quinta-feira, 11 de abril de 2019

Crise contratada

Para alguém sem experiência no ramo, salvo a de ter dado aulas numa universidade que não é de primeira linha, Abraham Weintraub, o novo ministro da Educação, revelou-se pelo menos um homem ousado com menos de 24 horas no cargo.

Demitiu da Secretaria-Executiva o brigadeiro Ricardo Machado que ali chegara há menos de 15 dias. E montou o primeiro escalão do ministério entregando as demais secretarias a economistas. Delas foram desalojados os que de fato entendiam de Educação.

A demissão do brigadeiro irritou a banda militar do governo responsável por sua nomeação. A escolha de economistas ao invés de educadores assombrou os especialistas no assunto. Por ora não houve gritaria com isso. Mas haverá em breve, e não só por isso.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Weintraub defendeu algumas teses no mínimo controversas. Pai de aluno que agrida professor deve ser processado. Se a família do agressor for cliente do Bolsa Família, “no limite” deve ser excluída do programa.

Embora se diga amigo de petistas e até admita que alguns deles possam ser “pessoas boas”, o ministro diz que “uma pessoa que sabe ler e escrever e tem acesso à internet não vota no PT”. Por quê? Porque “a matemática é inimiga do obscurantismo”. Sim, é isso.

Autor da pérola que diz que “os comunistas estão no topo do país, são o topo das organizações financeiras, são donos dos jornais, são os donos das grandes empresas”, o ministro pretende editar livros que tragam a versão da história considerada por ele “a mais correta”.

No caso do golpe militar de 64, por exemplo. Weintraub refere-se a ele como uma “ruptura dentro das regras”. “Houve excessos?“ – pergunta. “Houve”, responde. “Pessoas que morreram? Sim. Mas num dia de protesto na Venezuela morre mais gente”.

Golpe é golpe. Ele significa uma ruptura das regras existentes. O que ele chama de “excessos” foi a tortura e morte de dezenas de opositores do regime militar. Nunca em um só dia de protesto na Venezuela morreu mais gente do que em 21 anos de ditadura aqui.

Para dissertar sobre os graves problemas de aprendizagem nas escolas, o ministro ataca o educador Paulo Freire, que ele mesmo trata com ironia como “o patriarca da educação moderna brasileira”. E pergunta para em seguida desqualificá-lo:

"Há quanto tempo estamos falando de Paulo Freire no Brasil? Deu certo? O Brasil gasta como países ricos em termos de PIB (Produto Interno Bruto) e nossos indicadores estão muito abaixo da média."

Freire é autor de um método de alfabetização adotado em vários países. É também o educador mais premiado fora do Brasil. Com o golpe de 64, foi obrigado a se exilar. O que ele tem a ver com os gastos do país com educação? Freire está morto, babaca!

Pensamento do Dia


Novo ministro da Educação é um Vélez sem sotaque

O ex-ministro Ricardo Vélez queria reescrever livros didáticos para falsificar o passado. Seu sucessor quer usar o cargo para turbinar o bolsonarismo no futuro. Com Abraham Weintraub, a Educação deve continuar refém de cruzadas ideológicas. O novo ministro promete ser um segundo Vélez, sem o sotaque colombiano do original.

Em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, Weintraub insistiu na pregação contra o “marxismo cultural”, um mantra dos olavetes. Disse que é preciso “tomar cuidado com tudo o que sair do MEC, como livros didáticos”. “Estamos preocupados com vazamentos, com sabotagens”, confidenciou, em tom de paranoia.


O novo ministro rejeitou o título de “caçador de comunistas”, mas disse que buscará a “redenção” de quem pensa diferente. “A pessoa não é má pura e simplesmente. Está envolvida numa mentira e aquilo é uma realidade para ela. Precisamos explicar que é uma ideologia errada”, dissertou.

Ele também sugeriu catequizar estudantes para evitar a volta da esquerda ao poder. “Uma pessoa que sabe ler e escrever e tem acesso à internet não vota no PT”, disse. A declaração equivale a chamar de ignorantes mais de 47 milhões de brasileiros, petistas ou não, que votaram no rival do chefe dele.

A exemplo do antecessor, Weintraub estimula o revisionismo histórico para bajular o presidente Jair Bolsonaro. Ele chamou o golpe de 1964 de “contrarrevolução” e disse que não concorda “em chamar de ditadura” o que veio a seguir. Também defendeu “tirar o Bolsa Família” de alunos envolvidos em agressões, o que só condenaria seus pais e irmãos a mergulhar mais fundo na pobreza.

No primeiro dia à frente do MEC, Weintraub distribuiu cargos a outros economistas sem experiência em educação. Ele prometeu destravar a gestão da pasta, o que não será difícil na comparação com a era Vélez. Falta saber se tem algum plano para melhorar a qualidade do ensino. Os desafios do setor são grandes e complexos. Não serão resolvidos com lições do curso online de Olavo de Carvalho.

Classe média está ficando muito endividada em vários lugares do mundo

Uma classe média forte e próspera é fundamental para o sucesso e desenvolvimento de qualquer economia. Ela sustenta o consumo, possibilita muito do investimento em saúde, educação e construção civil, e permite a existência de serviços por meio de sua contribuição tributária, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

No entanto, em diversos países do mundo, a classe média tem visto seu padrão de vida estagnar ou cair, enquanto grupos com rendas mais altas continuaram a acumular renda e riqueza, diz a organização.

Grande parte da classe média está financeiramente vulnerável – ou seja, se encontra incapaz de lidar com gastos inesperados ou quedas repentinas na renda – e endividada.

Nos países que fazem parte da organização, mais de um em cada cinco lares de classe média gasta mais do que ganha, o que gera um risco altíssimo de endividamento excessivo. Esse nível varia de 10% em países como a Estônia e a Polônia a mais de 50% no Chile e na Grécia. No Brasil (que aguarda resposta para seu pedido de integrar a instituição) o índice chega a 27 % dos lares de classe média.


Quase 40% dos lares de classe média em 18 países europeus da OCDE estão financeiramente vulneráveis – índice que varia de 12% na Noruega a 70% na Grécia. E metade dos lares nesses países tem dificuldade em pagar suas despesas recorrentes.

Os dados foram publicados nesta quarta em um relatório da organização sobre as dificuldades financeiras, os crescentes riscos e as pressões enfrentadas pela classe média. Chamado Under Pressure: The Squeezed Middle Class (Sob Pressão: A Classe Média Espremida, em tradução livre), o estudo analisou dados dos 36 países da instituição e de países emergentes como Brasil e África do Sul.Direito de imagemEMPICS

O relatório é o quinto de uma série de estudos sobre as tendências, causas e consequências da desigualdade no mundo.

Ele mostra que em todas as gerações desde os baby boomers (nascidos após a Segunda Guerra Mundial) a classe média diminuiu e sua influência econômica enfraqueceu. Três décadas atrás, a renda agregada dos lares de classe média era quatro vezes maior do que a renda agregada dos lares de renda alta. Hoje, essa proporção é menor do que três.

Segundo a OCDE, isso alimentou a percepção de que o atual sistema socio-econômico é injusto e que a classe média não se beneficiou do crescimento proporcionalmente à sua contribuição para ele.

A instituição sugere a criação de políticas públicas que possam reverter esse quadro e aliviar as pressões sofridas por esse grupo, que é um "motor do crescimento econômico e pilar da estabilidade social".

"Sociedades com classes médias fortes têm índices de criminalidade menores, maiores níveis de confiança e satisfação com a vida, além de maior estabilidade política e boa governança", diz Gabriela Ramos, responsável pela iniciativa de Crescimento Inclusivo da organização, na abertura do estudo.

Na maioria dos países da OCDE, o excesso de endividamento é maior na classe média do que na população em geral – e em muitos deles isso vem crescendo.

Segundo o relatório, um dos principais motivos para esse endividamento da classe média foi uma alta no custo de vida: o custo dos principais serviços e bens aumentou muito mais rápido que a renda.

A renda desse grupo demográfico cresceu mais devagar do que a renda de quem está no topo em cada uma das últimas três décadas. Nos países da OCDE, a renda da classe média cresceu um terço menos do que a renda dos 10% mais ricos.

"O estilo de vida da classe média normalmente é associado com certos bens e serviços e certas condições de vida, como moradia decente, boa educação e acesso a um bom serviço de saúde. No entanto, os preços de bons serviços de saúde, educação e moradia aumentaram muito acima da inflação", explica o estudo.

A concentração geográfica dos melhores empregos fez com que o preço da moradia subisse muito nas grandes cidades. A moradia é responsável por uma parte cada vez maior dos gastos dos lares de classe média. Entre 1995 e 2015, ela aumentou de um quarto da renda para quase um terço.

O envelhecimento da população e novas tecnologias médicas aumentaram o custo de serviços privados de saúde, achatando ainda mais a classe média.

Além disso, a competição no mercado de trabalho pressiona os pais a investir mais e mais em educação, enquanto os serviços do setor se tornam mais caros.

O economista Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da FGV (Fundação Getúlio Vargas), explica que há mais um fator-chave para esse endividamento, especialmente no Brasil.

"Com mais dificuldade de acesso a renda, as pessoas acabam recorrendo ao mercado de crédito", diz ele. "E quando deixam de pagar, a inadimplência aumenta o endividamento. Muitos lares acabam comprometendo uma parcela significativa da renda para pagar juros."

Isso acaba tendo um um efeito de desaceleração do consumo e da economia, o que faz com que a renda cresça menos ainda e gera um círculo vicioso.

Conforme os gastos suplantaram a renda, a capacidade de poupar da classe média caiu muito. Ela despencou entre 2007 e 2010 e ficou estagnada entre 2010 e 2015.

O Brasil se difere da maioria dos países da OCDE em relação ao peso de alimentação e vestuário tem no orçamento das famílias. Na maioria dos países da organização, comida e roupas correspondem a menos de um quarto dos gastos.

No Brasil e na África do Sul, alimentação e vestuário são quase um terço dos gastos dos lares de classe média.

"Com o aumento do custo de vida e gastos crescendo mais rápido do que da renda, muitos lares de renda média têm dificuldade de chegar ao fim do mês. Alguns se tornaram financeiramente vulneráveis, e outros gastam mais do que ganham", diz o estudo.

Governo frutífero


Brasileiro não passa muita fome porque tem muita manga
Tereza Cristina, ministra da Agricultura

Os tempos de Bolsonaro

No universo da física newtoniana no qual vivemos o tempo tem uma medida padrão igual para todo mundo. Não é a que vale para os cem dias de Jair Bolsonaro na Presidência. O tempo da política nem sempre combina com a duração das unidades do tempo cronológico. Para o atual governo, o tempo subjetivo correu muito mais rápido.

Essa rapidez na passagem do “tempo político” é em função de dois fenômenos separados, mas que andam de mãos dadas. Um é o grau de expectativa do público em geral frente ao governo que prometeu mudar o País em prazo recorde. O outro é o grau de intolerância e descrédito com que o mesmo público em geral encara a política. Jair Bolsonaro incentivou e continua incentivando os dois fenômenos.


Não adianta, como integrantes do governo tentam, enumerar medidas, decretos, projetos, propostas ou nomeações como forma de “provar” que as coisas andaram rápido. Nem adianta se queixar de “impaciência” por parte de milhões de pessoas que abraçaram a forte ilusão, reiterada em campanha eleitoral, segundo a qual o capitão resolveria logo o pelotão de problemas.

Serve menos ainda no atual ambiente político argumentar – tema recorrente nas redes sociais mantidas em estado de permanente efervescência – que o governo herdou um País arrebentado por sucessivas administrações perdulárias. E que dez, ou 20, ou 30 anos de incompetência não se revertem em uns três meses. É como esperar que o apego subjetivo e emocional à esperança de mudança imediata seja transformado numa postura calma e racional por quem grita há meses “temos de acabar com tudo o que está aí”.

São conhecidos e foram tratados exaustivamente por toda parte os problemas do governo para lutar na batalha da comunicação, na articulação política para aprovação de reformas, na coordenação de suas prioridades, no estabelecimento de estratégias, na escolha entre as diversas (e até antagônicas) forças políticas que o sustentam – nisso incluindo a personalidade do presidente e a influência aberta ou velada de entes familiares que o cercam.

Em parte as dificuldades resultam de frases de campanha eleitoral que se transformaram em armadilhas conceituais. A principal delas é a diferenciação, totalmente falsa, entre “velha” e “nova” política, quando o que existe é política, à qual pode se dedicar um governante com maior ou menor competência. Em parte as mesmas dificuldades resultam do famoso “modo negação”: é quando o governante, relutando em enfrentar os dados da realidade, atribui a um sujeito oculto ou a uma nebulosa conspiração os obstáculos que não consegue superar (como articular eficientemente uma base de apoio no Legislativo, por exemplo).

Mas talvez a maior dificuldade tenha sido encarar o fato de que o tempo, especialmente o psicológico, mas também o cronológico –, está trabalhando contra, e não a favor do capital político conquistado com a vitória eleitoral em 2018. Há uma urgente necessidade de se atacar questões de curtíssimo prazo e enorme impacto, como a da reforma da Previdência, que não parece refletida na organização e coordenação dos esforços políticos do governo – notório, até aqui, em dissipar parte da energia em temas irrelevantes para lidar com um sufoco como o da crise fiscal.

Um dos efeitos – positivo do ponto de vista da necessidade de aprovação de reformas estruturantes – desse período inicial de impaciência e franca intolerância é a mobilização de várias camadas de elites (política, militar e empresarial) para dar um sentido e direção práticos ao que o governo prometeu fazer e, na percepção generalizada, está gastando tempo subjetivo demais. É a promessa de libertar um país de suas próprias amarras.

Para o atual governo o tempo está correndo muito mais rápido – e contra.

Tonelada Brasil


A mentira na política e o ideário fascista

Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.


De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.

Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.

Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).

Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)

Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.

Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.

Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.

Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.

Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.
Eugênio Bucci

Mediocridade em alta

Deus deve amar os homens medíocres. Fez vários deles
Abraham Lincoln

Governo e seita

Nos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já dá para ver que temos dois governos, um que funciona, outro que parece uma seita religiosa sem um líder ou, pior, com líderes atrapalhados, que às vezes pode ser o próprio presidente, outras é o guru dele, o professor on-line Olavo de Carvalho, que vem acumulando poder na mesma proporção que provoca confusão.

Seus seguidores, especialmente os filhos de Bolsonaro, ouvem seus conselhos e nomeiam e desnomeiam ministros baseados neles, com facilidade assustadora. São uma fonte de incertezas, e muitos, entre eles membros do núcleo militar que Olavo vem inutilmente chamando para um bate-boca virtual, consideram que estão atrapalhando a recuperação da economia.


O balanço deste início de governo não é positivo, e essa constatação já aparece na queda da popularidade do presidente. Mas houve pontos relevantes. O governo andou no caminho certo em áreas importantes: economia e segurança pública, além da infraestrutura, que está dando consequência à decisão de privatizar setores básicos para o desenvolvimento.

Mas andou irremediavelmente errado em setores essenciais, como a Educação e as Relações Exteriores. O ministro Ernesto Araújo continua desmontando o que considera o aparelhamento no Itamaraty, desprezando o conhecimento de embaixadores experientes, como fez agora com Sérgio Amaral, removendo-o de Washington para tentar colocar no lugar um assessor também ligado ao autointitulado filósofo de Virgínia, que ajuda a governar pelo Skype.

Mas o da Educação não resistiu aos primeiros cem dias e já foi substituído. Parece ter sido uma troca de seis por meia dúzia, mas Abraham Weintraub tem sobre Vélez Rodríguez duas vantagens, que podem ser perigosas: fala português, e é mais inteligente para implementar no MEC a mesma agenda retrógrada, com ares de modernidade.

Abandonou, por exemplo, a linguagem vulgar que usava nas palestras sobre o combate ao pensamento de esquerda, como fez recentemente em Foz do Iguaçu, no Foro dos Conservadores organizado pelo filho 03 Eduardo Bolsonaro. “Quando ele (um comunista) chegar para você com o papo ‘nhoim nhoim’, xinga. Faz como o Olavo de Carvalho diz para fazer. E quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais”, disse na ocasião.

Ele também é o autor da seguinte pérola: “Os judeus controlam os bancos, os jornais e o sistema financeiro. São a raiz do comunismo internacional”. E isso porque Bolsonaro diz que “ama Israel”. Ao discursar na sua posse no ministério, parecia outro Weintraub. Listou como objetivos “acalmar os ânimos” e respeitar “diferentes opiniões”. Só que não. Logo em seguida esclareceu o que entende por “pacificar”: “A gente está decretando agora que o MEC tem um rumo, uma direção, e quem não estiver satisfeito com ela vai ser tirado.”

Mas, pelo menos, arrolou entre as prioridades melhorar o ensino, admitindo que o desempenho dos alunos brasileiros nos exames internacionais é equivalente aos de países pobres, quando o gasto com a educação é de país rico.

Weintraub tem razão ao dizer que quem não está de acordo deve deixar o governo. Mas o que mais acontece hoje não são divergências conceituais, pois todos sabem onde se meteram ao aceitar trabalhar neste governo. O que existe é briga de grupos pelo poder.

O caso mais evidente de divergência ideológica foi o da cientista política Ilona Szabó, desconvidada por Moro a pedido do próprio presidente. É o típico caso de erro essencial de pessoa. Ou de ingenuidade. Para não criar mais problema, convidou para o lugar um delegado acusado de misoginia.
Bolsonaro se dedicou muito mais nesses primeiros cem dias a defender sua pauta de costumes e valores, para incentivar o núcleo de eleitores mais radicalizados que o apoiaram na eleição.

A reforma da Previdência, por exemplo, é francamente contrária ao que pensa. Cada vez que diz que não gostaria de fazer a reforma, mas sabe que ela é essencial, o presidente estimula que o Congresso a desidrate.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem então que redobrar seus esforços para convencer deputados e senadores que terão ganho político com a aprovação da reforma ainda no primeiro semestre, ganhando tempo para que as medidas deem resultado para deixá-los fortes nas campanhas de 2020 e 2022.

Silêncio de Bolsonaro sobre execução de músico piora o que já é deplorável

Há dois Bolsonaros na praça. Um é rápido. Outro, lento. O primeiro levou poucas horas para festejar, em 4 de abril, a ação policial em que agentes da Rota passaram nas armas 11 bandidos que tentavam assaltar dois bancos na cidade de Guararema, em São Paulo. "Parabéns aos policiais da Rota", apressou-se em escrever o presidente nas redes sociais. "Onze bandidos foram mortos e nenhum inocente saiu ferido. Bom trabalho", ele declarou.

O segundo Bolsonaro, o lento, não disse uma palavra sobre a lambança que uma patrulha do Exército fez no Rio de Janeiro no último domingo. Os soldados crivaram de balas o carro do músico Evaldo Rosa. Ele se dirigia a um chá de bebê. Estavam com ele no carro uma mulher, um idoso e duas crianças. Foram disparados 80 tiros. Evaldo morreu. Vai fazer uma semana e o capitão não deu um pio. Nem nas redes sociais nem fora delas.

Além de ser executado, Evaldo foi chamado de criminoso pelo Comando Militar do Leste. Em nota oficial, a unidade do Exército acusou o músico de atirar contra a patrulha, que reagiu "à injusta agressão." Era notícia falsa, admitiria o Exército na manhã seguinte, antes da prisão de uma dezena de soldados. E Bolsonaro ainda não reprovou a execução. Tampouco deu pêsames à família. Nada.

Bolsonaro, como se sabe, defende que policiais civis e militares tenham liberdade para matar bandidos sem sofrer punição. Sergio Moro incluiu no seu pacote anticrime a regra segundo a qual um juiz pode deixar de impor penas a agentes públicos quando o "excesso (pode me chamar de tiro) decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Se fosse um presidente razoável, Bolsonaro já teria declarado que uma família a caminho de um chá de bebê não inspira "medo" ou "surpresa" capaz de produzir a "violenta emoção" de 80 tiros. O silêncio do capitão soa como aval, piorando uma situação que já é deplorável.

Paisagem brasileira

Ipê rosa na Serra da Bocaina, Morgilli

Cem dias fugindo do cargo

A política é a arte do possível, disse o primeiro chanceler do Império Alemão, Otto von Bismarck. Para o presidente Jair Bolsonaro, muita coisa teria sido possível nos primeiros cem dias no governo. Isso se ele, primeiro, tivesse um plano a ser executado e, segundo, dispusesse da capacidade de executá-lo com determinação. E o mais importante: ele precisaria, antes de mais nada, ser alguém que quer fazer.

A liberdade para isso, ele tinha. Embalado por 58 milhões de votos e com a oposição em coma, Bolsonaro tinha o caminho livre para lançar os alicerces de um futuro melhor para o Brasil. E não faltava o que fazer, começando pelos cofres públicos vazios, os milhões de desempregados, as crises na educação, na segurança pública e na saúde.


Só que, passados cem dias, Bolsonaro tem pouco a apresentar. Isso tem a ver, também, com o seu governo fragmentado, que reúne quatro grupos que têm muito pouco que ver uns com os outros. Um deles é o grupo religioso, melhor dito: os evangélicos. Há ainda os liberais da economia, os militares e os "antiglobalistas". Difícil imaginar alguém que conseguisse acomodar toda essa gente dentro de uma mesma casa. Mas não devemos esquecer que foi o próprio Bolsonaro que montou esse governo disfuncional.

E o chefe parece que perdeu a vontade de botar ordem na casa. Em vez disso, ele voltou a fazer campanha ao seu estilo, que consiste em publicar tuítes ofensivos e provocadores. Com isso, não apenas desperdiça tempo e energia, mas também queima seu capital político – sem alcançar nada.

Além disso, ele parece não ter muita vontade de governar. Ele dá a impressão de estar teso em suas aparições públicas e lê seus discursos a duras penas. Na sexta-feira passada, queixou-se em público que o seu cargo "é só problema" e que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar. E por que então se candidatou à Presidência da República?

Certamente não porque seja alguém que quer fazer. Como lembrança: em seus 28 anos de deputado federal, não fez praticamente nada de construtivo e chamou a atenção apenas pelos seus impropérios verbais e pelas difamações de adversários políticos. Ele privilegia a destruição em detrimento da construção – até porque é mais fácil destruir do que construir. Para destruir, ninguém precisa ser um visionário.

Ele não quer negociar ou reconciliar, ele não vai ao encontro dos seus adversários para fechar alianças políticas e assim levar adiante a agenda de reformas de seu governo. A impressão que dá é que ele prefere deixar para lá a reforma da Previdência de Paulo Guedes e também não tem nenhuma ideia do que colocar no lugar dela.

Bolsonaro foge da arte da política. Ele é do contra e não pró, e só sai da sua letargia se for para tentar melhorar a imagem da ditadura militar. Só que a Presidência da República não existe para reescrever o passado, mas para escrever o futuro. Depois de deixar os primeiros cem dias passarem em branco, é hora de finalmente começar.
Thomas Milz

A escuridão

Era mais uma prova de como as coisas estavam mal no país, onde só os privilegiados podiam ser tratados com dignidade, e os demais tinham de se conformar com ervas de misericórdia e cataplasmas de humilhação
Isabel Allende, "Um milage discreto"

De cabeça para baixo

Futebol de praia, jogo oficial, bola alta na área: o jovem atacante tenta a bicicleta, fura espetacularmente e se estatela na areia. O experiente técnico, quase um educador, observa, meio conformado: meu filho, você de cabeça para cima já não é lá essas coisas…

Pois tem muita jogada aqui no Brasil que está de cabeça para baixo. Pacto federativo, por exemplo. Prefeitos fazem marcha a Brasília para exigir participação maior no bolo tributário nacional. Querem mais dinheiro distribuído pelo governo federal. O presidente Bolsonaro vai lá e recolhe aplausos ao garantir que vai entregar.

Qual dinheiro?

O governo federal está quebrado, lutando para conseguir um déficit de R$ 139 bilhões neste ano, que será o sexto rombo anual seguido. Também, claro, o sexto ano seguido de crescimento da dívida pública.


Para voltar ao superávit e estancar a expansão da dívida, o governo federal precisa de um ajuste (uma combinação de mais receita e menos despesa) de R$ 300 bilhões.

Isso quando a carga tributária já é muito pesada e os serviços públicos carecem de tudo, de material a profissionais.

Nisso, o pessoal do Ministério da Economia ainda arrisca a bicicleta. Promete reduzir impostos e distribuir mais para estados e municípios.

Os municípios estão quebrados. Dezenas foram criados em anos recentes, a maioria sem a menor condição de gerar receitas próprias. A Constituição de 1988 distribuiu mais impostos para os municípios. As prefeituras, em regra, aumentaram os gastos de pessoal e diminuíram as despesas com prestação de serviços. São, geralmente, inviáveis.

Neste caso, jogar de cabeça para cima seria eliminar municípios, fazer fusões – o que no mínimo reduziria os gastos com estruturas de prefeituras e câmara de vereadores.

Sem condição política. E lá se vão os prefeitos tentar a bicicleta em Brasília.

Pertence a esse mesmo tipo de jogada a tentativa de lideranças políticas e econômicas de introduzir os temas, digamos, do novo século. Uns dizem, por exemplo, que a política monetária clássica – dos regimes de meta de inflação – já não funciona. Vai daí que o BC deveria reduzir a taxa básica de juros para um nível inferior ao da inflação e despejar dinheiro no mercado para estimular o crescimento.

Em países cujos BCs lutam para conseguir elevar a inflação de zero para 1% ao ano, com décadas seguidas de estabilidade monetária e fiscal, aquela já é uma ideia de cabeça para baixo. Aqui no Brasil, onde uma inflação de 4,5% ao ano é um golaço, a sugestão também não para de pé.

Vão pelo mesmo caminho as teses progressistas, pelas quais “não basta” fazer o ajuste para a recuperação do crescimento. É necessário, dizem, investir e gerar empregos.

Ora, por que não há investimentos? Porque um Estado inchado e quebrado segura a economia e atrapalha o empreendedor privado. Ou seja, por falta de ajuste monetário (inflação baixinha com juros idem) e equilíbrio das contas públicas.

Vamos reparar: há 25 anos se discute a implantação da idade mínima de aposentadoria no Brasil. E ainda tem gente dizendo “não basta a reforma da previdência”.

Há 25 anos que o Executivo e o Congresso se dedicam a criar impostos e infernizar a vida do contribuinte honesto. E tem gente dizendo que “não basta” a reforma tributária.

Além de equívoco, tem uma malandragem aí. É difícil defender um sistema previdenciário e um setor público que privilegia escandalosamente os que ganham mais e têm mais privilégios, como estabilidade e aposentadorias integrais. Os números aqui são fatais.

Daí a tentativa de tirar a importância daquelas reformas. Dizer que se precisa de mais investimento público – ou seja, mais gasto – é mais bacana do que defender ajustes e sacrifícios.

É enganação, querer que tudo mundo jogue de cabeça para baixo.

Mas, sem briga, vamos propor um acordo: depois de votar e implementar a reforma da previdência e a tributária, depois de começar a cortar privilégios de parte do funcionalismo, depois que a inflação estiver inteiramente controlada, depois de reduzir o Estado com privatizações, vamos então começar a tratar do que mais falta fazer.

E aí a gente vai descobrir que bastava, sim, fazer aquelas coisas.

Para nossos políticos, todas as chuvas são atípicas

Aprendi o significado da palavra “flagelo” em 1966, quando a maior enchente que a cidade jamais havia visto deixou 250 mortos e mais de 50 mil desabrigados. Não me lembro de ninguém usando a palavra “desabrigados” naquela época, mas os “flagelados” estavam por toda a parte, nas manchetes, nas matérias, na rádio e em pessoa, em abrigos improvisados por todos os cantos.

Entre várias acepções, “flagelo” quer dizer calamidade, infortúnio pessoal ou coletivo.

Um dos abrigos ficava perto da nossa casa, no que é hoje o Shopping dos Antiquários, e era, então, um empreendimento em construção, todo enrolado em dívidas, que ninguém tinha certeza se seria ou não concluído algum dia.

Fui lá uma ou duas vezes com os meus pais que, mobilizados como todo o resto da cidade, levavam ora roupas, ora alimentos. Não tenho lembranças muito nítidas, exceto das pilhas de cobertores e de mantimentos, dessa palavra, “flagelado”, e do horror que me tomava quando imaginava a situação de pessoas que haviam perdido tudo.

Antes, “pessoas que haviam perdido tudo” eram os refugiados da guerra, como a minha família; eu descobria, naquele momento, que era possível “perder tudo” mesmo sem guerra.


De lá para cá passaram-se 53 anos e muitas outras enchentes, mas, para os nossos políticos, cada vez é como se nada houvesse acontecido antes, como se não houvesse memória ou histórico de temporais na cidade. É como se eles não tivessem qualquer lembrança do passado.

Para eles, todas as chuvas são sempre “atípicas” — mas alguns prefeitos são mais atípicos do que outros nos quesitos incompetência e cara de pau. Ouvindo o bispo Crivella falar na televisão, reagindo à enchente como se morasse em Lima, me lembrei mais uma vez da palavra “flagelo”.

Moro desde o milênio passado num prédio em frente a um buraco da Cedae, perto do Corte do Cantagalo. O buraco às vezes é consertado, mas logo desconserta, e fica lá, minando uma água fedorenta e quebrando os carros que passam por cima. Já é ponto de referência na vizinhança, mais ou menos como a saída do metrô.

Digo isso só para situar o edifício; já desisti do buraco. Pois exatamente nesse lugar, onde a pista se divide para ir para Copacabana ou para continuar pela Lagoa, há inundação sempre que chove. Sempre.

Não me lembro de uma única tempestade em que entrar ou sair de casa não tenha se transformado em manobra radical. Mas, em geral, mesmo nos piores temporais, a água costuma baixar rápido. Para isso existem bueiros.

Sob a administração do Flagelo de Deus, porém, a área passou dois dias inundada. Na terça-feira um caminhão guincho, que talvez pudesse estar sendo mais bem aproveitado em serviço, ficou horas atravessado na pista, para impedir o trânsito (que não havia) em direção ao Rebouças. Antigamente se usavam cones para isso.

Uma esculhambação desse nível, um descaso dessa grandeza, são excepcionais até para os padrões do Rio de Janeiro.

Enquanto isso, o governador Witzel, outro flagelo, se diz incapaz de julgar oitenta tiros disparados contra o carro de uma família.

Flagelados, eis o que somos. Todos.

Cora Rónai