sábado, 31 de agosto de 2019
Soldados de Caxias
Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece uma “criada por Bolsonaro”).
Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.
A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.
Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.
A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.
Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.
No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.
A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.
A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.Demétrio Magnoli
O milionário que comprou 7 milhões de hectares na Amazônia por causa do seu cordão umbilical
Aquela reportagem me deu dores de cabeça. A notícia havia sido dada pela imprensa brasileira. Eu a contei para o jornal lembrando que se tratava da aquisição de um território do tamanho da Holanda e da Bélgica juntas. Uma verdadeira loucura que transformou o empreiteiro brasileiro no maior latifundiário do planeta. No seu território, comprado por uma ninharia, corriam 28 rios e havia várias reservas indígenas e aldeia inteiras.
Eram terras do Estado que nunca poderiam ter sido vendidas. Foi preciso a intervenção do então ministro da Justiça, Renan Calheiros, do Governo de Fernando Henrique Cardoso. Verdade ou não, Rego também era acusado de envolvimento em episódios escabrosos como assassinatos, ocultação de cadáveres, atos de escravidão e formação de quadrilhas paramilitares. O novo dono daquela imensidade da Amazônia andava acompanhado então de 14 homens armados e o juiz do caso era escoltado dia e noite por dois policiais.
No território amazônico —que eu nunca soube como o milionário conseguiu adquirir, pois era oriundo de uma família muito pobre que havia enriquecido com contratos de obras de construção com o Estado— havia na época enormes tesouros naturais como reservas de diamantes, ouro e a maior reserva de mogno do planeta, então avaliada em 7 bilhões de dólares.
Meu artigo levou este jornal a publicar um editorial lembrando que, ainda que respeitada a soberania brasileira sobre a Amazônia, aquele santuário ecológico, de algum modo “era responsabilidade de todos” pela importância ambiental que constitui para toda a humanidade.
O empreiteiro e latifundiário Rego devia ter boas relações com o Governo, pois recebi uma carta do então embaixador brasileiro em Madri em que tentava me explicar quais publicações devia ou não consultar e apreciar para o meu ofício de correspondente
Respondi delicadamente que nunca teria me permitido explicar a um embaixador como devia exercer sua delicada missão de diplomata e que eu conhecia meu ofício, pois tinha 30 anos de profissão, dos quais mais de 20 como correspondente. Pouco depois o advogado do novo proprietário dos 7 milhões de hectares da Amazônia me telefonou, fazendo observações sobre minha reportagem. Disse-lhe que a melhor solução seria que ele me organizasse uma entrevista com Rego. Respondeu que ele não queria se encontrar pessoalmente comigo, mas que poderia conversar por telefone. Assim foi. Mostrou-se muito amável e tentou me convencer de que havia comprado legalmente aquele enorme território da Amazônia.
Perguntei-lhe por que queria comprar tanta terra. Respondeu: “Eu nasci lá e minha mãe enterrou o cordão umbilical naquela terra”. Voltei a perguntar-lhe se era necessário adquirir um território como a Bélgica e a Holanda juntas. E me respondeu com candura: “Já que decidi comprar, comprei tudo”.
O que o empresário milionário deveria ter então eram boas informações até dentro deste jornal em Madri. Ele me recriminou que eu tinha escrito o editorial em que se afirmava que a Amazônia era responsabilidade de todos e não apenas dos brasileiros. Expliquei-lhe que neste jornal os editoriais não têm autor. E que a responsabilidade final era do diretor e que ninguém sabia quem os escrevia. E ele respondeu com certo ar de orgulho: “Pois nós sabemos que foi o senhor”. Tinha razão, embora nunca soube como ele ficou sabendo.
Não fiquei surpreso, portanto, que ele tivesse amigos poderosos que o ajudaram a ser dono daquele tesouro de sete mil hectares de uma terra quase sagrada que é de todos os brasileiros e que ninguém tem o direito de se apropriar dela.
Tudo isso para lembrar aos jovens jornalistas brasileiros, aos quais dedico esta coluna, que há 20 anos a questão da Amazônia era tão quente fora do Brasil quanto os incêndios que hoje a destroem e que continua sendo tão mal administrada pelos governos como sempre. Será esta a vez em que a guerra na qual se meteu o presidente Jair Bolsonaro, como um elefante em uma loja de cristais, e que desafiou a diplomacia mundial, que o país tomará consciência do tesouro e da responsabilidade de que deve prestar contas não apenas aos brasileiros, mas ao mundo?
A cruzada do papa pelos povos da floresta
O encontro pode fazer do papa o maior anteparo à política de Bolsonaro para a Amazônia. Ao contrário do presidente francês, Emannuel Macron, contido por seus rivais europeus na comedida reunião do G-7, Jorge Bergoglio contará, no sínodo, com bispos de oito países (Brasil, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guianas e Suriname) afinados em sua cruzada pela região.
Órgão consultivo do papa, o sínodo discute as ações da Igreja Católica em missões por ele definidas. A nuance de exército eclesiástico é relativizada pelo formato. O papa não participa do encontro e não está obrigado a seguir suas recomendações. No tema em questão, porém, somam-se bispos comprometidos com a região e um papa que, desde o início do seu pontificado, identificou, na questão ambiental, um tema transversal às disputas de cunho moral que dividem o clero.
Com habilidade, o papa cuida para que seu discurso não seja facilmente carimbado. Não se alinha à tese de "pulmão do mundo", que seria engrossada pelo presidente francês mais de um ano depois. Em Porto Maldonado, mostrou-se disposto a "romper com o paradigma histórico que considera a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes".
Para isso, deu nome a quase todos os bois da floresta, desde a "pressão de grupos econômicos por petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais" quanto o interesse de movimentos que, "a pretexto de conservar a floresta, se apropriam de grandes extensões de terra e a tornam inacessível aos povos nativos".
O sínodo, cujas reuniões preparatórias já entraram no radar da Agência Brasileira de Informações (Abin), não se limita às fronteiras da floresta. Ao fincar estaca no discurso ambiental, o papa também firma sua liderança contra a nova direita mundial e seus principais porta-vozes.
O mais estridente deles, Steve Bannon, conselheiro do bolsonarismo, disse, em entrevista recente ao "National Catholic Register", jornal católico e conservador dos Estados Unidos, que o papa transformou a Igreja Católica num partido político: "Ele [Jorge Bergoglio] hoje é parte do sistema global contra mudança climática. Não é nem mesmo um centro-esquerda, é da esquerda radical. Seu partido político apoia os Verdes, que, para mim, são, essencialmente, um movimento teológico".
Bannon, que busca legitimidade para se arvorar contra o papa em sua origem familiar de imigrantes operários irlandeses católicos da Virgínia, começou a alvejar o papa quando este, em discurso na linha de fronteira do México com os Estados Unidos, durante a campanha de Donald Trump em 2016, disse: "Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que estejam, e não em construir pontes, não é um cristão". Sua cruzada em defesa dos imigrantes levou ainda o primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, outro consulente de Bannon, a tentar jogar os italianos contra o papa.
O marqueteiro de Donald Trump acusa o papa ainda de ser aliado chinês e partidário do braço católico do 'marxismo cultural', a Teologia da Libertação - "Ele é ao mesmo tempo jesuíta e peronista". Cativa, no episcopado e na política, aliados em torno da ideia de um novo cisma da Igreja, que teria por base as massas operárias que se movem, no mundo inteiro, pelo discurso contra imigrantes.
O cisma que hoje mais ameaça a Igreja Católica, no entanto, é avanço dos pentecostais e seus derivados. Depois de se expandirem dos Estados Unidos para o resto do mundo, tornaram-se ponta de lança da direita israelense sob o pretexto dogmático de que a volta de Cristo à Terra só será possível quando os judeus estiverem assegurados na terra prometida.
No Brasil, espalharam-se pela Amazônia como em nenhuma outra região do país. Foi no Norte que o PT perdeu, pela primeira vez em 20 anos, uma eleição presidencial. Nas contas do demógrafo José Eustáquio Diniz, dos seis Estados em que a proporção de votos evangélicos tem relação mais estreita com o apoio ao presidente Jair Bolsonaro no segundo turno de 2018, quatro (Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas), estão no Norte. Os outros dois Rio e Espírito Santo, Estados não nortistas de maior proporção evangélica.
Tem sede em Manaus, por exemplo, o Ministério Internacional da Restauração (MIR), denominação pentecostal que, em 2014, atuou decisivamente em favor de Marina Silva e, em 2018, bandeou-se para o bolsonarismo tendo a atual ministra Damares Alves como uma de suas principais interlocutoras no governo. Dos sete Estados em que o MIR tem sede, quatro (Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará) estão no Norte.
Apesar de os primeiros registros de protestantes na Amazônia datarem do século XVI, com as incursões francesas de huguenotes no Maranhão, foi só com o pentecostalismo que, no início do século XX, os católicos passaram a ter, de fato, rivais na evangelização. A conquista se deu paulatinamente à exposição de populações indígenas e ribeirinhas ao avanço de mineradoras, madeireiras e pecuaristas numa região em que o escasso clero católico, há tempos, deixou de dar conta das aflições terrenas de seus fiéis.
Em artigo que esmiúça as práticas religiosas de povos tradicionais da Amazônia, dois antropólogos, Manoel Ribeiro de Moraes Junior e Donizete Rodrigues, associam o avanço do pentecostalismo à assimilação de rituais do curandeirismo e do xamanismo caboclo. As práticas exorcistas de purificação do corpo, as danças e uma atuação assistencial massificada aproximaria mais facilmente os pentecostais das populações indígenas aculturadas do que os católicos. O xamã e o pastor se confundem como operadores de ritos que se dizem capazes de curar, física e espiritualmente, os fiéis.
Para enfrentar o pentecostalismo caboclo e o exorcismo de Steve Bannon, o sínodo está disposto a enfrentar velhos dogmas católicos. O presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e prefeito emérito da Congregação para o Clero, em Roma, d. Claudio Hummes, já reconheceu que uma das soluções pensadas para fortalecer seus exércitos, numa região em que 70% das comunidades não recebem os sacramentos católicos, é a dispensa do celibato na ordenação de padres.
Arcebispo emérito de São Paulo e um dos cardeais mais próximos do papa Francisco, Hummes tem enfrentado ao longo de toda a preparação do sínodo as desconfianças do governo Bolsonaro. Como, além dos bispos e seus auxiliares, o sínodo contará também com representantes de comunidades indígenas e leigos envolvidos com o tema. O governo brasileiro pediu para ter assento no encontro mas o Vaticano não cedeu à presença de representantes oficiais de nenhum governo.
O sínodo enfrenta a retranca governista que o vê como um encontro anti-Bolsonaro destinado à internacionalizar a Amazônia, obsessão histórica dos militares brasileiros. Contra a ideia fixa, a Igreja exibe a Encíclica do Meio Ambiente, inspiradora do encontro de outubro. O texto data de 2015, quando o atual presidente ainda estava no início de seu último mandato como deputado federal e se limitava a brigar com o Ibama pela pesca em área preservada de Angra dos Reis (RJ). São abundantes, ainda, manifestações críticas à política ambiental de governos anteriores, como a do bispo emérito do Xingu, d. Erwin Kraütler, que se insurgiu a contra a construção da usina de Belo Monte - "É um monumento à insanidade" - pelos governos petistas.
O sucesso do sínodo dependerá mais da estratégia da Igreja em se fazer ouvir por aqueles que moram na Amazônia do que de seus embates com o governante de plantão. No discurso de Porto Maldonado, o papa despiu a igreja do discurso catequizante para abraçar a ideia de que são os povos da floresta que hoje têm ensinamentos para o clero: "Nós que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar - sem o destruir - o tesouro que encerra esta região, ouvindo ressoar as palavras do senhor a Moisés: 'Tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa'".
Ainda está pouco claro, porém, como se efetivaria a aproximação de um clero sem braços, ante a concorrência de denominações pentecostais mais próximas do bolsonarismo e da efervescência ritualística dos povos da floresta. Ainda que enfrente a concorrência de denominações pentecostais, o papa Francisco tem se distinguido pela aproximação com outras religiões, como demonstrou na busca de diálogo com o Islã.
O que não parece haver dúvidas é que, quando os bispos e as lideranças indígenas se reunirem a partir de 6 de outubro no Vaticano, durante um encontro que tomará três semanas de discussões e votações, os documentos lá produzidos serão um reforço a posições assumidas por um papa alvo de bombardeios dentro e fora da Igreja.
A força do papa como liderança capaz de denunciar a avidez de grupos econômicos sobre a Amazônia, a histeria de entidades conservacionistas que querem fazer dos povos da floresta prisioneiros de seu próprio infortúnio e os interesses de governantes que fazem da pauta ambiental joguete de suas disputas de poder depende, em grande parte, deste sínodo. A ver como o clero católico será capaz de colocar tudo isso, junto e misturado, no púlpito de suas igrejas.
A perda da esperança
Como se fosse uma síntese de suas convicções mais arraigadas, no mesmo episódio o presidente Bolsonaro menosprezou os problemas do meio-ambiente, embora tenha sido avisado pelos estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e entrou em conflito, direto e pessoal, com o presidente Emmanuel Macron, da França, país símbolo das liberdades individuais e dos direitos humanos, legados fundamentais do Ocidente à civilização.
Civilidade que não esteve presente no desacato à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. Embora tenha dito que não a ofendeu, Bolsonaro apagou sua mensagem misógina do twitter, numa autoincriminação.
Aproveitando-se de uma demagogia ecológica de Macron, que tentou levar a discussão para o lado da internacionalização da Amazônia, Bolsonaro tirou da manga a carta do patriotismo que, como disse Samuel Johnson, numa versão amenizada, é o último refúgio dos sem argumentos.
Não era preciso, Macron foi isolado pelos demais líderes europeus de peso, como Angela Merkel, da Alemanha e Boris Johnson, da Inglaterra.
Talvez seja a faceta mais nauseante de seu comportamento como chefe de Estado o retrocesso que pretende impingir a uma sociedade que avançou em medidas sociais desde a Constituição de 1988, e nos últimos anos vem ampliando essas conquistas com decisões que nos colocaram no campo de valores comportamentais progressistas contemporâneos.
Falta ao presidente a compreensão de que é o representante de um país, e não de um restrito grupo de apoiadores que comungam seus pensamentos e se apresenta nas redes sociais de maneira acafajestada.
Bolsonaro não leva em conta alguns dos grandes legados das democracias ocidentais: separação da figura pessoal do governante, e suas próprias opiniões, do cargo institucional que representa; separação dos assuntos de Governo e de Estado; separação entre Estado e Religião, qualquer que ela seja. Cotidianamente vai de encontro a tudo isso.
Na visão de seus mentores, como Olavo de Carvalho, o espírito ocidental estaria sendo mitigado por uma política globalista, e é preciso reforçar a herança histórica, cristã, cultural, bem como o papel da família e do estado de direito a partir da tradição do liberalismo dos EUA.
Seria preciso resgatar o passado simbólico das nações ocidentais, mais calcado no imaginário representado por Trump do que pelas democracias européias.
Falando em seminário da Academia Brasileira de Letras, no encerramento de um ciclo coordenado pela escritora Rosiska Darcy de Oliveira intitulado “O que falta ao Brasil?”, o embaixador e ex-ministro Rubem Ricupero fez uma análise sobre o país às vésperas do bicentenário de sua independência.
Seu temor, registrado no título da palestra - Um futuro pior que o passado? – se baseia na história recente, cujo presente vê atingido por “desgraças simultâneas” que produziram o efeito equivalente ao da guerra “sobre uma sociedade até então poupada de catástrofes históricas, como derrotas e ocupações estrangeiras”.
Para Ricupero, “o Brasil jamais tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que destruíram a autoestima de todo um povo”.
Esse passado próximo, lamenta, não acabou de passar, é ainda o nosso presente. “Neste mesmo instante, ele continua a nos fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam”.
O que considera “a mais angustiante crise de nossa História”, Ricupero vê agravada “pelo advento de um governo retrógrado, cujo único programa reside na demolição sistemática do passado”.
Mas, o pior, analisa o ex-ministro Rubem Ricupero, é que “perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado”.
Capitão provoca a febre e reclama do termômetro
Chefe da maior fábrica de crises do Brasil, instalada no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro especializou-se na produção de instabilidade política. Fornece ao mercado uma insegurança que desestimula investimentos e retarda a recuperação da economia. Nesta sexta-feira, o presidente queixou-se da forma como os jornais noticiaram o crescimento econômico miúdo (0,4%) do segundo trimestre.
Responsável pela febre que retarda a saída da crise, Bolsonaro implicou com o termômetro. Insinuou que os editores de Folha, Estadão e Globo formaram um conciliábulo para injetar pessimismo nas machetes: "Tudo combinado", disse o presidente aos repórteres, na saída do Alvorada. "O editor tem de aprender. Pelo menos não combina, pega mal. Não tem o que falar, não tem o que criticar. É obrigado a criticar. Então, tem o 'mas'".
Perguntou-se a Bolsonaro se ele considera que o pulinho de 0,4% registrado pelo IBGE no segundo trimestre é um crescimento acelerado. O capitão deu o braço a torcer: "Não é rápido. É lógico que é lento, a economia é igual a um transatlântico. Até na nossa casa, quando o pessoal está endividado aí, é devagar. É complicado recuperar".
O que espanta é a capacidade de Bolsonaro de criar do nada as crises que tornam mais lento o que já caminha devagar. A visão turva impede o presidente de enxergar o óbvio: a imprensa não é sócia da fábrica de crises do Planalto. Apenas leva às gôndolas a mercadoria que o governo fornece. Se, de repente, por milagre, o Planalto começar a produzir serenidade, as manchetes mudarão de assunto instantaneamente. Sem a necessidade de combinações.
O que é pior neste governo
A repulsa à ciência aparece de muitas formas. Quando ministros põem em dúvida aquilo que é consenso entre cientistas, como as mudanças climáticas, é um caso. Ou, então, quando o governo enxerga ideologia em números do IBGE, do Inpe, certamente outros exemplos virão. De uma forma mais ampla, porém, esta recusa da ciência põe em perigo o futuro econômico do Brasil. De duas formas.
A era digital, na qual entramos, é em essência aerada matemática. Os dois braços de avanços tecnológicos nos quais estamos mergulhando —em biotecnologia e em inteligência artificial —têm por pedestal uma matemática muito sofisticada. É ama temática do DNA e ama temática por trás dos softwares capazes de aprender.
Não bastasse, a conclusão de que vivemos um tempo de violentas mudanças climáticas se baseia em modelos matemáticos.
Nunca o Brasil precisou tanto de gente que conhece em profundidade matemática. E isso ocorre justamente quando temos um presidente da República que encontra, nos números, ideologia.
É em cima de conhecimento matemático que produziremos o PIB do futuro. É com base nele que temos a oportunidade de deixar de ser um exportador de commodities e cérebros para nos tornarmos cultivadores de cérebros e exportadores de tecnologia.
Nunca foi tão importante pegar instituições como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), as melhores universidades federais, estaduais e as PUCs e botar, nelas, todo gás. Concentrar nelas o melhor investimento.
Jamais foi tão relevante pegar experimentos como as Olimpíadas da Matemática e expandi-los, para que possamos descobrir desde cedo as melhores cabeças entre os brasileiros mais pobres, para que possamos —enquanto melhoramos o ensino público —pescar essa garotada e já dar ensino de excelência para eles desde cedo. Precisamos de qualidade em quantidade.
É a recusa dos números em plena era dos números que faz este governo olhar para a Amazônia e nela enxergar terra para pasto, para soja e minas diversas. Não vê a biodiversidade, a riqueza genética, a indústria farmacêutica do futuro, os bilhões e trilhões em patentes. Não se toca dos ciclos das chuvas, ignora que inteligência artificial em conjunto com edição genética permite produzir muito mais com muito menos terra.
Ao invés de promover o encontro entre iniciativa privada e professores universitários, de quebrar o preconceito da academia brasileira com o capitalismo do século XXI, o governo estimula o ódio à educação. Quando podia estar criando formas de estimular a geração de patentes e eliminar a burocracia para seu registro, tornar pesquisadores os grandes propulsores da nova riqueza nacional, o Planalto obscurantista os torna inimigos e, em estudantes, enxerga idiotas úteis.
O Vale do Silício existe por causa da Universidade de Stanford. Boston é um hub tecnológico por conta de Harvard e MIT, e Austin está chegando por causa da Universidade do Texas. A China investiu em formar matemáticos e hoje briga com os EUA. A Coreia do Sul. Quantos anos mais perderemos?
Em tempo: senhor presidente, diferentemente do que o senhor sugeriu e sua máquina de memes espalha, jamais fiz qualquer palestra para o governo federal. Muito menos pago pelo PT.
Transformar Amazônia em dinheiro súbito não é próprio de verdadeiros empresários e governos
No Brasil, no entanto, não é incomum que o governo e as autoridades, que devem fiscalizar e reprimir os crimes e as atividades antissociais, tenham sempre uma desculpa para o indesculpável. É o caso em relação às queimadas destrutivas do meio ambiente. Este é um momento particularmente significativo dessa violação do dever governativo.
Quando governantes acham que consumir o meio ambiente com a motosserra e as chamas é lícito, para assegurar os ganhos dos poucos em prejuízo dos muitos, e que disso depende o PIB, confessam que o dinheiro de poucos é mais importante do que a vida de todos. Quando dizem que o trabalho escravo, um item amazônico, não é escravo, confessam que a liberdade não é um valor essencial desta sociedade. O que dessa liberdade faz mera liberdade condicional.
Quando proclamam e asseguram que possam armar-se os que quiserem, especialmente no meio rural, onde é alta a violência dos que podem contra os que não podem, revogam o princípio de que é das Forças Armadas o monopólio da violência, para cumprir as leis e assegurar os direitos de todos. E os da própria nação, como sujeito coletivo da nacionalidade.
Os problemas destes dias são apenas a ponta flamejante de um conjunto de desorientações conexas que nos põem aquém da civilização. Estamos no rumo da desordem e da barbárie. Adeus, ordem e progresso.
Bravata e ignorância não resolvem problemas sociais e problemas ambientais. Além dos prejuízos econômicos que no curto prazo acarretará, a conduta brasileira em relação à questão ambiental afetará o setor produtivo, do lucro ao emprego. A desorientação do governo indica uma inclinação que, pelas consequências possíveis, poderá ser interpretada como genocida.
A pátria está em perigo. Atualizando a palavra do botânico Saint-Hilaire, que conheceu o Brasil inteiro como ninguém antes de o Brasil ser independente: ou o Brasil acaba com a saúva da criminalidade ambiental, ou a saúva da criminalidade ambiental acaba com o Brasil.
O empresariado brasileiro, não só o do agronegócio, tem não só o direito, mas o dever de se insurgir contra os negocistas desse novo capitalismo, o neocapitalismo do prejuízo que lhes virá. Capitalismo só vale um: o do lucro com responsabilidade social. O capitalismo é um sistema político de coadjuvantes, não só quem investe e lucra, mas também quem ajuda e quem trabalha. Ao que parece, é possível ganhar muito dinheiro, rapidamente, com a mentalidade anticapitalista desse neocapitalismo emergente, o do lucro de hoje no lugar do lucro de sempre.
A ignorância palavrosa produziu em poucas horas, nestes dias, para o capitalismo brasileiro, um retrocesso e um prejuízo cujo tamanho não será indicado pelos índices da bolsa. O liberalismo econômico de botequim gera uma democracia de bêbados, mas não supre nem sustenta a carência de inteligência e de prudência política e governativa.
Essa espécie de pacto com satanás, de que nos fala Guimarães Rosa, que disso soube como capanga de Manuelzão para aprender as coisas do sertão, como a que se esconde na ambição de dinheiro e de poder, é coisa de gente que não enxerga o que faz.
Disso, ouvi muito nos sertões do Brasil central, caboclos me demonstrando, tim-tim por tim-tim, cumaé que o coisa ruim, o pactário de encruzilhadas e cemitérios, ensina o muito do poder de ganhar em troca da alma do vivente, o prejuízo do finalmente. Mesmo quem não sabe que fez o pacto, está nele em pensamento, palavras e obras. O dinheiro existe para ser possuído e usado, e não para possuir as pessoas que o usam.
Aqueles que se omitem e debocham dos dramas do mundo, em nome do dinheiro fácil, parecem não saber dessas coisas e de seus silêncios ruidosos. Cada árvore tombada e queimada indevidamente, pensando o queimador que o que é de todos é só daquele um, é um ponto a mais para a cota de azeite fervente no tacho em que penam os que mandam derrubar a mata para endinheirar-se. Quando chegar a hora quente dos confins e dos confinamentos, o muito dinheiro não vai refrigerar o modo anticapitalista de ganhar e de gastar. É só esperar.
Por que a floresta amazônica pode se tornar foco de crise entre Bolsonaro e a Igreja
Trata-se de uma reunião de bispos dos países da região amazônica com o papa Francisco para discutir a atuação da Igreja Católica na área.
O encontro acontece de 6 a 27 de outubro, em Roma. Participarão do encontro 102 bispos de nove países, sendo 57 brasileiros. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa (departamento ultramarino da França) também enviarão representantes.
Um revés no Sínodo contribuiria para aumentar o desgaste internacional do país. Nos últimos dias, a atuação do governo brasileiro na área ambiental foi criticada por líderes estrangeiros. A crise na Amazônia foi debatida no último fim de semana na reunião do G7, fórum que reúne algumas das maiores economias do mundo.
No começo desta semana, o Itamaraty decidiu suspender as férias de todos os embaixadores brasileiros na Europa e em países que integram o G7. Trata-se de um esforço para responder à crise de imagem provocada pelas queimadas, segundo a agência de notícias Reuters.
Na semana passada, o governo brasileiro despachou para a Itália o novo embaixador brasileiro junto à Santa Sé, o diplomata de carreira Henrique da Silveira Sardinha Pinto - o nome dele foi aprovado pelo plenário do Senado em meados de junho. O diplomata foi instruído a tratar da questão do Sínodo com representantes do Vaticano.
O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, falou sobre o tema ao jornal O Estado de S. Paulo, no começo desta semana. Segundo Heleno, o governo espera que o encontro se limite a questões religiosas - sem fazer críticas a governos específicos ou a políticas públicas dos países da região.
"A nossa expectativa é de que não haja problema para o governo e nem nenhum desentendimento com a Igreja", disse Augusto Heleno ao jornal O Estado de S. Paulo. "Nós temos promovido ótimas reuniões com o Sínodo, não só aqui, mas em Roma, e está se encaminhando para se ter uma atividade dentro do que foi previsto, que não vai exceder os limites do que a Igreja se propôs a fazer. É o que nós esperamos."
O Brasil é o país com a maior população católica do mundo - e embora a porcentagem de evangélicos tenha crescido nos últimos anos, os católicos ainda são maioria. No Censo de 2010, 64,4% dos brasileiros disseram seguir a Igreja Católica. Críticas vindas da Santa Sé costumam repercutir politicamente no Brasil.
Apesar da expectativa de Heleno, o documento preparatório para o Sínodo aborda pontos incômodos para o governo. Chamado oficialmente de "Instrumentum Laboris", o texto de 146 pontos menciona os termos "governo" e "governos" dez vezes. Foi elaborado com consultas às comunidades da região - inclusive com o auxílio de uma organização ligada à Igreja, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Segundo o documento preparatório, as comunidades amazônicas consideram como principais ameaças a seu modo de vida a chegada de madeireiras (legais e ilegais); o assassinato de seus líderes, a caça e a pesca predatórias, a contaminação gerada pelo garimpo e os grandes projetos de infraestrutura - rodovias, ferrovias, portos, entre outros pontos.
"Segundo as comunidades participantes nesta escuta sinodal, a ameaça à vida deriva de interesses econômicos e políticos dos setores dominantes da sociedade atual, de maneira especial de empresas extrativistas, muitas vezes em conivência, ou com a permissividade dos governos locais, nacionais e das autoridades tradicionais (dos próprios indígenas)", diz o ponto 14 do texto, que foi divulgado em meados deste ano.
Henrique da Silveira Sardinha Pinto, o diplomata que representará o Brasil junto à Santa Sé, falou sobre o assunto em sua sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, no fim de maio.
"O Itamaraty, sim, tem se interessado pelo assunto, tem feito contatos em alto nível na Santa Sé para manifestar a nossa preocupação, o nosso interesse pelo resultado do trabalho que vai ser levado a efeito em Roma. Aguardamos, portanto, com interesse esse resultado", disse ele aos senadores, na ocasião.
"A percepção é a de que nós consideramos que se trata de um evento importante, que chama a atenção do governo, sobretudo, na fase preparatória, na fase mais de base da preparação dos documentos havia conceitos e ideias que preocuparam o governo brasileiro. Isso foi certa forma já expresso por algumas de nossas autoridades", afirmou ele.
Segundo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, professor do departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, o sínodo é uma instituição bastante antiga da Igreja. É uma reunião realizada pelo papa com seus bispos de determinada região ou tema, para definir uma estratégia para a Igreja num determinado assunto. É um encontro mais restrito que um concílio - que abrange bispos do mundo todo.
"O papa Francisco tem reforçado a necessidade de termos uma igreja mais sinodal, isto é, com mais participação dos bispos na orientação da igreja", diz ele, que concluiu o doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
A palavra "sínodo" vem de dois termos gregos: "syn", que significa "junto" e "hodos" - "estrada", ou "caminho". Desde que assumiu o comando da Igreja, em março de 2013, Francisco já realizou dois sínodos: um dedicado à família (2015), e outro aos jovens (2018).
De acordo com Andrade, a realização de um sínodo sobre a Amazônia é coerente com os temas dos quais Francisco tratou em sua carta encíclica Laudato Si' ("Louvado Sejas", em italiano). O subtítulo do texto é "Sobre o cuidado da casa comum". No texto, o papa critica uma busca irresponsável do desenvolvimento econômico e o consumismo exagerado - e faz um apelo contra a degradação ambiental e pela luta contra a mudança climática.
"Normalmente, o sínodo segue esta estrutura: ele parte de um documento de trabalho, o 'Instrumentum Laboris', e é concluído com uma série de recomendações, que dizem respeito à atuação da Igreja. O papa pode responder com uma carta apostólica, por exemplo", diz Andrade. Sugestões feitas durante sínodos resultaram em medidas importantes nos papados de Paulo 6º (1963-1978), hoje canonizado, e de João Paulo 2º (1978-2005), acrescenta ele.
Além de questões sociais mais amplas, o sínodo sobre a Amazônia também tratará de questões organizativas da Igreja. Um dos pontos mais polêmicos é a possibilidade de ordenar como padres homens mais velhos, especialmente indígenas - mesmo que sejam casados - em regiões remotas. O celibato, isto é, a abstenção de relações sexuais, é exigida dos sacerdotes católicos.
Segundo Paulo Suess - teólogo e padre de origem alemã que foi secretário-geral do Cimi - o Sínodo está focado em questões da organização da Igreja na Amazônia. O protestantismo têm crescido na região, diz ele, e por isso é preciso que os católicos reforcem sua presença entre as comunidades locais.
"Precisamos de uma descentralização urgente, e não é a tecnologia que vai resolver isso. É a multiplicação dos ministérios (pessoas com funções dentro da religião). Se colocamos muitos obstáculos para o acesso aos ministérios, o resultado é que teremos poucos ministros. Isso abre caminho para grupos protestantes que, às vezes, agem sem qualquer respeito pela cultura dos povos", diz ele, que é hoje assessor teológico do Cimi.
O cientista social Luis Ventura é um dos coordenadores do Cimi na região Norte do país - e participou do processo de audiências para o Sínodo. Segundo ele, a consulta às populações amazônicas se estendeu de meados de 2018 até março de 2019. Ao todo, mais de 200 encontros foram realizados em vários países amazônicos.
Segundo ele, o governo federal se reuniu com os responsáveis pela organização do Sínodo em várias ocasiões. "Nunca teve nenhuma negativa (a conversar com as autoridades)". "O sínodo não é convocado para atacar nenhum governo. Foi convocado em 2017. Mas quando a Igreja pensa na sua forma de organização e de presença (na Amazônia), não faz isso de forma distante da realidade. Ela olha para a realidade e para os desafios que estão postos", diz Ventura.
As raízes da teoria de conspiração militar em torno da Amazônia
“No Brasil (…), muitos oficiais experientes das Forças Armadas continuam incomodados sobre as questões ecológicas porque eles tendem a associar a defesa do meio ambiente a partidos políticos de esquerda. Ativistas do meio ambiente são ocasionalmente tratados por militares como ‘melancias’, verdes por fora e vermelhos por dentro. Muitos comandantes experientes também se queixam com frequência do que eles enxergam como uma tentativa de governos estrangeiros e ONGs controlarem a exploração dos recursos naturais e ditar políticas públicas por meio de tratados ambientais internacionais ou diplomacia.”
O trecho acima poderia ter sido retirado de um discurso elaborado por um assessor do presidente Jair Bolsonaro em 2019. Mas se trata da transcrição de um relatório de Inteligência da CIA, o órgão de investigação do governo dos Estados Unidos, sobre a relação dos militares na América Latina com o meio ambiente, redigido há mais de 20 anos, em setembro de 1997, e cujo sigilo foi levantado em 2011.
De lá para cá, pouca coisa mudou no que pensam os oficiais sobre a política global de defesa do meio ambiente. As ofensas públicas do presidente Bolsonaro a Emmanuel Macron e a resposta dos militares à declaração do presidente francês de que a Amazônia é “nossa casa” e seus problemas “dizem respeito” a todos expõem duas ideias há muito propagadas dentro das Forças Armadas: 1) a Amazônia é um território que atrai a cobiça mundial; 2) as exigências ambientais hoje impostas pelos países desenvolvidos são subterfúgios para minar a competitividade dos produtos brasileiros. Outra ideia recorrente é que a concessão de terras às diferentes etnias indígenas que habitam o bioma pode resultar em uma quebra de soberania, caso esses povos resolvam se tornar nações independentes.
O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante-geral do Exército e assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), rebateu de forma dura o que interpretou como um impropério: “Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, desta vez a França, por intermédio de seu presidente, Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira”. O general Augusto Heleno, ministro do GSI, reforçou as críticas: “Querem frear nosso inevitável crescimento econômico. Filósofos de barzinho, e até chefes de Estado, que jamais estiveram na Amazônia, propagam suas teses insustentáveis”.
Há diferentes explicações para a origem do pensamento militar, com certo viés conspiratório, de que há uma ameaça à soberania brasileira na Amazônia em razão de investidas retóricas de outros países. O primeiro é o aspecto histórico. Desde o Descobrimento, a região amazônica atraiu a atenção de colonizadores das mais diversas potências do século XVI, com corsários holandeses, franceses e ingleses tentando estabelecer ali zonas de influência. A assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que determinou os limites das terras portuguesas e espanholas no oeste amazônico, ajudou a controlar o ímpeto de colonização de outras nações europeias até o barão do Rio Branco concluir, mais de um século depois, a costura fronteiriça da Região Norte com franceses e ingleses. O interesse internacional, contudo, sempre se manteve vivo. Ao longo do século XIX, no auge da Doutrina Monroe (“A América para os americanos”), os Estados Unidos pleitearam junto a Dom Pedro II a navegabilidade internacional dos rios amazônicos, o que diplomaticamente foi descartado pelo monarca.
No curso da história, após o Tratado de Madri, o governo brasileiro lidou com os questionamentos sobre a Amazônia e as ameaças à soberania por meio da via diplomática e aplicando o princípio da dissuasão, conforme mostra o livro do embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, "Navegantes, bandeirantes, diplomatas", publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão. Na teoria militar, dissuadir consiste em intimidar possíveis adversários com a criação de sistemas de defesa e inteligência que imponham alto custo a uma ofensiva. Quando o embaixador dos Estados Unidos comparecia a audiências com Dom Pedro II e afirmava desejar tratar da navegação internacional pelo Rio Amazonas, o monarca respondia: “Esse assunto não consta de nossa pauta”. Isso era entendido como sinal de dissuasão.
A inclemência da vida na selva também funcionou historicamente como repelente do interesse externo, sobretudo após a construção, pelos ingleses e americanos, da Ferrovia Madeira-Mamoré, no final do século XIX, que ligava o Amazonas a Rondônia. Consta dos registros da época que mais de 30 mil trabalhadores de dezenas de nacionalidades foram vítimas de doenças como malária e febre amarela, além de terem sofrido ataques de tribos indígenas.
Para os militares, as formas de conter as ameaças ao território amazônico foram o povoamento e o desenvolvimento da região, além, sobretudo, de sua interligação com o resto do país. Não à toa, em que pese a saraivada de críticas ambientalistas, uma das principais frentes do desenvolvimentismo militar no período da ditadura foi a construção das rodovias Transamazônica, Belém-Brasília e Cuiabá-Santarém, projetadas para rasgarem o território em toda a sua extensão.
Detalhes dessa política foram minuciosamente descritos em relatórios de Inteligência da CIA enviados ao governo americano em 1972, cujo sigilo foi levantado em 2012. Os objetivos eram faraônicos: 9 mil quilômetros de estrada, 500 mil pessoas assentadas, criação de “agrovilas” em que famílias receberiam terra para plantar, além de sementes, ferramentas, orientação técnica e um salário mínimo por cinco meses. Os preços dos grãos colhidos também seriam prefixados pelo governo por dois anos, e a posse temporária da terra daria direito, ainda, a uma linha de crédito. Cada agrovila comportaria 50 famílias — e 20 agrovilas formariam um centro urbano atendido por escolas, hospitais e outros serviços públicos. A única premissa para que se conseguisse a licença e o crédito era “plantar”. E, para plantar, seria preciso desmatar e queimar.
Sob o escopo da Fundação Nacional do Índio (Funai) ficariam a assistência às comunidades indígenas e sua integração aos polos urbanos que seriam criados. Os incentivos fiscais direcionados ao projeto caberiam à Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A FAO, agência das Nações Unidas para a Agricultura, ajudaria na orientação técnica. O Banco Mundial, no financiamento das plantações. O relatório da CIA mostra otimismo quanto à construção da infraestrutura, mas ceticismo sobre o projeto agrícola na Amazônia. “Parece que o governo tem a capacidade de levar adiante o plano de rodovias, mas ainda é muito cedo para prever o sucesso dos objetivos do plano de colonização”, diz o documento.
À época, o governo militar foi criticado por ter autorizado as obras sem estudo de viabilidade econômica e pelo fato de as principais rodovias ligarem duas regiões consideradas pobres: Norte e Nordeste. O general Rodrigo Octávio, comandante-geral da Amazônia em 1968, foi um dos líderes do projeto de integração e um dos militares mais entusiasmados com a questão amazônica. Uma frase de sua autoria foi proferida pelo presidente Jair Bolsonaro durante o bate-boca com seu colega francês. “Árdua é a missão de desenvolver e defender a Amazônia. Muito mais difícil, porém, foi a de nossos antepassados de conquistá-la e mantê-la”, afirmou. O general Octávio, contudo, perdeu o prestígio nas Forças quando começou a falar sobre a necessidade da volta da democracia. Foi tirado de postos-chaves e terminou como ministro do Superior Tribunal Militar (STM), onde defendeu a derrubada do Ato Institucional nº 5 e a volta dos poderes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Não foi atendido ainda em vida.
O povoamento e a exploração da Amazônia pelo regime militar ocorreram em paralelo a um movimento mundial precisamente oposto, de defesa da ecologia. As primeiras pesquisas científicas, ainda na década de 60, já começavam a apontar problemas como o efeito estufa e a poluição. Essa mudança de ânimo não só deu origem a “partidos verdes” pela Europa, como também serviu de estímulo à entrada de grupos de pesquisa e organizações não governamentais de defesa do meio ambiente e da causa indígena em território amazônico. O tema ecologia se impôs na ONU, que se viu pressionada a agir. A Assembleia-Geral das Nações Unidas examinou o assunto pela primeira vez em sua reunião de 1968, quando os projetos rodoviários na Amazônia estavam de vento em popa. O segundo passo foi convocar a primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972. Houve então um consenso de que todos os países deveriam incutir em seus arcabouços legislativos e institucionais a preservação do meio ambiente. A questão da Amazônia aparece com destaque, e a delegação brasileira, chefiada pelo ministro do Interior, general Costa Cavalcanti, mostrou-se disposta a dialogar, oferecendo-se para sediar a próxima conferência da ONU sobre o tema, que ficou conhecida como Eco-92. Entrava em voga naquele período a tese de que o território era patrimônio da humanidade. Essa abordagem alimentava o grande pesadelo dos militares, a “internacionalização da Amazônia”.
Ao longo da década de 80, a pressão internacional pela preservação do bioma e das terras indígenas se acirrou, com imagens de queimadas tomando o noticiário. Também impactaram a opinião pública mundial os resultados da liberação do garimpo em Serra Pelada, no Pará. Os movimentos indigenista e ambientalista ganharam tal proporção que abaixo-assinados foram feitos na Europa e nos Estados Unidos para que a Constituição de 1988 contemplasse a questão da terra indígena — o que foi visto tanto por militares como por parte da esquerda como uma tentativa de ataque à soberania travestido de defesa da causa dos índios.
O deputado Jarbas Passarinho, ex-ministro do governo militar, foi um dos patrocinadores do artigo 231 da Constituição, que prevê os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Já os militares defendiam a tese de que os povos considerados “aculturados”, ou seja, já integrados à cultura local, não poderiam ser contemplados com pedaços territoriais — que terminou derrubada do texto constitucional.
O fracasso da política de desenvolvimento da Amazônia é visto pelos militares como resultado da pressão ambiental internacional, de leis ambientais mais rígidas e da corrupção que permeou o trabalho da Sudam, que concentrava os incentivos à região. Reclamam ainda que o plano de integração feito pelo regime foi paralisado, engavetado e nada foi colocado no lugar. No final da década de 90, outro relatório da CIA sobre meio ambiente no Brasil apontava que, desde a década de 60, um território maior que a França havia sido desmatado dentro da Amazônia.
Hoje, os militares dentro e fora do governo defendem ideias não muito diferentes daquelas dos anos 60. Querem que o Brasil lidere o processo de desenvolvimento da Amazônia e a assistência aos indígenas, além de fiscalizar o trabalho das organizações não governamentais que estão no local. São defensores ainda de que se faça uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as ONGs da Amazônia. Dizem que não há país no mundo que tenha preservado seu território nativo como o Brasil e que as populações indígenas deveriam ser orientadas a plantar e trabalhar em cooperativa.
Causa incômodo específico aos militares a conexão direta que certos povos indígenas têm com lideranças internacionais. Como certa vez, quando o general Villas Bôas era comandante-geral da Amazônia, em 2013, e soube que o rei Haroldo, da Noruega, visitava o território ianomâmi sem que o Exército tivesse sido avisado. Classificou a situação como exemplar da ameaça de soberania na região.
O temor territorialista se soma a um sentimento de pertencimento em relação à Amazônia muito cultivado no meio militar. “Selva!” é o cumprimento informal entre oficiais que servem na região — e persiste mesmo depois de deixarem os batalhões da floresta, como forma de mostrar que passaram por lá. Quando um oficial se forma na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, Rio de Janeiro, os primeiros colocados da turma têm o direito de escolher para qual batalhão querem ir. O da Amazônia é, por tradição, o mais disputado. O curso de “guerra na selva” também é considerado um dos mais cobiçados pelos cadetes. Ser comandante-geral da Amazônia é caminho natural para o general que almeja o posto de chefe do Exército. Pesou para que a então presidente Dilma Rousseff escolhesse Villas Bôas como comandante seu desempenho na Amazônia — em especial seus esforços diplomáticos para solucionar situações conflituosas com indígenas.
Enquanto a tendência mundial no mundo militar é a redução de efetivo e a incorporação de tecnologia, no Brasil o caminho é inverso. Existe grande necessidade, nos grotões do país, do trabalho assistencial de oficiais e praças. A chamada “estratégia da presença” é forte sobretudo na Amazônia, em que o Exército tende a ser o único representante do Estado nas áreas mais isoladas. Militares acreditam que foi essa característica que reatou parte das pontes com a sociedade que haviam sido rompidas com a ditadura.
Ao travar uma guerra retórica com a Europa sobre a Amazônia valendo-se da premissa de eventual perda de soberania, o governo brasileiro, apoiado pelos militares, reacendeu o caráter antipreservacionista do Brasil, tão alardeado nas décadas de 80 e 90 e, posteriormente, superado. O economista, ex-ministro e ex-embaixador Roberto Campos, ao responder aos questionamentos conspiratórios sobre os interesses estratégicos dos Estados Unidos na Amazônia, costumava desdenhar: “Tem gente que diz que os americanos querem vir para a Amazônia, mas eles já foram até para a Lua e não vieram para a Amazônia!”. Franceses e alemães, também.
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