesquisa científica e tecnológica ou para a prestação de serviços médicos gratuitos ou acessíveis.
Em todos os casos, é preciso planejar cada benefício com muito cuidado e avaliar periodicamente seus efeitos. Não tem havido avaliação regular dos gastos tributários, como já advertiu o Tribunal de Contas da União, nem padrões claros e consistentes para determinar a concessão de facilidades.
As vantagens são distribuídas segundo critérios muito raramente vinculados a noções de planejamento, de prioridades e de estratégias de desenvolvimento econômico e social. Pesam nas decisões a influência política dos beneficiários, a comunidade de interesses econômicos e o desejo de fazer boa figura. Isso vale tanto para a concessão de benefícios fiscais quanto para a decisão sobre desembolsos e distribuição de subsídios. Esse bolo enorme de renúncias e de despesas pode conter ingredientes muito diversos e inconciliáveis para o senso comum.
O conjunto pode incluir financiamentos de shows, moleza fiscal para quem recebe dividendos, desonerações de encargos sem criação de empregos e incentivos a indústrias limitadas a exportar para o Mercosul. Pode também conter sustentação de preços mínimos para certos produtos agrícolas, financiamento à exportação, bolsas de estudos para boas escolas, sempre com garantia de algum acerto de contas, e ajuda a hospitais beneficentes.
Alguns desses programas produzem, quando bem executados, efeitos econômica e socialmente positivos. Isso tem sido mostrado pela experiência internacional e comprovado amplamente no Brasil.
Não se trata, no entanto, apenas de selecionar com cuidado alguns objetivos e grupos beneficiários. É preciso definir claramente certos objetivos de longo prazo, sustentáveis por muito tempo, e metas estratégicas e variáveis de acordo com etapas do desenvolvimento. Planejamento respeitável tem como pressuposto dinheiro público manejável de forma racional. Isso é quase impossível quando o Orçamento, como no Brasil, é amarrado por despesas dificilmente comprimíveis e por vinculações de verbas.
Essas vinculações podem ter sido inventadas com excelentes intenções, mas são incompatíveis com a racionalidade e ainda favorecem a incompetência e a corrupção. Para que desenhar programas eficazes para a educação, quando há verbas garantidas e despesas obrigatórias? Prioridades mal escolhidas – e com evidente viés eleitoral – facilitaram a expansão de um ensino superior de baixa qualidade e pouca serventia. Ao mesmo tempo, os cursos fundamental e médio continuaram ruins, como têm comprovado testes internacionais e nacionais. Falar em falta de dinheiro é discutir a questão errada, especialmente quando muitos bilhões são desperdiçados a cada ano. A maior parte dos presidenciáveis tem ficado longe desses temas.
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