sábado, 31 de agosto de 2019

A cruzada do papa pelos povos da floresta

"Nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora". O presidente Jair Bolsonaro ainda não tinha nem mesmo campanha na rua quando Jorge Bergoglio fez este profético discurso em 19 de janeiro de 2018. Naquele dia, o papa Francisco, reunido com lideranças indígenas em Porto Maldonado, no Peru, deu início aos preparativos para o Sínodo da Amazônia, em outubro próximo, no Vaticano.

O encontro pode fazer do papa o maior anteparo à política de Bolsonaro para a Amazônia. Ao contrário do presidente francês, Emannuel Macron, contido por seus rivais europeus na comedida reunião do G-7, Jorge Bergoglio contará, no sínodo, com bispos de oito países (Brasil, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guianas e Suriname) afinados em sua cruzada pela região.


Órgão consultivo do papa, o sínodo discute as ações da Igreja Católica em missões por ele definidas. A nuance de exército eclesiástico é relativizada pelo formato. O papa não participa do encontro e não está obrigado a seguir suas recomendações. No tema em questão, porém, somam-se bispos comprometidos com a região e um papa que, desde o início do seu pontificado, identificou, na questão ambiental, um tema transversal às disputas de cunho moral que dividem o clero.

Com habilidade, o papa cuida para que seu discurso não seja facilmente carimbado. Não se alinha à tese de "pulmão do mundo", que seria engrossada pelo presidente francês mais de um ano depois. Em Porto Maldonado, mostrou-se disposto a "romper com o paradigma histórico que considera a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes".

Para isso, deu nome a quase todos os bois da floresta, desde a "pressão de grupos econômicos por petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais" quanto o interesse de movimentos que, "a pretexto de conservar a floresta, se apropriam de grandes extensões de terra e a tornam inacessível aos povos nativos".

O sínodo, cujas reuniões preparatórias já entraram no radar da Agência Brasileira de Informações (Abin), não se limita às fronteiras da floresta. Ao fincar estaca no discurso ambiental, o papa também firma sua liderança contra a nova direita mundial e seus principais porta-vozes.

O mais estridente deles, Steve Bannon, conselheiro do bolsonarismo, disse, em entrevista recente ao "National Catholic Register", jornal católico e conservador dos Estados Unidos, que o papa transformou a Igreja Católica num partido político: "Ele [Jorge Bergoglio] hoje é parte do sistema global contra mudança climática. Não é nem mesmo um centro-esquerda, é da esquerda radical. Seu partido político apoia os Verdes, que, para mim, são, essencialmente, um movimento teológico".

Bannon, que busca legitimidade para se arvorar contra o papa em sua origem familiar de imigrantes operários irlandeses católicos da Virgínia, começou a alvejar o papa quando este, em discurso na linha de fronteira do México com os Estados Unidos, durante a campanha de Donald Trump em 2016, disse: "Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que estejam, e não em construir pontes, não é um cristão". Sua cruzada em defesa dos imigrantes levou ainda o primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, outro consulente de Bannon, a tentar jogar os italianos contra o papa.

O marqueteiro de Donald Trump acusa o papa ainda de ser aliado chinês e partidário do braço católico do 'marxismo cultural', a Teologia da Libertação - "Ele é ao mesmo tempo jesuíta e peronista". Cativa, no episcopado e na política, aliados em torno da ideia de um novo cisma da Igreja, que teria por base as massas operárias que se movem, no mundo inteiro, pelo discurso contra imigrantes.

O cisma que hoje mais ameaça a Igreja Católica, no entanto, é avanço dos pentecostais e seus derivados. Depois de se expandirem dos Estados Unidos para o resto do mundo, tornaram-se ponta de lança da direita israelense sob o pretexto dogmático de que a volta de Cristo à Terra só será possível quando os judeus estiverem assegurados na terra prometida.

No Brasil, espalharam-se pela Amazônia como em nenhuma outra região do país. Foi no Norte que o PT perdeu, pela primeira vez em 20 anos, uma eleição presidencial. Nas contas do demógrafo José Eustáquio Diniz, dos seis Estados em que a proporção de votos evangélicos tem relação mais estreita com o apoio ao presidente Jair Bolsonaro no segundo turno de 2018, quatro (Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas), estão no Norte. Os outros dois Rio e Espírito Santo, Estados não nortistas de maior proporção evangélica.

Tem sede em Manaus, por exemplo, o Ministério Internacional da Restauração (MIR), denominação pentecostal que, em 2014, atuou decisivamente em favor de Marina Silva e, em 2018, bandeou-se para o bolsonarismo tendo a atual ministra Damares Alves como uma de suas principais interlocutoras no governo. Dos sete Estados em que o MIR tem sede, quatro (Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará) estão no Norte.

Apesar de os primeiros registros de protestantes na Amazônia datarem do século XVI, com as incursões francesas de huguenotes no Maranhão, foi só com o pentecostalismo que, no início do século XX, os católicos passaram a ter, de fato, rivais na evangelização. A conquista se deu paulatinamente à exposição de populações indígenas e ribeirinhas ao avanço de mineradoras, madeireiras e pecuaristas numa região em que o escasso clero católico, há tempos, deixou de dar conta das aflições terrenas de seus fiéis.

Em artigo que esmiúça as práticas religiosas de povos tradicionais da Amazônia, dois antropólogos, Manoel Ribeiro de Moraes Junior e Donizete Rodrigues, associam o avanço do pentecostalismo à assimilação de rituais do curandeirismo e do xamanismo caboclo. As práticas exorcistas de purificação do corpo, as danças e uma atuação assistencial massificada aproximaria mais facilmente os pentecostais das populações indígenas aculturadas do que os católicos. O xamã e o pastor se confundem como operadores de ritos que se dizem capazes de curar, física e espiritualmente, os fiéis.

Para enfrentar o pentecostalismo caboclo e o exorcismo de Steve Bannon, o sínodo está disposto a enfrentar velhos dogmas católicos. O presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e prefeito emérito da Congregação para o Clero, em Roma, d. Claudio Hummes, já reconheceu que uma das soluções pensadas para fortalecer seus exércitos, numa região em que 70% das comunidades não recebem os sacramentos católicos, é a dispensa do celibato na ordenação de padres.

Arcebispo emérito de São Paulo e um dos cardeais mais próximos do papa Francisco, Hummes tem enfrentado ao longo de toda a preparação do sínodo as desconfianças do governo Bolsonaro. Como, além dos bispos e seus auxiliares, o sínodo contará também com representantes de comunidades indígenas e leigos envolvidos com o tema. O governo brasileiro pediu para ter assento no encontro mas o Vaticano não cedeu à presença de representantes oficiais de nenhum governo.

O sínodo enfrenta a retranca governista que o vê como um encontro anti-Bolsonaro destinado à internacionalizar a Amazônia, obsessão histórica dos militares brasileiros. Contra a ideia fixa, a Igreja exibe a Encíclica do Meio Ambiente, inspiradora do encontro de outubro. O texto data de 2015, quando o atual presidente ainda estava no início de seu último mandato como deputado federal e se limitava a brigar com o Ibama pela pesca em área preservada de Angra dos Reis (RJ). São abundantes, ainda, manifestações críticas à política ambiental de governos anteriores, como a do bispo emérito do Xingu, d. Erwin Kraütler, que se insurgiu a contra a construção da usina de Belo Monte - "É um monumento à insanidade" - pelos governos petistas.

O sucesso do sínodo dependerá mais da estratégia da Igreja em se fazer ouvir por aqueles que moram na Amazônia do que de seus embates com o governante de plantão. No discurso de Porto Maldonado, o papa despiu a igreja do discurso catequizante para abraçar a ideia de que são os povos da floresta que hoje têm ensinamentos para o clero: "Nós que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar - sem o destruir - o tesouro que encerra esta região, ouvindo ressoar as palavras do senhor a Moisés: 'Tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa'".

Ainda está pouco claro, porém, como se efetivaria a aproximação de um clero sem braços, ante a concorrência de denominações pentecostais mais próximas do bolsonarismo e da efervescência ritualística dos povos da floresta. Ainda que enfrente a concorrência de denominações pentecostais, o papa Francisco tem se distinguido pela aproximação com outras religiões, como demonstrou na busca de diálogo com o Islã.

O que não parece haver dúvidas é que, quando os bispos e as lideranças indígenas se reunirem a partir de 6 de outubro no Vaticano, durante um encontro que tomará três semanas de discussões e votações, os documentos lá produzidos serão um reforço a posições assumidas por um papa alvo de bombardeios dentro e fora da Igreja.

A força do papa como liderança capaz de denunciar a avidez de grupos econômicos sobre a Amazônia, a histeria de entidades conservacionistas que querem fazer dos povos da floresta prisioneiros de seu próprio infortúnio e os interesses de governantes que fazem da pauta ambiental joguete de suas disputas de poder depende, em grande parte, deste sínodo. A ver como o clero católico será capaz de colocar tudo isso, junto e misturado, no púlpito de suas igrejas.

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