sexta-feira, 14 de junho de 2024

Pensamento do Dia

 


No mato sem cachorro


Não sou daqueles fanáticos a favor dos animais que muitas vezes exageram. Mas não há por que discriminar os animais, domésticos ou não. Os domésticos têm características que se assemelham aos grupos humanos indefesos. São vítimas da ignorância, da ganância e da perversão. Sempre tive cachorros. Atualmente, tenho um bulldog francês que me faz companhia e que certamente desacelera minha ansiedade nos momentos mais complicados. Acho que animais domésticos são isso: dependem de você e te dão em troca o que sabem ou o que conseguem. Mas dependem de você como dependem do ambiente, das intempéries e do impulso humano para sobreviver.

O que se viu no sul do Brasil nessa tragédia mostra isso. São milhares de animais nos abrigos, resgatados pelos humanos no meio das águas. Alguns já estavam por conta própria, outros acabaram ficando diante do que se abateu sobre o estado. A prefeitura diz que está tomando providências. Mais um exemplo de que eles dependem da gente. Esperam que também estejam fazendo pelos humanos abandonados e sem teto que surgiram depois do desastre.

Numa situação dessas, o que mais se vê é gente ou animal precisando de ajuda. No Rio de Janeiro, vários animais foram envenenados nas ruas da Barra da Tijuca, vítimas de veneno colocado nos canteiros, voluntariamente ou não. Alguns morreram e outros estão internados tentando se safar da situação.

O ator Cauã Reymond teve um cachorro morto e outro que se recupera, parece. Sendo uma atitude voluntária de envenenamento, mostra o ponto em que chegamos de perda total dos valores mínimos de civilidade. Vemos isso na morte de mendigos que dormem ao relento, no ataque a indígenas, gays, mulheres, negros e necessitados. O ser humano que produz esse tipo de violência é o resultado de uma transformação que vem acontecendo no mundo, que não prevê a existência de necessitados, sejam eles humanos ou não. Não existe projeto de construção. Existe uma destruição generalizada, uma sanha assassina que quer arrasar tudo que encontra pelo caminho. Animais domésticos fazem parte de uma relação de amor que mal ou bem estabelecemos.

O ser humano precisa disso. Alguns seres humanos, pelo menos. Esse amor trocado é a base que sustenta as relações nesse mundo louco de grandes destruições. Nas guerras, morrem todos, humanos ou não. Na violência urbana, também. Daqui a pouco, não sobrará nada que transmita um afeto ou um carinho. Cabe a nós defender essa troca para que possamos, lá na frente, nos sentir atingidos por algo que não mate, que nos traga vida e amor. Parece bobagem, mas é fundamental. Precisamos nos ligar nisso com o humano ou animal mais próximo de nós.

Cidade auto-suficiente

Roterdão é uma cidade de que os arquitectos costumam gostar, com muitos edifícios realmente assinaláveis; e é também uma cidade "simplex" (para os de lá, claro, pois está tudo escrito em neerlandês), embora me tenha muitas vezes faltado alguém a quem perguntar uma direcção ou pedir ajuda (no metro só há máquinas, ou estrangeiros tão perdidos como eu). Num museu, por exemplo, não havia bilheteira: era suposto, disseram-me, ter comprado o bilhete online! Num restaurante, havia um código para fotografar e ler o menu (pois, mas não havia uma lista em inglês, por isso era difícil escolher o jantar). Tudo foi pago com cartão, ninguém aceita dinheiro para nada (é prático, não nego, mas, se o cartão falha por qualquer motivo, podemos ficar apeados ou em jejum). Já me tinham contado que, em Pequim, até os mendigos têm um código ao peito para a esmola ser paga por transferência via telefone, mas, queridos leitores, eu ainda prefiro falar com uma pessoa, ainda confio mais na pessoa do que na máquina. Este sistema holandês (ou de Roterdão) deve ser bestial para os mais jovens, que abraçaram o digital para tudo e mais alguma coisa, mas nada substitui, para mim, a voz humana, a mão humana. Devo estar decididamente a ficar velha.

Tempos de ódio e guerra

O ódio se espraia pelos vãos e desvão das democracias contemporâneas. Não são apenas balões de lixo e fezes que deixam perplexa a sociedade mundial, como os apetrechos jogados pela Coréia do Norte sobre a Coréia do Sul. Como se sabe, aquela ditadura é capaz de tudo, inclusive, acionar artefatos nucleares para deflagrar uma guerra mundial. O que nos causa surpresa e perplexidade é o fato de que, no seio da maior democracia ocidental, os Estados Unidos da América, conceitos que imaginávamos fechados a sete chaves no baú da história, como guerra civil, guerra entre alas da comunidade, voltem a atormentar os espíritos.


Coisas que fazem coçar nossos ouvidos: depois de ser considerado culpado em 34 acusações, Donald Trump, candidato dos republicanos, consegue aumentar a arrecadação de recursos para sua campanha. E mais: consegue suavizar sua condição de criminoso, mentiroso, ameaça ao próprio sistema de valores, tão bem construído pelos fundadores da pátria norte-americana.

Tempos estranhos esses que estamos vivenciando. A Nação mais potente, mais segura e mais armada do planeta, ainda vive sob o impacto da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando assistiu, perplexa, à tentativa de destruição dos seus mais queridos e festejados ícones e símbolos. Estamos vivenciando um estado de guerra mundial. Mudou o polo conceitual em torno dos conflitos globais. Não se trata mais de esperar por uma III Guerra Mundial, de natureza devastadora, deflagrada com foguetes e ogivas nucleares. A guerra está aí, intestina, invisível, atravessando fronteiras, destruindo, matando, ferindo a sensibilidade e maltratando o orgulho das Nações.

A mortandade é a estética da faixa de Gaza. A imagem de terra arrasada chega aos nossos olhos, exibindo destroços e corpos ensanguentados, choros, gritos, terror. A Ucrânia luta contra o invasor, a Rússia, numa guerra fratricida, povos irmãos que são suas populações. Em territórios da África, as estruturas comandadas pelo poder invisível, à base de guerrilhas urbanas, atos criminosos dispersos e muita brutalidade, esmagam as batalhas da diplomacia e a gerência de projetos de paz. As guerrilhas urbanas matam mais que as guerras clássicas. A violência, inclusive aqui por nosso território, é avassaladora. Só para termos uma ideia, morrem, por ano, no Brasil, cerca de 50 mil pessoas, ceifadas pela violência, quantidade que se soma aos contingentes dos conflitos contemporâneos.

A polaridade, que alimentou a guerra fria durante meio século, criando tensões entre Norte e Sul, Leste e Oeste, desloca-se para a questão geopolítica, para a área étnico-cultural e seus antecedentes históricos, fazendo emergir um discurso fundamentalista que passa a encontrar eco não apenas em regiões da Ásia e do Oriente Médio mas em territórios do mundo mais desenvolvido. Uma “guerra santa” instala-se no planeta, desenvolvida pela sabotagem e por sofisticada engrenagem tecnológica, caracterizada por captura de reféns, atos violentos de invasão de fronteiras, táticas de emboscada, numa programação articulada de bastidores e de quartéis-generais impenetráveis.

Como ocorreu nas guerras romanas, de Aníbal, Cipião e César, a estratégia indireta – ações escondidas e surpreendentes – aponta o rumo das guerras modernas. A surpresa, os pequenos comandos, a tática de emboscadas constituem fatores de vitória. Donde surge a comparação inevitável: os melhores e mais armados reis da Humanidade, assentados em tronos cercados de ogivas e foguetes supersônicos, enfrentam guerreiros toscos dos eixos do Mal.

Não se pode deixar de constatar, ainda, a precariedade das articulações empreendidas pela ONU e pelas potências para gerenciar as crises do mundo contemporâneo. O que está faltando aos líderes para se chegar a tempos de paz? Vontade política, entre outras coisas. A retórica da diplomacia de guerra tem canibalizado as ações práticas. Discute-se muito para se fazer pouco ou quase nada. Ao perfil de alguns governantes, faltam aqueles valores que emolduram a grandeza dos líderes: vontade, dignidade, compromisso, ética, honestidade.

O que poderá ocorrer, a partir de uma eventual vitória de Donald Trump, nos espaços democráticos do planeta? Mais uma curva à direita? Já temos, aqui, pertinho nas nossas vizinhanças, um convicto governante da direita conservadora. E não tenham dúvidas: o time trumpista, ganhando o jogo, acabará puxando o capitão Jair, em 2026. Mas ele é carta fora do baralho, pois é ilegível, dizem uns. Ora, arranjarão um jeito de anistiar o atacante.

Os supervulcões do juízo final

“Viver é muito perigoso”, repetia Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. E nas suas filosofâncias sobre a dureza da vida, o jagunço nem sabia da existência no nosso planeta desses mega vulcões destruidores de mundos. Tudo pode se acabar de uma hora para outra.

Acontece que existem duas dezenas dos denominados supervulcões espalhadas mundo afora e uns nove deles estão ativos (três nos EUA, três no Japão e os demais na Indonésia, Nova Zelândia e Guatemala). Nesse cenário, as explosões do Vesúvio, que devastou Pompéia em 79 d.C., ou do Monte Santa Helena em 1980, que equivaleu a 1600 bombas de Hiroshima, não passam de fogos de artifício perto da potência destrutiva de um supervulcão.

Para se ter uma ideia, os efeitos da erupção do supervulcão Toba, na Indonésia, há 70 mil anos, foi de tal magnitude que pode ter acelerado a emigração dos humanos da África (há 10 mil km de distância da explosão).



O mais preocupante desses supervulcões em atividade atualmente é o Campi Flegrei, submerso no litoral italiano, entre a ilha de Capri e a costa de Nápoles. Trata-se de uma caldeira de 200 km de extensão em torno da qual vivem mais de 3 milhões de pessoas. O poder do Campi Flegrei é tão descomunal que em 2023 a pressão de sua bolha subterrânea de lava e gás elevou o solo da região em 3,5 metros. O governo italiano tem um plano para evacuação imediata de meio milhão de pessoas caso esses sinais de erupção se agravem.

Outro desses arrasa-continentes é o Yellowstone, um supervulcão no norte dos EUA com cratera de 90 quilômetros de extensão e um depósito de lava 40 vezes maior do que a do vulcão Santa Helena. Sua explosão seria 2.600 vezes mais forte do que a do próprio Santa Helena em 1980 e causaria a mote de milhões de pessoas, extinguindo espécies animais e vegetais na América, com efeitos globais sobre o clima.


Para comparação, veja o caso da erupção em 2022 de mais um vulcão ‘normal’, o Tonga-Hunga Ha’apai, no meio Pacífico. Mesmo não sendo um supervulcão, a explosão do Tonga causou um tsunami com ondas de 45 metros de altura que provocou destruição e mortes desde o Peru e Chile até o Havaí, Rússia e Japão, devastando ilhas oceânicas no caminho. Expeliu fumaça e cinzas a 58 km de altitude levando à estratosfera uma tempestade elétrica inédita, com 200 mil raios. Imagine se o Tonga tivesse a força de um supervulcão.

O problema é que, ainda não é possível prever uma supererupção, tampouco sua potência total, podendo-se quando muito estimar seus impactos para que se elaborem planos de reação, com elevada margem de incerteza. Muitos dos supervulcões nem eram conhecidos até pouco tempo, porque suas explosões anteriores foram tão colossais que sequer formaram aqueles cones montanhosos típicos dos vulcões comuns, o que lhes dá a aparência de planícies inofensivas sob bosques, riachos e mares.

Contudo, esse tipo de evento com efeitos em escala global não deve nos desanimar sobre o futuro. Pelo contrário, são espetáculos naturais que servem para nos estimular a cuidar do equilíbrio dos sistemas da natureza que originaram e sustentam a Terra em que vivemos. São fenômenos acima da nossa vontade que nos mostram a urgência de cuidarmos dos processos que estão ao alcance das capacidades humanas, como é o caso do aquecimento global e da desigualdade social. Só assim a humanidade estará mais bem preparada para se adaptar aos efeitos de vulcões, terremotos ou asteroides. Afinal, “pra morrer, basta estar vivo”.