terça-feira, 28 de julho de 2020

Brasil de pária e genocida


O efeito do charlatanismo

Pesquisa da Associação Paulista de Medicina mostra que 48,9% dos quase 2 mil profissionais de saúde entrevistados em todo o País disseram ter sofrido pressão de pacientes ou de parentes de internados para receitar remédios sem comprovação científica contra a covid-19. Os médicos também reclamam de intimidação nas redes sociais quando descartam o uso desses remédios, em especial da cloroquina, cuja eficácia no combate à pandemia já foi amplamente desqualificada. Há quem relate ter sofrido até ameaças de morte, como o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Clóvis Arns.

Assim, como se não bastasse toda a pressão inerente ao enfrentamento da pandemia, que inclui o risco pessoal de contaminação, os médicos que lidam com milhares de doentes têm sido obrigados a encarar a hostilidade de pacientes e familiares que insistem em tratamentos que, ao contrário de salvar vidas, podem colocá-las em risco.


É compreensível que pacientes e seus familiares tentem se agarrar a qualquer esperança ante a terrível perspectiva de sofrimento trazida pela pandemia – que só no Brasil já deixou quase 90 mil mortos. Ninguém haverá de condenar quem, após o temido diagnóstico, exige dos médicos a aplicação de todos os tratamentos disponíveis, se houver a mais remota possibilidade de um deles salvar o paciente. Quando tudo o mais falta, resta a fé.

O problema é que essa fé está sendo estimulada pelo governo federal, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro, justamente a autoridade que deveria se empenhar mais em orientar a sociedade com dados realistas e cientificamente comprovados para combater a doença. Quando um presidente da República – ouvido com atenção por toda a Nação pelo cargo que ocupa – insiste em fazer propaganda a respeito dos supostos efeitos benéficos da cloroquina contra a covid-19, mesmo depois que esse medicamento foi considerado ineficaz por vários estudos, reina uma perigosa confusão.

Para quem está para entrar em uma UTI ou está angustiado porque um parente acabou de ser internado com covid-19, as palavras do presidente, já naturalmente relevantes, são entendidas como prescrição médica – aos profissionais de saúde, portanto, bastaria assinar a receita. Explica-se assim que um a cada dois médicos ouvidos na pesquisa da Associação Paulista de Medicina relate ameaça ou constrangimento por parte de parentes ou de doentes.

“Sei que é um momento complicado, entendo a agonia e a angústia das pessoas, mas começaram a me chamar de assassina porque eu não tinha usado cloroquina no tratamento”, disse ao Estado a médica intensivista Bruna Lordão, de São Paulo. “As pessoas não querem saber de pesquisa científica. Elas só querem saber o que o Bolsonaro tomou. Foram certamente os piores momentos da minha carreira.” Depois desse episódio, a médica pediu demissão do hospital.

Esse é o resultado da politização da pandemia por parte de Bolsonaro. Preocupado com os efeitos da crise sobre sua popularidade, o presidente agarrou-se à cloroquina como panaceia – e passou a tratar os médicos e as autoridades que questionaram a eficácia da droga como adversários políticos.

Como consequência disso, os médicos e as autoridades que decidem seguir a ciência e não o palpite presidencial são acusados de fazê-lo por oposição ao presidente e, no limite, porque esperam o agravamento da crise para prejudicar Bolsonaro. É o charlatanismo elevado à categoria de política de Estado para a área da saúde, o que complica sobremaneira o trabalho de quem deve lidar com a doença real, na linha de frente da longa batalha contra o coronavírus.

Como bem lembrou a Associação Médica Brasileira em nota, os médicos são autônomos para receitar medicamentos ainda que não haja comprovação de que funcionem no caso, mas, graças ao presidente Bolsonaro, muitos estão sendo constrangidos a fazê-lo, inclusive sob ameaça, no caso da cloroquina – mesmo ante o risco de efeitos colaterais perigosos. Nada disso é ciência, muito menos o pleno exercício da medicina; é, apenas, irresponsabilidade. A cloroquina, é bom que se lembre, provoca efeitos secundários que podem levar à morte.

Por trás da faixa

Neste governo teremos uma espécie de “Pentágono à brasileira” que estabelecerá as possibilidades de ação política do Estado. Os militares assumem o controle de informações que produzirão efeitos na política, e também o controle dos orçamentos que a política executa. Mas isso deve ser feito com um controle que “roda em segundo plano”. Não creio que esse protagonismo militar que estamos vendo agora se pretenda eterno; se isso acontecer é porque está dando errado. Os militares perdem se ficarem expostos.

(...) Para que a "máquina" funcione como querem, é preciso haver a crença de que as instituições são fortes, que existam “freios e contrapesos”, e que somos uma democracia. Podemos ver isso agora, ao notar que algumas das instituições seguem uma espécie de roteiro, agindo reflexivamente em relação a Bolsonaro. Os militares do Planalto ficam no meio disso como chaves comutadoras, ou seja, operando o controle dessa narrativa, oscilando entre um lado e outro, e às vezes emitindo sinais contraditórios para ambos os lados
Piero Leirner, antropólogo  pesquisador das Forças Armadas e professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) 

Bolsonaro já precificou a sua morte, leitor, e conta que ainda dá para ganhar a eleição

O Brasil deve chegar a 100 mil mortos na pandemia nas próximas semanas. É duas vezes o número estimado de brasileiros mortos na Guerra do Paraguai. Mas Bolsonaro aposta que genocídio não custa voto.

Se morrer 1 milhão de pessoas, e seus, digamos, dez parentes e amigos próximos se revoltarem contra Bolsonaro, ainda não é gente suficiente para colocar um candidato presidencial no segundo turno. Como notou o cientista político Christian Lynch, os que morreram não vão votar.

Se você adoecer e morrer, Bolsonaro perderá seu voto, mas nenhum adversário de Bolsonaro tampouco o terá. Bolsonaro já precificou a sua morte, leitor, e conta que ainda dá para ganhar eleição sem os votos de sua viúva e de seus órfãos.


Para que isso seja verdade, algumas condições precisam ser satisfeitas.

Em primeiro lugar, é preciso que os sobreviventes não sintam qualquer empatia com as vítimas. Aqui a tradição joga a favor de Bolsonaro: o Brasil, de fato, não tem qualquer tradição de empatia com pobre morto.

E Bolsonaro mente para o público que os que morreram já eram velhos, já eram doentes, já iam morrer, mesmo, não é o caso de chorar. Além disso, se você convencer o público de que só esses que morreram corriam riscos, é menos provável que as pessoas façam a pergunta que funda a empatia, “E se fosse eu?”.

Daí em diante é contar com a dificuldade humana para lidar com contrafactuais, com cenários do que teria acontecido com o Brasil se Bolsonaro não fosse o pior presidente do mundo. Fazer esse raciocínio nunca é fácil. Mas é bem mais difícil se você não conhece os fatos.

Bolsonaro tenta manter seus seguidores fiéis “protegidos” da ciência e da imprensa profissional. Para isso, tenta lhes despertar a sensação de que são os malandros que ninguém engana, os que tomaram a pílula vermelha do Matrix, que descobriram a verdade, que não serão iludidos pelo que diz a “mídia esquerdista” ou os “cientistas comprados pela China”. Não tem estelionato que dê certo se você não conseguir que o otário sinta que quem está sendo malandro é ele.

Se você está na bolha bolsonarista, você não sabe que na Argentina, onde fizeram o isolamento, morreram em todos esses meses menos do que morrem no Brasil em três dias de pandemia.

Você não sabe que na Nova Zelândia, que também fez o isolamento, não há mais casos de Covid-19, e a vida voltou ao normal.

Você não sabe que o governo Bolsonaro só gastou 11% dos recursos destinados a combater a epidemia (governos estaduais receberam 39% do prometido, municípios receberam 36% do prometido).

Sem a comparação com outros países, é mais difícil ter noção de que o longo platô de mortos —um número estável e alto de mortos por dia durante meses— vai atrasar mais a recuperação econômica do que qualquer quarentena que Bolsonaro não tivesse sabotado. Ninguém no mundo resolveu a economia antes de resolver a pandemia. Nós não resolvemos a pandemia.

Ainda é cedo para dizer se matar 100 mil pessoas custa votos no Brasil. Nos Estados Unidos, a reeleição de Donald Trump parece seriamente ameaçada. Aqui o clima anda mais para acordão. Sabe como é, você anistia 500 assassinatos, passa uns anos, os caras aparecem querendo que anistie mais 100 mil.
Celso Rocha de Barros

Cavaleiros do delito

Mais do que por um mero mau cristão o Brasil é governado por destino incerto, tendo a cada dia um morto certo. Tal estado de coisas é possível porque o país não tem freio que contenha a autoridade no momento em que erra ou comete o crime.

Quem se beneficia com o caos não se importa em saber que motivações sustentam tais atitudes. A realidade da autoridade fora da lei é de ampla e genérica tolerância e cumpre o papel amargo de infantilizar a sociedade diante do Estado. Pois são essas autoridades descontroladas que moldam o mundo que vivemos.
Apesar da sensação de marcha a ré, com maior propensão ao interesse pelo mal do que pelo bem, não dá para culpar o povo inteiro quando se trata de crítica a governo ou a forma como funciona o Estado. No entanto parece que nossa relação com a verdade está desaparecendo da construção do raciocínio político. Talvez pela nova função que o ódio e a manipulação passaram a ter na escolha de adversários.

É diária e recorrente a mentira de que as instituições funcionem para os membros das instituições. Magistrados ruins são o maior problema da Justiça. Vejamos o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo. Pede 10 dias ao corregedor nacional para dizer quem é o juiz com quem convive há anos.

Com atitudes assim ficamos sabendo como funciona o Tribunal, nunca o juiz. Pelo mistério supomos os dois. Que segredo protege uma autoridade de tanto sobrenomes, é conhecido pelo diminutivo! Já suas vítimas o conhecem pela marca que deixa nos seus nomes. O agressor não sente a dor que provoca.

Muitos não se dão conta pelo fato de ser difícil encontrar alguma autoridade em nosso país disposta a refletir sobre as conexões entre pensar e agir, ser ou não ser. O universo pessoal da autoridade é o de um clube hípico fechado onde ao cavaleiro só interessa o cavalo que o outro monta. Perde logo a reputação quem cair do cavalo.

Por isso não é de agora que não existe interesse em parar o erro no seu início. Claro que produz também um vago mal-estar quando uma autoridade ameaça a posição do outro com seu temperamento independente, mais do que sua opinião.

A lógica é de desconversar e dar chance ao poder do tempo de forjar o esquecimento geral aos poucos. Quando envolve delito todos podem se salvar capturados pela astúcia dos que fazem negócio com o caos. Aqui é a erva daninha que faz a grama crescer.

O desembargador em questão é desse mesmo caldo azedo que domina o noticiário, um entrave à civilização, e sabe muito bem com quem está falando. Prepara mais um velório para o cadáver da justiça na casta estatal dos intocáveis. Aliás, deveríamos perguntar porque cargas d’água é tão difícil saber como decide um juiz quando a pele do cidadão é que está em jogo. Ainda mais em país desacostumado a obter resposta para pergunta difícil.

Há juízes que ligam a televisão antes da sentença. Outros depois. Há uma simbiose entre juiz e televisão. Situação agravada a cada dia quando mais se vê quem tanto anseia pela aprovação dos seus atos.

O brasileiro para se salvar aprendeu a lidar bem com a rejeição a que está submetido, mas não precisava passar a mão na cabeça do malfeito imaginando que o caráter é um mosaico onde não se vê de ninguém a imagem toda.
Sua indiferença só faz aumentar a frequência do poder equivocado. Uma situação profunda, inalcançável. Um estado em que ninguém é responsável pelos interesses nacionais. Em que verdade-mentira, nome-codinome, viver-morrer é a mesma coisa para o Estado.

Uma sociedade intrigante que leva cada um a precisar viver em seus próprios termos. Desinformados justificam o erro da autoridade com a conversa de que todos são assim. Não, nem todos são assim, somente as autoridades que vivem nos termos de suas instituições complacentes.

Uma das coisas que mais diferencia as sociedades atuais é a ordem política. Pela má política muitos conseguem ornamentar melhor a biografia, alterar status, independentemente da capacidade. A estrutura política das instituições entra em suspensão utilitária quando se trata de punir seus membros. Muitas famílias de autoridades se encastelaram no Estado como castas. Verdadeiros mandarinatos que estão se tornando máfias onde pais corrompem filhos com nomeações e sociedades indevidas.

A amoralidade na relação com o Estado, através dos laços familiares, pode comprometer a legitimidade das sentenças e violar junto aos tribunais a autonomia de ação dos profissionais liberais. Quem não cala, mais sente. 

Curiosamente as espetaculares repercussões na economia familiar não causam nenhum impacto no prestígio moral do alto funcionário. O que permite supor que não são fatores econômicos que levam tantos ilustres ao delito. São ilusões de que alianças políticas os protegem dele.

É o coroamento deformado do êxito de uma mentira que a torna verdade e faz seu autor passar incólume. Pois como o Estado funciona como balsa em correnteza rio abaixo nunca cessa de atrair pessoas para o complô da incorporação à sua estrutura.

Um deslizamento moral que mantém e reproduz a elite dos seus membros. Desiludido, o cidadão sussurra um mau vento para a democracia, que é torcer por alguma conspiração que afaste más autoridades do poder. Não, o Estado não é de seus ocupantes. É a aplicação das leis que pode refazer a ordem.
Paulo Delgado 

Imagem do Dia

Anthony Garner (Espanha)

O custo Bolsonaro

O custo Bolsonaro está a cada dia mais presente. No campo econômico seus efeitos são evidentes. Todos os índices demonstram que a economia foi duramente atingida e o processo de recuperação será lento. O PIB, por exemplo, terá neste ano a maior queda da história republicana.

E, nada indica que poderemos voltar a um crescimento sustentável antes de 2024. O que poderá ocorrer é uma tímida recuperação, mas sem condições de enfrentar as demandas sociais oriundas, especialmente, dos efeitos

da pandemia. Se, internamente, o panorama econômico-social é preocupante — com a queda da renda per capita, o aumento da desigualdade social e a disparada da taxa de desemprego —, externamente o Brasil passou a ser um Estado-pária.

Estamos isolados política e diplomaticamente; e com terríveis repercussões no campo das nossas exportações. Não é de hoje que a irresponsabilidade da política ambiental é mal vista no exterior. Contudo, a desarticulação dos mecanismos de controle estatal, na região amazônica, produzidas pelo atual governo, agravou ainda mais o quadro. Deverá ter um reflexo negativo nos investimentos estrangeiros — principalmente os diretos — e uma queda relativa nas exportações. Sabemos que para conquistar um mercado no exterior (e estamos falando de um setor extremamente competitivo) é muito vezes uma tarefa de anos; contudo, para perdê-lo, é uma questão de meses. Isto já está ocorrendo e se este processo não for rapidamente interrompido, o Brasil vai ter de conviver com uma situação anômala: um agronegócio a cada ano mais eficiente, mas sem possibilidade de ampliar os mercados no exterior, o que levará a uma sensível queda do setor, não só na participação do PIB, bem como nas regiões onde está presente e até nos preços internos de alimentos.

Internamente, o custo Bolsonaro está presente no clima político, a cada dia mais belicoso, isso impede a melhora da qualidade da própria gestão pública, sem falar dos conflitos permanentes com as instituições. Na educação — e o próximo exame do Enem deverá apresentar resultados distintos em relação à série histórica — o fosso entre os mais ricos e os mais pobres vai ser aprofundado. E o quadro de desmonte do Estado deverá atingir a população carente, especialmente na área da saúde. A nau Brasil continua à deriva. E, nada indica que, em curto prazo, deva seguir o caminho da recuperação econômica e do enfrentamento dos graves problemas sociais do país. Muito menos que navegará em mares tranquilos. O maior problema é o timoneiro.

Bolsonaro diz que ninguém morreu de Covid no Brasil por falta de atendimento

Jair Bolsonaro é um homem com pouco conhecimento das coisas. Na quinta-feira, depois de voltinhas de motocicleta pelos jardins do Alvorada e de um colóquio, sem máscara, com funcionários da limpeza, o presidente infectado proseou com apoiadores que o pajeiam às portas do palácio: "Não tem como evitar morte no tocante a isso [Covid]. No Brasil ninguém morreu, que eu tenha conhecimento, por falta de atendimento médico. Todos os recursos o governo repassou para estados e municípios".

Cenas excruciantes de usuários do SUS na fila por uma vaga nas unidades de saúde em estados que atingiram ou estão próximos do colapso do sistema público tornaram-se perversamente banais. Morre-se à espera, embora o presidente da Replúbica afirme não saber.


Morre-se também porque hospitais lotados e alta ocupação de UTIs fazem com que a rede pública priorize o atendimento de quadros graves, deixando desassistidos casos menos severos que tendem a se complicar. Não à toa, esse é um dos fatores que levam a taxa de cura nas instituições privadas a ser maior que nas públicas, como revelado pela Folha. Em média, 51% dos doentes do sistema privado sobrevivem. No SUS, 34%.

Não deixa de suscitar preocupação o fato de Bolsonaro também desconhecer os números de sua (ruinosa) gestão no combate à pandemia. O Ministério da Saúde gastou apenas 29% da verba emergencial destinada ao controle do coronavírus até junho. Segundo o TCU, dos R$ 38,9 bilhões destinados às ações governamentais, apenas R$ 11,4 bilhões saíram dos cofres, quando o país já contabilizava 55 mil mortos.

Para os estados, o ministério repassou apenas 39% do dinheiro anunciado --e 36% para os municípios. O tribunal determinou que o governo apresente explicações sobre a baixa execução e sua estratégia de gastos e repasses. O Conselho Nacional de Saúde afirma que os desembolsos aceleraram em julho. Mas os valores ainda não chegam à metade do previsto.

A democracia e a pandemia

A pandemia do Covid-19 assusta o planeta, com todos os países à espera das vacinas, agora na fase 3 do teste. Mas uma questão se impõe: que ajustes poderão ser feitos nos sistemas democráticos pós-crise sanitária?

Uma introdução histórica: a democracia de Aristóteles tem mudado de feição. Ela concebia a política como a responsabilidade do cidadão em relação à polis. Era uma missão, eles não entendiam a política como profissão. Na Ágora, praça central de Atenas, a democracia direta nascia sob o clamor das demandas populares.


Aos poucos, o Estado substituía o absolutismo dos monarcas pela República, poder corporificado pelo ideário da Revolução Francesa: governo representativo, liberdades, direitos e deveres dos cidadãos.

Abraham Lincoln ajudou a consolidar o conceito: “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Mas ciclos de crise abalaram seus fundamentos. Os três Poderes arquitetados pelo barão de Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário) passaram a vivenciar tensões em suas relações. O chamado presidencialismo de coalizão foi acusado de imperial e absolutista pelo seu “poder da caneta”.

As representações desviaram-se de seus papéis, como Norberto Bobbio advertiu: a democracia não tem cumprido suas promessas, entre as quais a educação para a cidadania, a transparência, o acesso de todos à justiça e o combate ao poder invisível.


Na atualidade, problemas emergem em escala geométrica, corroendo as áreas da saúde (veja-se a pandemia), da educação, da mobilidade urbana, da segurança, da habitação, do saneamento básico, entre outras. No meio ambiente a irresponsabilidade campeia, rasgando a terra e queimando florestas. Países perdem o bonde da civilização. Conflitos étnicos e religiosos explodem. O comércio e a competição entre potências se intensificam, como esta crise entre a China e os EUA, uma espécie de segunda guerra fria.

O que ocorrerá com a democracia nos dias de amanhã? A resposta abriga o estado d’alma da sociedade mundial, contrariada com os políticos. Vemos uma coleção de rancores, ódio e desprezo. Que se propaga não apenas nas democracias. Veja-se a primavera árabe, que formou movimentos em países do Oriente médio.

Em 2011, uma multidão do movimento Occupy London chamava a atenção em uma das capitais mais democráticas do mundo. Em 2012 foi a vez de Washington com o Occupy Wall Street, pedindo mudanças no sistema financeiro. Culpavam-se os governantes por poluição, tratamento cruel contra animais, desigualdade social etc. No Brasil, as manifestações de junho de 2013 levaram ao impeachment da presidente Dilma.

O fato é: de uns anos para cá, a sociedade passou a participar mais ativamente da política. Vislumbra-se um poder centrípeto – das margens para o centro – revigorando a democracia participativa, tendência a ganhar força pós-pandemia.

Novos polos de poder se multiplicam, usando entidades intermediárias como associações, sindicatos, setores, movimentos, fortalecendo a ideia de uma política mais recheada de povo.

Sobre nossa democracia, a verdade é: tem dificuldades de romper os gargalos, como a pobreza educacional, a disparidade de renda entre classes, o sistema político resistente às mudanças, um governo ortodoxo e as mazelas históricas.

No gogó da ema

Temos um remédio santificado entre nós. Não importarão quantos estudos lhe indicarem a ineficiência, temos — teremos, ecoando no zap profundo — um medicamento santificado, glorificado, comungado no altar do Alvorada. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. O próprio retrato de um Brasil — mui influente — que é teórico da conspiração e negacionista.

Não interessa a ciência — essa senhora formal — que testa, pondera e contraindica. A ciência que prudentemente informa, com base na experiência, assim: são muitos os indicativos de que não sirva — podendo até fazer mal se aplicado — para combater a Covid-19. Não importam os estudos. A fotografia do estado espiritual de nossa sociedade vai toda nesta inabalável afirmação de fé: a hidroxicloroquina é a salvação negada pelos que torcem pela doença e contra Bolsonaro.

Então, de repente, tínhamos — temos — um remédio patriota que seria agente político da direita na luta contra o vírus chinês, o agente político inimigo conspirador comunista. A hidroxicloroquina como a própria infantaria conservadora no campo de batalha da guerra cultural, de cuja fantasia depende a existência do bolsonarismo.

Esse esquema propagandístico prosperou e prospera ainda. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. Jair salva. E que não subestimemos a percepção popular a partir da campanha de desinformação bolsonarista: um medicamento — a solução contra a peste — que se queria ministrar para a população, que se poderia ministrar para a população, mas que foi desqualificado por uma concertação do establishment, disposto mesmo a matar brasileiros em troca de não deixar que o remédio de Bolsonaro mostrasse seu efeito curador. Tudo para que ele, Jair, não triunfasse.



O culto à desconfiança venceu. 

“Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Não adianta evidenciar que não trabalha; que não funciona. A mensagem — plantação do "nós contra eles total"— enraíza-se: “Não escutem os especialistas. Não deem ouvidos à imprensa. Estão politizando a questão”. Sim. Numa inversão tão bárbara quanto eficaz, a politização do vírus e de seu enfrentamento é atribuída aos que mostram como o projeto de poder bolsonarista avança para desacreditar os fatos de modo a que somente haja versões.

O culto à desconfiança venceu. 

Bolsonaro faz aquilo que se espera de líderes populistas de sua extração: criação e difusão de mitos. Propagação do que seria, ante a pandemia, o elemento salvador; e elemento salvador — o medicamento — com caráter: acessível ao povo diretamente. Como ele, Bolsonaro: acessível ao povo diretamente. Bolsonaro, segundo a crença bolsonarista: também um remédio. Não é?

Jair salva.

Atenção ao processo discursivo personalista por meio do qual, de súbito, na eucaristia bolsonarista, o presidente e a hidroxicloroquina seriam um só, o mesmo corpo curandeiro sacrificado — aquela panaceia que prescindiria de intermediários para cuidar das pessoas.

Dirão as massas só existentes na narrativa, lá onde Bolsonaro pegaria no batente: “Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Dirá o pastor: “Nós temos a cloroquina. A salvação que nos é interditada. Nós produzimos a cloroquina. A independência salvadora que nos é proibida. Nós podemos — queremos — tomar a cloroquina. Tomemos. Ela está no meio de nós”.

Jair salva. Mas não salvará aqueles que, com responsabilidade pública, legitimaram, ainda que pela omissão, o uso de um remédio como crendice para armar reacionários em cruzada. Muitos médicos. Muitas associações médicas. Muitos hospitais. Muita gente que viu vantagem. Muita gente que fez negócio. Que especulou e faturou.

E há também, triste e gravíssimo, o papel do Exército brasileiro nessa farsa. Uma instituição de Estado, de natureza impessoal, que aceitou se associar — em casamento já indissolúvel — a governo de turno; que aceitou ofertar um seu general da ativa à função de cavalo de Bolsonaro no milagre da multiplicação por meio do qual o presidente se converteu igualmente em ministro da Saúde, púlpito desde onde celebrou, com batina verde-oliva, a missa de canonização da cloroquina.

O Exército chancelou a irresponsabilidade anticientífica e anti-intelectual daquele que ora propagandeia o remédio, a comunhão, para emas.

Não houve Mandetta, um político, nem sequer Teich — aquele que viera para inexistir — que aceitassem tamanha submissão; que aceitassem que seus gogós fossem o da ema. Mas um general — da ativa — topou. O Exército topou. E não foi só. Porque o Brasil, por meio do laboratório do Exército, fabricou, gastando milhões, para satisfazer fetiche de milagreiro, milhões de comprimidos de hidroxicloroquina — resultando em que o país esteja abastecido para a eternidade. Para quê? Para a eternidade de quem? Para investigação conduzida por quem na Terra? Ou caberá somente ao Senhor? 
Carlos Andreazza