quarta-feira, 3 de julho de 2019

Lançado na Europa mapa do envenenamento de alimentos no Brasil

Um ousado trabalho de geografia que mapeou o nível de envenenamento dos alimentos produzidos no Brasil foi lançado em maio, em Berlim, na Alemanha, país que contraditoriamente sedia as maiores empresas agroquímicas do mundo. Quem estava presente no lançamento do atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia ficou perplexo com a informação sobre o elevado índice de resíduos agrotóxicos permitidos em alimentos, na água potável, e que, potencialmente, contamina o solo, provoca doenças e mata pessoas. A obra, que já foi publicada no Brasil, é de autoria da geógrafa Larissa Mies Bombardi, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O Brasil é campeão mundial no uso de pesticidas na agricultura, alternando a posição dependendo da ocasião apenas com os Estados Unidos. O feijão, a base da alimentação brasileira, tem um nível permitido de resíduo de malationa (inseticida) que é 400 vezes maior do que aquele permitido pela União Europeia; na água potável brasileira permite-se 5 mil vezes mais resíduo de glifosato (herbicida); na soja, 200 vezes mais resíduos de glifosato, de acordo com o estudo, que é rico em imagens, gráficos e infográficos. “E como se não bastasse o Brasil liderar este perverso ranking, tramita no Congresso nacional leis que flexibilizam as atuais regras para registro, produção, comercialização e utilização de agrotóxicos”, relata Larissa.

A pesquisadora explica que o lançamento do atlas na Europa se deu pelo fato de a Alemanha sediar a Bayer/Monsanto e a Basf, indústrias agroquímicas que respondem por cerca de 34% do mercado mundial de agrotóxicos. A Monsanto, recentemente incorporada ao grupo Bayer, é a líder mundial de vendas do glifosato, cujos subprodutos têm sido associados a inúmeras doenças, incluindo o câncer e o Alzheimer. “Queríamos promover discussão sobre a contradição de sediarem indústrias que controlam toda a cadeia alimentar agrícola – das sementes, agrotóxicos e fertilizantes – e serem rigorosos quanto ao uso de mais de um terço dos pesticidas que são permitidos no Brasil. Eles são corresponsáveis pelos problemas gerados à população porque vendem e exportam substâncias sabidamente perigosas, porém, proibidas em seu território”, diz.

Segundo a geógrafa, as perdas não se limitam à contaminação de alimentos e dos cursos d’água. O atlas traz informações de que, depois de extensa exposição aos agrotóxicos, ocorrem também casos de mortes e suicídios associados ao contato ou à ingestão dessas substâncias.Atlas: Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, de Larissa Mies Bombardi – Laboratório de Geografia Agrária da FFLCH – USP, São Paulo, 2017

Entre 2007 e 2014, o Ministério da Saúde teve cerca de 25 mil ocorrências de intoxicações por agrotóxicos. O atlas mapeia as regiões mais afetadas: dos Estados brasileiros, durante o período da pesquisa, o Paraná ficou em primeiro lugar, com mais de 3.700 casos de intoxicação. São Paulo e Minas Gerais ficaram na segunda colocação, com 2 mil. Das 3.723 intoxicações registradas no Paraná, 1.631 casos eram de tentativas de suicídio, ou seja, 40% do total. Em São Paulo e Minas gerais o porcentual foi o mesmo. No Ceará, houve 1.086 casos notificados, dos quais 861 correspondiam a tentativas de suicídio, cerca de 79,2%. Os mapas de faixa etária mostram que 20% da população afetada era composta de crianças e jovens com idade até 19 anos. Segundo Larissa, no Brasil, há relação direta entre o uso de agrotóxicos e o agronegócio. Em 2015, soja, milho e cana de açúcar consumiram 72% dos pesticidas comercializados no País.

O atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia, em português, foi lançado no Brasil em 2017 e traz um conjunto de mais de 150 imagens entre mapas, gráficos e infográficos que abordam a realidade do uso de agrotóxicos no Brasil e os impactos diretos deste uso no País. A pesquisa que deu origem à publicação teve o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Em Berlim, o lançamento aconteceu na sede do ENSSER (European Network of Scientists for Social and Environmental Responsability), rede europeia sem fins lucrativos que reúne cientistas ativistas responsáveis ambiental e socialmente, em Glasgow, Escócia. O suporte financeiro para o lançamento do atlas na Europa foi da FFLCH e da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP.

Ivanir Ferreira.

Gente fora do mapa


O perigo do passado

O passado é um sítio muito perigoso. É talvez o sítio mais perigoso de todos. Não conheço sítio mais perigoso. Tem muitas armadilhas. E podes modificar o passado, que é uma coisa que não sabia até há pouco tempo. Refazê-lo. Podes ficcionar de tal maneira que o teu passado passa a ser outro
Dulce Maria Cardoso, escritora portuguesa

Quem precisa de oposição?

Deputados do PSL, partido de Jair Bolsonaro, assumiram de vez o papel de porta-vozes dos interesses corporativos dos policiais na reforma da Previdência.

A negociação com vista à aprovação da reforma da Previdência, naturalmente difícil, tornou-se ainda mais complicada em razão de exigências feitas pelos próprios governistas, em especial pelo PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro.

Deputados do PSL assumiram de vez o papel de porta-vozes dos interesses corporativos dos policiais na discussão sobre a reforma. Parte da bancada ameaça rejeitar a mudança no sistema de aposentadorias caso não sejam atendidas as exigências dessa categoria profissional. Para esses parlamentares, pouco importa que o governo, a quem supostamente apoiam, considera esse projeto sua maior prioridade.

Não está em questão aqui a justiça das reivindicações desta ou daquela categoria profissional; numa democracia, todos têm o direito de apresentar suas demandas, e sempre haverá argumentos para defender esta ou aquela exceção. No entanto, o governo, que deve trabalhar para todos, e não apenas para aqueles que dizem apoiá-lo, precisa esforçar-se para que a reforma da Previdência seja a mais abrangente possível, sem permitir que objetivos privados se sobreponham aos interesses do conjunto da sociedade.

Assim, em situação normal, caberia em primeiro lugar ao partido do próprio presidente da República o exemplo de empenho na aprovação da reforma. É dessa base que deveria partir a sinalização mais firme de apoio à intenção do governo de sanear a Previdência – e esse saneamento só será possível se todos os beneficiados forem submetidos às mesmas regras, acabando com privilégios que contribuem decisivamente para o insustentável déficit do sistema.

No entanto, o PSL nunca agiu como base do governo. Nanico até pouco tempo atrás, o partido, graças à sua ligação com Jair Bolsonaro, multiplicou por 50 sua presença na Câmara na eleição do ano passado, transformando-se de uma hora para outra na segunda maior bancada da Casa, mas seus deputados não parecem ter o menor respeito pelas decisões da cúpula partidária, tampouco pelas demandas do próprio governo.

Ao contrário, vários de seus deputados deixam claro que seu único propósito na Câmara é defender as corporações que julgam representar, em especial a dos profissionais de segurança pública. Para muitos desses políticos, o gesto com as mãos a sinalizar uma arma, que consagrou Bolsonaro na campanha eleitoral, era o cartão de visitas sindical dos policiais.

A ameaça de deputados governistas de sabotar a reforma da Previdência caso esta não seja desidratada para atender a suas reivindicações classistas é consequência direta da desarticulação do governo no Congresso. Como se sabe, Bolsonaro não só se ausentou deliberadamente das negociações em favor da reforma, por considerá-las sinônimo de corrupção, como deixou de orientar a frágil base governista sobre como atuar neste momento crucial para o País. Não se pode condenar quem veja nessa atitude do presidente a mensagem de que, no plenário, será cada um por si.

Assim, parece que a decisão do PSL de fechar questão em favor da reforma da Previdência, tomada em março passado, tornou-se letra morta. Na ocasião, o líder da bancada na Câmara, Delegado Waldir (GO), disse que o partido do presidente Bolsonaro estava “dando o exemplo” ao obrigar todos os seus 54 parlamentares a aprovarem a reforma, sob risco de expulsão em caso de rebeldia. Agora, o discurso já mudou. “Apesar de o PSL ter fechado questão, podemos reabrir a discussão e liberar a bancada na votação no plenário”, informou o deputado Alexandre Frota (SP).

Assim, à medida que a reforma da Previdência avança no Congresso, vai ficando cada vez mais claro que o maior obstáculo à sua aprovação nos melhores termos possíveis não está na oposição, que não soma nem 150 votos, e sim nos partidos supostamente governistas. Nada surpreendente, se lembrarmos que o próprio presidente Bolsonaro pautou toda a sua carreira parlamentar como adversário ferrenho da reforma que ele ora defende e como porta-voz muitas vezes virulento de interesses corporativos que ora a atravancam. É em razão desse passado não tão distante – aliás tão próximo que nem passado é – que a conversão de Bolsonaro e dos bolsonaristas ao credo reformista, que alguns dizem ser liberal, soa tão inverossímil.

Nem céu de brigadeiro nem mar de almirante

Quando o governo completou 5 meses, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete da Segurança Institucional da presidência da República, alertou em assustadora entrevista ao jornal Valor: “Subida do dólar, queda abrupta das ações das empresas brasileiras, desabastecimento. Vamos virar uma Venezuela! Vamos disputar arroz no tapa, vamos disputar feijão no tapa!”


À época, o Congresso hesitava em aprovar o crédito suplementar para que o governo pudesse fechar suas contas este ano. O crédito foi aprovado. "Até o final de agosto próximo, o Congresso aprovará também a reforma da Previdência, não a proposta pelo governo no valor de 1,2 trilhões, mas uma estimada em 800 bilhões que permitirá ao governo atravessar os próximos três anos e meio".

Bem que o general Heleno, posto onde está por seus ex-colegas de farda para tutelar um capitão indisciplinado, poderia baixar o tom de suas intervenções daqui para frente e colaborar para que o governo buscasse certa paz de espírito sem a qual dificilmente será bem-sucedido. Mas não. De eventual dono da voz, Heleno passou à condição de a voz do dono. E está feliz com esse papel.

Há seis meses, havia três grupos dentro do governo: o dos militares; o dos técnicos; e o de viés ideológico, afinado com Bolsonaro, seus filhos e o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. O primeiro grupo tinha como missão evitar que Bolsonaro se excedesse. O segundo, tocar a vida. O terceiro, cuidar da pauta de assuntos dos eleitores de raiz do capitão.

O grupo dos militares foi a grande baixa do período. Desintegrou-se. E não só porque Bolsonaro operou para que se desintegrasse, mas porque nunca soube ou nunca quis atuar como grupo. Não basta reunir pessoas com afinidades e chamá-las de grupo. E imaginar que agirão como tal. Os militares no governo nunca combinaram nada. Sequer conversam direito. Perdeu o bonde.

O fim do primeiro semestre de um governo acidental (ainda faltam mais sete) marcou o início da fase sem contraste de concentração do poder nas mãos do capitão defenestrado do Exército por insubordinação e comportamento antiético. Pelas características de temperamento e de conduta do personagem em tela, é perda de tempo especular sobre o que o futuro nos reserva.

O bom sinal é que o país conta agora com um Congresso disposto a exercer suas competências e a não se deixar seduzir por aventuras. E um Supremo Tribunal com maioria de ministros empenhada em fazer com que as leis sejam cumpridas. Resta-nos apertar o cinto e aguardar as turbulências que virão. Não haverá céu de brigadeiro nem mar de almirante com um governo de crises.

O perigoso messianismo de Bolsonaro e Moro

O presidente Jair Messias Bolsonaro está governando há apenas seis meses e já há uma longa fila de aspirantes se aquecendo na pista para sucedê-lo. A ponto de já se poder ler nas redes sociais e nos jornais que "2022 já está aí", algo incompreensível em qualquer país solidamente democrático.

Uma das bandeiras da campanha eleitoral de Bolsonaro que lhe deram 57 milhões de votos, dos quais já se evaporaram, desiludidos, mais de 30%, era a de acabar com a reeleição presidencial. No entanto, uma vez eleito, sua maior preocupação é como devorar quem poderia lhe fazer sombra ou ousar enfrentá-lo no duelo de 2022, se conseguir chegar lá politicamente incólume.

Antônio Conselheiro e a República (Angelo Agostini)
Quem disse que "não nasceu para ser presidente", e pareceu nestes seis meses de Governo agir como uma galinha cega, ao se negar a aceitar os métodos da velha política sem saber tampouco o que seria a nova que havia profetizado para recriar um "novo Brasil", de repente parece ter despertado. Após o presente que lhe caiu nas mãos na recente reunião do G20, com a abertura do livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, algo que seus antecessores vinham preparando havia 20 anos, parece ter ressuscitado de sua letargia. Como escreveu Leandro Colon, na Folha de São Paulo, Bolsonaro parece ter "tomado as rédeas e começado a dar as cartas".

A nova manifestação popular no domingo passado, que não foi uma vitória, mas tampouco um fracasso, deveria ter sido em apoio a sua Presidência, o que indica que Bolsonaro ainda tem uns 30% de seguidores radicais dispostos a ir com ele até o final. Não pude deixar de observar, porém, que os manifestantes exaltaram mais a figura de Sergio Moro, seu ministro da Justiça, o mítico juiz da Lava Jato, do que a dele. E alguns, como observou a colunista da Folha Daniela Lima, viram no tuíte de Moro comentando as adesões à sua figura –"Eu vejo, eu ouço, eu agradeço"– um "eco messiânico" a suas aspirações de poder suceder a seu padrinho. É como se dissesse: "Estou vendo, através do seu apoio, o que Deus quer de mim".

Isso tudo no momento em que todo o desempenho do jovem juiz começa a ficar sob suspeita por causa das revelações de supostas conversas dele pouco republicanas, e talvez até mesmo delituosas, que dariam a entender que forçou, por exemplo, a condenação de Lula para impedi-lo de disputar eleições que, de acordo com as pesquisas, teria ganhado. Sua renúncia como juiz para ser ministro da Justiça do novo presidente Bolsonaro, que certamente não teria chegado ao poder se Lula não tivesse sido impedido de entrar na disputa, está sendo vista como uma preparação de Moro para voos políticos mais altos.

A grande incógnita será, no entanto, a reação de Bolsonaro, valente agora, depois de ter descoberto que nasceu, sim, para ser presidente e foi escolhido pelo Altíssimo. Estaria determinado a permanecer no leme, custe o que custar, caia quem for preciso, incluindo alguns militares do Governo? Não vamos esquecer que Bolsonaro se empolga com guerras e batalhas. Poderia querer imitar o que Elio Gaspari, um dos mais afiados colunistas políticos neste país, criticou do então presidente Lula, em seu antológico artigo Lula, o urso que come os donos, de 9 de novembro 2005.

Segundo o jornalista e escritor brasileiro, Lula teve desde seus primeiros anos do sindicato a astúcia de ir devorando todos os que considerava seus possíveis donos e sucessores, até culminar no caso mais evidente da saída de seu primeiro governo de seu ministro e sucessor predestinado José Dirceu, ideólogo e várias vezes presidente do partido, e que acabou na prisão acusado de ser o responsável e criador do escândalo do mensalão, enquanto Lula não só saiu ileso, como voltou a ser eleito.

É verdade que Lula sempre teve a habilidade política de saber conter as ânsias de seus possíveis sucessores, não só no Governo, mas também no próprio partido, que continua a dominar até mesmo da prisão. Só que em Bolsonaro o que falta é precisamente este feitiço dessa força política inata de Lula, capaz de todos os malabarismos para se manter à tona.

Bolsonaro foi eleito em grande parte com os votos daqueles que não queriam que continuasse governando um partido como o PT, com seus chefes condenados por corrupção, e prometeu em sua campanha que, com ele, Lula iria “apodrecer na cadeia". Não acho que vai conseguir. Os messiânicos Bolsonaro e Moro não deveriam menosprezar a capacidade quase infinita do ex-torneiro mecânico Lula para continuar fazendo política enquanto tiver vida. Que não se esqueçam que o velho e astuto ex-sindicalista está ferido, mas continua vivo e com dentes ainda suficientemente fortes e vontade louca de engolir quem se atreveu a enjaulá-lo.

E, no entanto, se há uma coisa de que o Brasil necessita hoje, não é de nenhum Messias, mas de alguém que reorganize o país, faça avançar de verdade sua economia, ofereça trabalho digno aos 13 milhões de desempregados, não restrinja a criatividade nem sepulte a cultura, e não pretenda humilhar nem militarizar a educação. Alguém que trace um plano sério, científico, sem messianismos, para relançar um novo pacto social capaz de frear a hemorragia de uma sociedade que está resvalando para novos tipos de pobreza que a humilham e envenenam política e espiritualmente.

Se me perguntam que presidente eu gostaria de ver neste Brasil vivo e interessante, mesmo com todas as suas loucuras políticas, eu responderia que preferiria alguém simplesmente “normal”, sem mensagens divinas nem escatológicas, que não precise ser notícia todos os dias. Um presidente normal, de quem até nos esqueçamos do nome, mas que ajude o país a caminhar sem aflições nem sobressaltos populistas, a se enxertar nos países que entenderam que o mundo já é outro. Que compreenda que termos como “velhas e novas políticas”, assim como ideologias carcomidas de direita ou esquerda, ficaram pequenas e incompreensíveis para milhões de jovens que já vivem uma realidade em que a nossa lhes deve parecer, e com razão, de outro planeta.