sábado, 23 de janeiro de 2021
Crianças à solta
Vamos simplificar as questões de política externa do governo Jair Bolsonaro. Supunha-se que os adultos – militares com formação acadêmica e experiência direta de conflitos internacionais – fossem supervisionar as crianças. Aconteceu o contrário. As crianças é que emparedaram os adultos.
Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.
Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.
Os resultados negativos se acumulam. Com o resultado das eleições americanas, o Brasil conseguiu a proeza de se estranhar ao mesmo tempo com as duas principais potências do planeta, pois já se dedicava em provocar a China. Como 11 em 10 analistas de relações internacionais assinalaram, o campo da política externa é, por definição, o campo da impessoalidade, e o alinhamento automático de Bolsonaro ao perdedor Trump é um erro crasso não importa o mérito, postura ideológica ou intenções de qualquer um dos dois.
O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.
No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.
Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.
O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se islumbra no momento.
O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.
O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.
Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.
O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.
No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.
Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.
O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se islumbra no momento.
O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.
O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.
Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.
Fracasso moral
Devo ser franco: o mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico, e o preço desse fracasso será pago com a vida e o sustento dos países mais pobresTedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde
O custo de ser pária
O constrangedor isolamento do Brasil entre as nações civilizadas, resultado de uma política externa amalucada e irresponsável, deveria ser motivo mais que suficiente para que o chanceler Ernesto Araújo fosse demitido sem mais delongas. A pressão para que isso ocorra, aliás, nunca esteve tão forte.
Parece estar se constituindo um consenso, inclusive em alguns setores do próprio governo, que a manutenção do sr. Araújo à frente do Itamaraty representa enorme risco para a imagem do Brasil, já tão desgastada, e justamente no momento em que o País, mergulhado numa pandemia mortal e numa crise econômica desafiadora, mais precisa da cooperação internacional.
A questão é que a demissão do sr. Araújo não resolveria nada, pois o problema não é o chanceler, mas o chefe dele. É a permanência do sr. Jair Bolsonaro na Presidência que inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações, que sempre foi a marca da diplomacia do Brasil.
É claro que o sr. Araújo é o responsável direto pela formulação da estapafúrdia doutrina externa bolsonarista e deve ter seu nome marcado na história, em letras maiúsculas, como o chanceler que se empenhou em destruir o legado do Barão do Rio Branco. Deve ser lembrado para sempre como aquele que conduziu a diplomacia nacional sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que vive nos Estados Unidos, espécie de guru de Bolsonaro et caterva.
Parece estar se constituindo um consenso, inclusive em alguns setores do próprio governo, que a manutenção do sr. Araújo à frente do Itamaraty representa enorme risco para a imagem do Brasil, já tão desgastada, e justamente no momento em que o País, mergulhado numa pandemia mortal e numa crise econômica desafiadora, mais precisa da cooperação internacional.
A questão é que a demissão do sr. Araújo não resolveria nada, pois o problema não é o chanceler, mas o chefe dele. É a permanência do sr. Jair Bolsonaro na Presidência que inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações, que sempre foi a marca da diplomacia do Brasil.
É claro que o sr. Araújo é o responsável direto pela formulação da estapafúrdia doutrina externa bolsonarista e deve ter seu nome marcado na história, em letras maiúsculas, como o chanceler que se empenhou em destruir o legado do Barão do Rio Branco. Deve ser lembrado para sempre como aquele que conduziu a diplomacia nacional sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que vive nos Estados Unidos, espécie de guru de Bolsonaro et caterva.
Mas Ernesto Araújo não age por conta própria. É apenas o sabujo encarregado de colocar em palavras a mixórdia reacionária que resume a “visão de mundo” de Bolsonaro, o que, convenhamos, não é para qualquer um.
Enquanto o Barão do Rio Branco, ciente das fragilidades brasileiras, fez do Brasil um país naturalmente voltado para o entendimento no concerto das nações, Bolsonaro escolheu comprar brigas gratuitas com algumas das maiores potências do planeta, para enfatizar a independência do País sob seu comando. Ao mesmo tempo, derretia-se de amores por Donald Trump quando este ocupava a presidência dos Estados Unidos, enquanto o resto do mundo civilizado, ciente do caráter daninho de Trump, tratava de se afastar dele.
Em vez de independência, a doutrina bolsonarista isolou completamente o Brasil. Mas o sr. Araújo não se fez de rogado: anunciou que, se este era o preço a pagar por defender a “liberdade”, ou seja, “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Perfeitamente alinhado a seu chefe, o ainda chanceler teve o descaramento de chamar de “cidadãos de bem” os terroristas que invadiram o Congresso dos Estados Unidos para interromper a confirmação da eleição de Joe Biden como presidente. Adicionando o insulto à injúria, Ernesto Araújo aproveitou para corroborar a tese golpista promovida pelo trumpismo de que houve fraude nas eleições, mentira que o presidente Bolsonaro repetiu vezes sem conta.
Se o chanceler for demitido, portanto, não será por ter descumprido ordens ou por ter sido desleal, mas sim, ao contrário, porque foi absolutamente fiel a Bolsonaro – e, por isso, criou grandes e gravíssimos problemas para o Brasil, hoje visto com reticências pelas duas grandes potências globais, Estados Unidos e China, além de enfrentar má vontade na União Europeia e na Índia. É uma façanha.
O afastamento de Araújo pode ser o gesto que o mundo espera de Bolsonaro para mudar um pouco a percepção negativa sobre o Brasil. Mas seria ingênuo acreditar que seu eventual substituto terá atuação muito diferente.
Pode haver algum pragmatismo nos próximos tempos, especialmente depois que Donald Trump, ídolo de Bolsonaro e Araújo, deixou a Casa Branca. Um sinal disso é a carta que o presidente brasileiro endereçou a Joe Biden, novo presidente norte-americano, pregando uma boa relação.
Mas todos sabem que a tal carta não vale o papel em que foi escrita: Bolsonaro menospreza profundamente tudo o que Biden representa – democracia, diálogo e serenidade – e nada o fará mudar de ideia. O chanceler, portanto, pode ser qualquer um – é Bolsonaro quem deliberadamente faz do Brasil um “orgulhoso pária”.
Enquanto o Barão do Rio Branco, ciente das fragilidades brasileiras, fez do Brasil um país naturalmente voltado para o entendimento no concerto das nações, Bolsonaro escolheu comprar brigas gratuitas com algumas das maiores potências do planeta, para enfatizar a independência do País sob seu comando. Ao mesmo tempo, derretia-se de amores por Donald Trump quando este ocupava a presidência dos Estados Unidos, enquanto o resto do mundo civilizado, ciente do caráter daninho de Trump, tratava de se afastar dele.
Em vez de independência, a doutrina bolsonarista isolou completamente o Brasil. Mas o sr. Araújo não se fez de rogado: anunciou que, se este era o preço a pagar por defender a “liberdade”, ou seja, “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Perfeitamente alinhado a seu chefe, o ainda chanceler teve o descaramento de chamar de “cidadãos de bem” os terroristas que invadiram o Congresso dos Estados Unidos para interromper a confirmação da eleição de Joe Biden como presidente. Adicionando o insulto à injúria, Ernesto Araújo aproveitou para corroborar a tese golpista promovida pelo trumpismo de que houve fraude nas eleições, mentira que o presidente Bolsonaro repetiu vezes sem conta.
Se o chanceler for demitido, portanto, não será por ter descumprido ordens ou por ter sido desleal, mas sim, ao contrário, porque foi absolutamente fiel a Bolsonaro – e, por isso, criou grandes e gravíssimos problemas para o Brasil, hoje visto com reticências pelas duas grandes potências globais, Estados Unidos e China, além de enfrentar má vontade na União Europeia e na Índia. É uma façanha.
O afastamento de Araújo pode ser o gesto que o mundo espera de Bolsonaro para mudar um pouco a percepção negativa sobre o Brasil. Mas seria ingênuo acreditar que seu eventual substituto terá atuação muito diferente.
Pode haver algum pragmatismo nos próximos tempos, especialmente depois que Donald Trump, ídolo de Bolsonaro e Araújo, deixou a Casa Branca. Um sinal disso é a carta que o presidente brasileiro endereçou a Joe Biden, novo presidente norte-americano, pregando uma boa relação.
Mas todos sabem que a tal carta não vale o papel em que foi escrita: Bolsonaro menospreza profundamente tudo o que Biden representa – democracia, diálogo e serenidade – e nada o fará mudar de ideia. O chanceler, portanto, pode ser qualquer um – é Bolsonaro quem deliberadamente faz do Brasil um “orgulhoso pária”.
O pequeno Bolsonaro que existe em cada um de nós
O presidente Jair Bolsonaro se saiu nesta semana com mais uma de suas bravatas: “Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são suas Forças Armadas”. Eis aí a inversão absoluta do que está escrito naquele trecho da Constituição que todos conhecemos de cor (“todo poder emana do povo etc.”). Outro dia, em referência à invasão do Capitólio incitada por Donald Trump com base em mentiras sobre fraudes nas eleições, Bolsonaro insinuou que aqui poderia ser “pior” em 2022, caso não seja implantado o voto impresso. Pouco importa que não se tenha notícia de fraude nas urnas eletrônicas brasileiras ou que ele deva sua eleição ao voto popular, apurado com precisão por um dos sistemas eleitorais mais eficientes do mundo. Bolsonaro sempre acha que pode mais — e a lei que se dane. Suas frases são meras variantes daquela outra que tão bem define a alma do brasileiro: “Você sabe com quem está falando?”. Está justamente nessa atitude a origem do autoritarismo que apenas as almas benevolentes ignoram neste país.
Quem melhor desvendou tal mecanismo foi o antropólogo Roberto DaMatta, num ensaio publicado em 1979, reeditado mais de 40 anos depois. A expressão, que despreza a impessoalidade da lei e tenta pôr o outro em seu “devido lugar” diante de alguém pretensamente superior, traduz aquilo que DaMatta classifica como uma “vertente indesejável da cultura brasileira”.
Quem melhor desvendou tal mecanismo foi o antropólogo Roberto DaMatta, num ensaio publicado em 1979, reeditado mais de 40 anos depois. A expressão, que despreza a impessoalidade da lei e tenta pôr o outro em seu “devido lugar” diante de alguém pretensamente superior, traduz aquilo que DaMatta classifica como uma “vertente indesejável da cultura brasileira”.
“O autoritarismo do ritual sugere uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece ser avessa ao conflito”, escreve. “Concebemos conflitos como presságios de fim de mundo e como fraquezas.” No lugar do conflito, entra a hierarquia, a ordem, a força da autoridade. A democracia não existe como um sistema político capaz de organizar a sociedade e de mediar conflitos sem recurso à violência, mas, como sugerem as palavras de Bolsonaro, se torna uma espécie de “concessão” da casta militar à população. E o povo que se comporte e mantenha a compostura, ou então…
O ensaio de DaMatta é especialmente feliz ao interpretar a dinâmica entre dois sentimentos que de certa forma dilaceram nossa alma. De um lado, a informalidade, a abertura para o outro, o nivelamento social e o clima de festa representado no Carnaval. De outro, a hierarquia e a ordem restabelecidas pelo “você sabe com quem está falando?”. Um funciona meio como compensação pelo outro, ambos são na verdade duas faces de uma mesma moeda: uma sociedade incapaz de se guiar pela impessoalidade e pela objetividade da lei, que por definição trata todos não como pessoas, mas como indivíduos ou cidadãos. Numa palavra, como iguais. Para resolver o conflito, ou bem a lei se perde na subjetividade das relações pessoais, ou então se curva à hierarquia imposta pelo “você sabe com quem está falando?” (e sua variante contemporânea, a proverbial “carteirada”). Trata-se, diz ele, do “instrumento de uma sociedade na qual as relações pessoais formam o núcleo daquilo que nós chamamos de ‘moralidade’ (ou ‘esfera moral’) e têm um enorme peso no jogo vivo do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do Estado e da economia não penetram”.
Em contraste com os Estados Unidos — onde o equivalente “who do you think you are?” (quem você pensa que é?) é usado para lembrar o interlocutor que fura a fila ou desrespeita a lei da igualdade de todos perante a lei —, nosso “você sabe com quem está falando?” serve para assegurar os privilégios ao filho do general, do senador, do ministro ou do presidente. Não só ao filho, mas a todos aqueles que possam demonstrar vínculo com aquele personagem hierarquicamente superior por todos chamado de “doutor”. É a marca da sociedade ainda dividida em clãs, feudos e corporações, impermeável aos contratos impessoais que definem a essência do capitalismo, marca do país das “regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal importante”. Nisso, Bolsonaro nada tem de diferente de todos nós, demais brasileiros. DaMatta já mostrou, mais de 40 anos atrás, que existe um pequeno Bolsonaro autoritário em cada um de nós. Helio Gurovitz
Em contraste com os Estados Unidos — onde o equivalente “who do you think you are?” (quem você pensa que é?) é usado para lembrar o interlocutor que fura a fila ou desrespeita a lei da igualdade de todos perante a lei —, nosso “você sabe com quem está falando?” serve para assegurar os privilégios ao filho do general, do senador, do ministro ou do presidente. Não só ao filho, mas a todos aqueles que possam demonstrar vínculo com aquele personagem hierarquicamente superior por todos chamado de “doutor”. É a marca da sociedade ainda dividida em clãs, feudos e corporações, impermeável aos contratos impessoais que definem a essência do capitalismo, marca do país das “regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal importante”. Nisso, Bolsonaro nada tem de diferente de todos nós, demais brasileiros. DaMatta já mostrou, mais de 40 anos atrás, que existe um pequeno Bolsonaro autoritário em cada um de nós. Helio Gurovitz
Governar é preciso
Os governos existem para resolver problemas reais, não para aumentá-los ou para criar problemas imaginários. Governos também não têm o direito de se omitir diante de suas responsabilidades ou desculpar-se frivolamente pelas dificuldades que encontram para realizar o que é necessário.
Nunca é demais lembrar que ninguém ocupa o poder e o governo contra sua vontade. Pelo contrário, políticos e partidos lutam desesperadamente para chegar a ele e nesta jornada não recuam diante de nenhuma promessa, mesmo as mais fantasiosas.
Nunca é demais lembrar que ninguém ocupa o poder e o governo contra sua vontade. Pelo contrário, políticos e partidos lutam desesperadamente para chegar a ele e nesta jornada não recuam diante de nenhuma promessa, mesmo as mais fantasiosas.
A tarefa de governar já foi muito mais simples do que é hoje. Ordinariamente os governos tratavam da segurança, da ordem interna e da aplicação das leis, sem intervir de modo decisivo na vida social e na economia.
As relações de poder giravam numa esfera restrita de poucos grupos dominantes e a participação do povo era mais aparente do que efetiva. Neste ambiente qualquer cidadão de talento mediano estava à altura das responsabilidades limitadas de liderar um governo.
As coisas mudaram muito. Nos países do ocidente a democracia chegou para valer e a opinião pública não apenas passou a escolher com autonomia as lideranças políticas, como tornou-se a voz dominante na definição das políticas públicas. Os recursos do Estado, via impostos e dívida pública, cresceram de modo exponencial e o escopo dos governos estendeu-se sem limites, abrangendo todas as esferas da vida.
Neste processo foram criadas as mais variadas instituições públicas, desde autoridades monetárias a universidades, agências reguladoras e agências de seguro social. A missão dos governos tornou-se complexa por combinar a liderança de uma grande quantidade de quadros técnicos e profissionais e, principalmente, a mediação política entre o aparelho do Estado e a sociedade civil livre e informada.
Para sair-se bem destas missões é natural supor que sejam necessários homens excepcionais.
Esses homens excepcionais quase sempre existem em qualquer sociedade, mas os eleitores e os próprios sistemas políticos raramente os reconhecem e chegam a rejeitá-los quando os encontram. Os velhos liberais do antigo Estado costumavam dizer que ao governo dos homens é preferível o governo das leis e das instituições.
Em tese, faz sentido, mas pelo menos em certos momentos só homens lúcidos, capazes e preparados podem liderar um país que perdeu o seu rumo. Para liderar nas horas cruciais é preciso conhecimento, imaginação e uma espécie de parceria com o destino. É só lembrar de Churchill, Roosevelt, De Gaulle e, entre nós, Juscelino.
As relações de poder giravam numa esfera restrita de poucos grupos dominantes e a participação do povo era mais aparente do que efetiva. Neste ambiente qualquer cidadão de talento mediano estava à altura das responsabilidades limitadas de liderar um governo.
As coisas mudaram muito. Nos países do ocidente a democracia chegou para valer e a opinião pública não apenas passou a escolher com autonomia as lideranças políticas, como tornou-se a voz dominante na definição das políticas públicas. Os recursos do Estado, via impostos e dívida pública, cresceram de modo exponencial e o escopo dos governos estendeu-se sem limites, abrangendo todas as esferas da vida.
Neste processo foram criadas as mais variadas instituições públicas, desde autoridades monetárias a universidades, agências reguladoras e agências de seguro social. A missão dos governos tornou-se complexa por combinar a liderança de uma grande quantidade de quadros técnicos e profissionais e, principalmente, a mediação política entre o aparelho do Estado e a sociedade civil livre e informada.
Para sair-se bem destas missões é natural supor que sejam necessários homens excepcionais.
Esses homens excepcionais quase sempre existem em qualquer sociedade, mas os eleitores e os próprios sistemas políticos raramente os reconhecem e chegam a rejeitá-los quando os encontram. Os velhos liberais do antigo Estado costumavam dizer que ao governo dos homens é preferível o governo das leis e das instituições.
Em tese, faz sentido, mas pelo menos em certos momentos só homens lúcidos, capazes e preparados podem liderar um país que perdeu o seu rumo. Para liderar nas horas cruciais é preciso conhecimento, imaginação e uma espécie de parceria com o destino. É só lembrar de Churchill, Roosevelt, De Gaulle e, entre nós, Juscelino.
Se tudo isto é verdade, o Brasil hoje é um país em perigo. Nossa economia se arrasta na estagnação há mais de uma década. O desemprego e a pobreza não param de aumentar. Os serviços públicos estão no limite da precariedade. Estamos na segunda pior posição no mundo na gestão sanitária da pandemia, por ausência de gestão.
Estamos isolados na esfera internacional por que o governo escolheu o caminho da excentricidade ideológica. Diante de tudo isso nosso Presidente proclama que o país está quebrado e que ele não pode fazer nada. Ele não parece ser um daqueles lideres excepcionais.
O Brasil não está quebrado e continua sendo um dos países mais viáveis de todo o mundo. Do mesmo modo, o governo brasileiro não é, por natureza, impotente para resolver os problemas da nação. Temos pessoas e instituições de primeiro mundo. Falta-nos a decisão de governar.
Governar não é a mera gestão do poder, nem muito menos uma campanha eleitoral permanente. Governar é unir a nação e usar todos os recursos do poder para fazer a economia crescer, para diminuir as desigualdades sociais e, nesta hora, concentrar tudo no combate à pandemia.
E acima de tudo deixar de trazer para a esfera pública as questões morais, de costumes e de cultura, questões privadas que envolvem crenças absolutas e não se prestam à negociação e ao compromisso. A politização destes temas divide irremediavelmente qualquer sociedade e torna impossível a solução dos problemas reais das pessoas e do país.
Estamos isolados na esfera internacional por que o governo escolheu o caminho da excentricidade ideológica. Diante de tudo isso nosso Presidente proclama que o país está quebrado e que ele não pode fazer nada. Ele não parece ser um daqueles lideres excepcionais.
O Brasil não está quebrado e continua sendo um dos países mais viáveis de todo o mundo. Do mesmo modo, o governo brasileiro não é, por natureza, impotente para resolver os problemas da nação. Temos pessoas e instituições de primeiro mundo. Falta-nos a decisão de governar.
Governar não é a mera gestão do poder, nem muito menos uma campanha eleitoral permanente. Governar é unir a nação e usar todos os recursos do poder para fazer a economia crescer, para diminuir as desigualdades sociais e, nesta hora, concentrar tudo no combate à pandemia.
E acima de tudo deixar de trazer para a esfera pública as questões morais, de costumes e de cultura, questões privadas que envolvem crenças absolutas e não se prestam à negociação e ao compromisso. A politização destes temas divide irremediavelmente qualquer sociedade e torna impossível a solução dos problemas reais das pessoas e do país.
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