quinta-feira, 11 de abril de 2019

Para nossos políticos, todas as chuvas são atípicas

Aprendi o significado da palavra “flagelo” em 1966, quando a maior enchente que a cidade jamais havia visto deixou 250 mortos e mais de 50 mil desabrigados. Não me lembro de ninguém usando a palavra “desabrigados” naquela época, mas os “flagelados” estavam por toda a parte, nas manchetes, nas matérias, na rádio e em pessoa, em abrigos improvisados por todos os cantos.

Entre várias acepções, “flagelo” quer dizer calamidade, infortúnio pessoal ou coletivo.

Um dos abrigos ficava perto da nossa casa, no que é hoje o Shopping dos Antiquários, e era, então, um empreendimento em construção, todo enrolado em dívidas, que ninguém tinha certeza se seria ou não concluído algum dia.

Fui lá uma ou duas vezes com os meus pais que, mobilizados como todo o resto da cidade, levavam ora roupas, ora alimentos. Não tenho lembranças muito nítidas, exceto das pilhas de cobertores e de mantimentos, dessa palavra, “flagelado”, e do horror que me tomava quando imaginava a situação de pessoas que haviam perdido tudo.

Antes, “pessoas que haviam perdido tudo” eram os refugiados da guerra, como a minha família; eu descobria, naquele momento, que era possível “perder tudo” mesmo sem guerra.


De lá para cá passaram-se 53 anos e muitas outras enchentes, mas, para os nossos políticos, cada vez é como se nada houvesse acontecido antes, como se não houvesse memória ou histórico de temporais na cidade. É como se eles não tivessem qualquer lembrança do passado.

Para eles, todas as chuvas são sempre “atípicas” — mas alguns prefeitos são mais atípicos do que outros nos quesitos incompetência e cara de pau. Ouvindo o bispo Crivella falar na televisão, reagindo à enchente como se morasse em Lima, me lembrei mais uma vez da palavra “flagelo”.

Moro desde o milênio passado num prédio em frente a um buraco da Cedae, perto do Corte do Cantagalo. O buraco às vezes é consertado, mas logo desconserta, e fica lá, minando uma água fedorenta e quebrando os carros que passam por cima. Já é ponto de referência na vizinhança, mais ou menos como a saída do metrô.

Digo isso só para situar o edifício; já desisti do buraco. Pois exatamente nesse lugar, onde a pista se divide para ir para Copacabana ou para continuar pela Lagoa, há inundação sempre que chove. Sempre.

Não me lembro de uma única tempestade em que entrar ou sair de casa não tenha se transformado em manobra radical. Mas, em geral, mesmo nos piores temporais, a água costuma baixar rápido. Para isso existem bueiros.

Sob a administração do Flagelo de Deus, porém, a área passou dois dias inundada. Na terça-feira um caminhão guincho, que talvez pudesse estar sendo mais bem aproveitado em serviço, ficou horas atravessado na pista, para impedir o trânsito (que não havia) em direção ao Rebouças. Antigamente se usavam cones para isso.

Uma esculhambação desse nível, um descaso dessa grandeza, são excepcionais até para os padrões do Rio de Janeiro.

Enquanto isso, o governador Witzel, outro flagelo, se diz incapaz de julgar oitenta tiros disparados contra o carro de uma família.

Flagelados, eis o que somos. Todos.

Cora Rónai

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