terça-feira, 10 de junho de 2025

Lauterpacht e Lemkin em Gaza

A cidade da Ucrânia a que hoje chamamos Lviv teve vários nomes — Lemberg, enquanto parte do Império Austro-húngaro; Lwów, denominação em polaco e a atual grafia, desde que foi anexada pela União Soviética, em 1939. É possível contar a história do longo século XX europeu a partir desta localidade. Uma história que se prolonga em forma de tragédia até aos nossos dias.

Há, contudo, uma outra história, porventura ainda mais crucial, cujo epicentro é também a cidade ucraniana: a do direito internacional moderno. Num livro magistral, felizmente com edição em português, Estrada Leste-Oeste – as origens do genocídio e dos crimes contra a humanidade, Philippe Sands, professor de direito em Londres e dos mais reputados advogados em tribunais internacionais, percorre essa história, reveladora dos nossos tempos.


No livro, construído quase como um romance policial, Sands cruza a vida do seu avô (um judeu sobrevivente ao holocausto) com as de dois dos mais eminentes juristas do século XX, Hersch Lauterpacht e Rafael Lemkin. Três “judeus errantes” que passaram a juventude em Lviv, não terão falado pessoalmente, mas foram fundamentais para Sands e para compreender o século XX. Há uma outra personagem neste livro, Hans Frank, conselheiro legal de Hitler, e governador da região durante a ocupação Nazi. Eminente jurista, Frank, o “carniceiro da Polónia”, seria condenado à morte em Nuremberg.

É na Alemanha do pós-Guerra que esta história se inicia, durante o julgamento que abriria uma nova fase nos direitos humanos, quando passou a ser possível julgar líderes de um país num tribunal internacional. Lauterpacht e Lemkin foram personagens centrais, mas discretos deste processo. Devemos-lhes a tipificação dos crimes pelos quais ficaria célebre o julgamento de Nuremberg: Lauterpacht é responsável pelo conceito de “crimes contra a humanidade”, enquanto Lemkin criou o de “genocídio”.

Os dois habitantes de Lviv tiveram uma longa discussão intelectual, mas não é líquido que se tenham conhecido pessoalmente. Tendo vivido e estudado na cidade ucraniana, ambos se exilaram. Lauterpacht fez carreira em Cambridge e, em Nuremberg, fez parte da equipa de acusação britânica. Lemkin conseguiu escapar da Polónia em plena guerra, e ensinaria em Duke. No julgamento foi conselheiro da delegação norte-americana. Os dois eram simpatizantes da causa sionista e o que estava em causa naquele tribunal era para eles, também, uma questão pessoal: tinham perdido quase toda a família no holocausto, às mãos do governador Hans Frank.

Os detalhes da história são fascinantes e o debate intelectual merece ser revisitado. Afinal, na discussão entre crimes contra a humanidade e genocídio trava-se, também, uma distinção fundamental. Conquanto o primeiro conceito remete para o extermínio de indivíduos em larga escala, o segundo sugere o aniquilamento de um grupo de pessoas com características partilhadas e assenta num termo criado por Lemkin: uma amálgama da palavra grega, genos (tribo ou raça) com o termo latim, cide (matar).

Desde outubro de 2023, morreram em Gaza cerca de 60 mil palestinianos, um terço dos quais crianças. Não podemos deixar de pensar no que diriam, hoje, sobre o que se passa neste território martirizado, estes dois homens justos e de simpatias sionistas que ajudaram a moldar o direito internacional. Já o descendente de judeus Philippe Sands, cujos restantes livros mereciam edição em português, é representante legal da Palestina no Tribunal Internacional de Justiça.
Pedro Adão

Somos viciados em pressa. Se a internet falha, ficamos neuróticos

O escritor e jornalista mexicano Juan Villoro, 68 anos, anda quase sempre de porta-chaves no bolso. Não sabe bem que fechaduras abrem aqueles quatro ou cinco sonoros objetos de metal, mas o seu manuseio ajuda-o a concentrar-se nos livros. No meio das chaves está um peão de xadrez, oferecido pelo filho, que de tanto ser manipulado transferiu-se das peças brancas para as negras. Villoro compara o seu “vício” inspirador a amuletos do budismo, do cristianismo e, também, da Grécia antiga, onde alguns dos pioneiros da Filosofia se cruzaram, muitos séculos antes de serem convidados para o mais recente livro dele, Não Sou um Robô (Zigurate).

Num destes dias, de passagem por Lisboa, este artesão das palavras sentou-se conosco a pretexto desta obra em que a leitura (de preferência, em papel) entra num tabuleiro de xadrez para medir forças com a sociedade digital. E se a Inteligência Artificial, noutros tempos, já dava muito que pensar a Garry Kasparov, agora coube a Villoro convocar uma assembleia de estrategos de várias artes e ciências para o ajudar a defender a sua dama. No fim, o empate basta-lhe – e não se fala mais nisso.


Somos os humanos mais alienados da História recente da Humanidade?

Durante a Revolução Industrial, a alienação produzida pelo trabalho manual era muito óbvia. O esforço de passar dez horas numa fábrica ou numa mina tirava a pessoa de si mesma. Hoje, a alienação é totalmente diferente, porque é feliz. Passamos horas e horas no telemóvel a ver ofertas, propaganda, mulheres bonitas, jogos de futebol, notícias que aparentemente nos interessam, e percebemos isso como um benefício, quando na verdade estamos hipnotizados por um feitiço, como magia, e poderíamos estar a fazer coisas mais proveitosas.

Como escreve no livro, depender de uma prótese digital não é promessa de felicidade. Andamos equivocados?

Não, porque os telemóveis e os computadores em geral são muito úteis. A minha atitude não visa erradicar tudo isto nem considerar que cometemos um erro, mas sim valorizar outras coisas além da tecnologia digital. A literatura e a cultura em geral ajudam-nos a lidar melhor com a cultura digital, no sentido de a compreender e de a criticar.

Defende que a tecnologia digital traz mais ameaças do que benefícios. Quais são as principais ameaças?

Por um lado, a dependência total dos dispositivos. Por outro, a ameaça da automação da vida, o facto de contactarmos uma empresa do Estado e sermos atendidos por máquinas que nos passam a outras máquinas. É muito difícil estabelecer uma relação pessoal com um funcionário, que poderia encontrar uma forma de resolver o problema. Em vez disso, lidamos com uma máquina programada para dizer sim ou não. Outra ameaça ainda mais séria é a substituição de funções humanas pela Inteligência Artificial, algo que já acontece em muitos campos, como o jornalismo.

A dependência a que se refere inclui o scroll nas redes sociais e as consequências em termos de alienação e nas decisões que tomamos?

Temos medo de estar fora do jogo, da sensação de ficar à margem. Muitas vezes, não é que estejamos à procura de algo importante, apenas queremos estar presentes. E hoje o nível de presença é medido pelo digital. Se vamos a algum lado, tiramos uma selfie para provar, se é um restaurante, mostramos a comida para que saibam o que comemos. Isto leva a uma escalada de intimidade tão grande que alguns casais chegam a gravar as suas relações sexuais e a publicá-las na internet. Parece que, se assim não fosse, não tinha existido. A imagem digital tem valor notarial, certifica que aconteceu. Vale a pena distanciarmo-nos, como vimos no recente apagão na Península Ibérica. Eu estava em Madrid e, depois da ansiedade inicial, as pessoas saíram à rua, leram livros, jogaram às cartas, conversaram, fizeram exercício, reuniram-se a ouvir rádio. Esta vida comunitária pode existir. Não se trata de acabar com o digital, mas de combiná-lo com outras formas de convivência mais benéficas.

É tóxica a nossa relação com o telemóvel? Como ironiza no livro, o aparelho não reclama por afetos…

É uma relação de amor fundada numa farsa. Em última análise, é uma relação narcisista, porque o telemóvel conhece o dono melhor do que ninguém, portanto, responde o que o dono quer ouvir. Não o confronta e submete-se a tudo. O que lhe devolve é um espelho dele próprio. Já o livro é melhor companhia, porque interpela, desafia e obriga-nos a conhecer coisas que ignorávamos de nós mesmos. A diferença é que o telemóvel repete o que já sabíamos e o livro leva-nos a descobrir zonas ocultas das nossas vidas.

Além de narcisista, alega que a relação com o telemóvel é paranoica. Porquê?

Porque tudo o que dizemos fica gravado no telemóvel, inclusive quando não o estamos a ditar para o microfone. Falamos com alguém sobre uma viagem de praia, e o telemóvel começa a mostrar-nos ofertas de viagens de praia. Além de que muitos dos novos crimes são digitais.

Disse que ninguém nos conhece melhor do que o nosso telemóvel. Nem a CIA, a Mossad, os serviços secretos chineses…?

O Caso Snowden revelou que grande parte do trabalho da CIA é direcionado a cidadãos comuns. O que não sabemos é que esse dispositivo que nos conhece melhor do que qualquer pessoa pode transferir os nossos dados. Hoje, a maior mercadoria do planeta são os dados pessoais e não sabemos onde o seu tráfico acaba. Tanto podem acabar na CIA, no KGB, na China como podem acabar na Google ou na Amazon.

Somos a mercadoria mais valiosa do planeta?

Sim, tornámo-nos mercadorias e isso é tremendo. Também há muitas formas de monitorizarem os nossos hábitos. Mais cedo ou mais tarde, o telemóvel oferece-nos algo que queremos, mas nem havíamos expressado, como um automóvel à medida do nosso gosto e orçamento, levando-nos a pensar que chegámos lá sozinhos, porque o algoritmo opera por semelhança com pesquisas anteriores, das quais deixamos rasto, que se transforma numa espécie de ditadura. Ao contrário, a cultura muda o nosso paradigma. Abrimos um livro de um escritor russo, japonês ou mexicano e não sabemos onde nos vai levar, se vamos gostar e o que vai dizer sobre nós.

Se escolhermos um e-book, também nos expomos mais a algoritmos?

Sim, porque o e-book lê-nos. Sabe onde ficamos mais tempo, do que mais gostamos, que frase sublinhamos, tudo isso.

A informação em papel proporciona um maior potencial de conhecimento?

Claro. Uma das coisas mais gratificantes sobre jornais impressos é a sucessão de informações. Na primeira página está o jornalismo de necessidade, o novo campeão de futebol, o novo Papa, o que aconteceu nas negociações de paz para a Ucrânia. Mas, à medida que viramos páginas, surgem outras notícias e, de repente, deparamo-nos com algo que não sabíamos e que pode interessar-nos, seja uma situação pessoal, científica, religiosa ou desportiva. E isso é maravilhoso. O problema com a leitura online é que ela é muito útil quando já sabemos o que procuramos, mas, pelo caminho, ao fazermos scroll, aquele assunto parece infinito e não encontramos mais nada.

A voragem da informação online prejudica a capacidade de entender o mundo à nossa volta?

O mais importante sobre a cultura é que ela nos dá um mapa para entender a realidade. E esse mapa de compreensão pode ser tão amplo quanto os nossos interesses. Podemos aprender sobre o nosso bairro a partir de um romance local ou sobre o universo num livro científico. Esse mapa geral permite organizar o mundo e estabelecer associações entre diferentes partes da realidade. Portanto, se tivermos essa preparação, poderemos entrar mais facilmente no mundo digital e tirar dele o que é mais benéfico para o nosso mapa.

Confirmar informações divulgadas nas redes sociais parece dar muito trabalho. É mais fácil ler, dar crédito e comentar?

Vivemos no mundo da pós-verdade. O dicionário Oxford escolhe uma palavra a cada ano para retratar a realidade e, em 2016, quando Trump venceu a sua primeira eleição, escolheu essa, que nada mais é do que o uso ideológico da mentira. E o Washington Post deu-se ao trabalho de contabilizar as mentiras certificadas que Trump proferiu no seu primeiro ano no cargo, que foram cerca de duas mil, o que é uma loucura. Pode governar-se a mentir. Significa isto que a verdade já não importa? Pelo contrário, há tanta mentira, há tanta notícia falsa, sites que dizem que a Terra é plana, que os humanos nunca pisaram a Lua, que o Holocausto não aconteceu, etc., que a verdade tornou-se mais importante do que nunca. Nem sempre se alcança, mas acredito que o trabalho do jornalismo, da literatura e da cultura tem que ver justamente com manter viva a chama da verdade. Não podemos desistir de conhecer a realidade comprovável e verificável.

Ainda assim, tornou-se mais fácil para os políticos manipularem e atraírem pessoas com ideias populistas e extremistas?

Claro, porque as redes sociais também fomentaram uma lógica exclusivamente binária, na qual ou se é a favor ou se é contra, sem nada no meio, o que sem dúvida favorece os populistas extremistas, que tentam radicalizar o discurso e espalhar a ódio. E há uma esperança injustificada a dizer: “Vamos tornar a América grande novamente.” Isso não significa nada. É apenas um anúncio.

Resgatado ao passado.

Exatamente. E falhou no passado. É incrível como coisas que já falharam são apresentadas como novidades positivas. O facto de se tomarem decisões pelas redes sociais explica em grande parte a ascensão de políticos populistas como Bolsonaro, Trump, Milei e Salvini. Portanto, a cultura é um instrumento de resistência política ao pensamento único e ao pensamento binário, em defesa do pensamento complexo.

O conhecimento sobre esse passado poderia mudar os pratos na balança?

Temos uma crise de passado. As novas gerações vivem num eterno presente, o presente das redes, e consideram que o passado não só já passou como está obsoleto. É grave, porque a transmissão de valores que constroem uma tradição passava de geração em geração. Mas esse trânsito está muito fraco hoje. Milan Kundera disse que vivemos num planeta de inexperiência, porque acreditamos que tudo acontece pela primeira vez e começamos do zero. E isso permite que um partido político como o Vox, em Espanha, diga o mesmo que dizia o Falange de Franco antes da guerra civil. Uma das grandes virtudes da cultura é justamente obter lições do passado que podem ser atuais. É por isso que os povos indígenas da Amazónia, no Brasil, cunharam uma frase que considero muito preciosa: o futuro é ancestral, ou seja, as soluções para muitas coisas estão entre nós há muito tempo.

Por quanto estão os algoritmos a ganhar aos filósofos no campeonato de influenciar a opinião pública?

O problema é que os algoritmos são infinitos e, por outro lado, Spinoza, Schopenhauer ou Kierkegaard não vão falar connosco de uma maneira especial. Eles não vão sussurrar-nos coisas agradáveis ao ouvido, são professores exigentes, querem ver-nos a argumentar. O telemóvel é um espelho distorcido de nós mesmos, enquanto a Filosofia é uma janela. São cristais diferentes.

Como é a sua relação com os livros?

É caótica, mas espero que seja produtiva, porque é uma relação muito intensa. Perdi muitos livros. Escrevi um infantil, chamado O Livro Selvagem, que não quer ser lido. Muitas vezes tive a sensação de estar à procura de um livro que não está nas livrarias nem nas bibliotecas, e por isso encontrar este pareceu-me fascinante.

A julgar por este último, Não Sou um Robô, arrisco dizer que centenas de livros contribuíram para a sua escrita.

Sim, é uma discussão coletiva, pois não sou especialista no assunto. Ninguém o pode ser, porque somos os bárbaros de uma nova era. Não sabemos o que está a acontecer. Estamos na costa de um oceano cujos limites desconhecemos. Então, valia a pena conectar diferentes especialistas. Cito astronautas, espiões, economistas, teólogos, filósofos, romancistas, pessoas que refletiram sobre o assunto, porque nos diz respeito a todos. Tentei estabelecer uma conversa social porque não a encontrei na realidade. A literatura pode ser esse veículo.

Resultou num exemplar que traz outra capacidade que destaca na literatura: a de interligar conhecimentos.

Gostei muito de ouvir isso, porque o formato do livro é um pouco um espelho das preocupações contemporâneas. Há muita informação dispersa, há um limiar de atenção limitado, então eu queria criar passagens curtas e significativas que estabelecessem pontes entre diferentes formas de conhecimento para oferecer um retrato da realidade. Um dos grandes perigos da especialização é que os académicos sabem cada vez mais sobre cada vez menos. Falta conhecimento geral. Na Grécia Clássica, por exemplo, Aristóteles podia discutir ciência, astronomia, saúde, política, teologia. Este livro é sobre criar essa comunidade com recursos da crónica e do ensaio.

A velocidade a que hoje se vive é inimiga do conhecimento?

Uma das coisas mais interessantes sobre o Oráculo de Delfos eram os lemas, cujo mais conhecido é o “Conhece-te a ti mesmo”. Mas outro é fazer tudo com equilíbrio. No livro, falo sobre um diálogo com Platão em que Sócrates diz: a linguagem pode ser um alívio ou um veneno. Todas as coisas que curam também podem matar. Tudo depende do equilíbrio, da dose. E o mesmo ocorre com o uso do tempo. Há coisas para as quais precisamos de pressa, outras para as quais é melhor a lentidão. Hoje, somos viciados em pressa. Queremos chegar a todos os lugares mais rápido, queremos informações instantâneas na internet. Se a internet falha, ficamos neuróticos. Precisamos de uma nova liturgia, não religiosa mas laica, para gerir o tempo de maneiras diferentes, porque tudo isto é aprendizagem social, o mundo digital não cria a sua pedagogia. Seria muito útil se as escolas trabalhassem, por exemplo, com os pais, que não sabem como se relacionarem com os filhos. Há muitas coisas que estão a acontecer connosco e às quais não estamos a prestar atenção.

Com a licença de Mark Twain, os relatos sobre a morte do livro são manifestamente exagerados?

Sim, totalmente. O problema é que os humanos adoram notícias sobre o fim dos tempos. Quando um grande pensador morre, os jornais dizem: “O último humanista morreu.” É fascinante que algo seja o último e que sejamos testemunhas dele. Um grande paradoxo foi o do grande comunicador canadiano Marshall McLuhan, que profetizou o fim do livro num livro magnífico, chamado A Galáxia de Gutenberg. O sucesso da obra mostrou que o livro tinha futuro, por muito que a mensagem do autor versasse sobre o fim do livro.