Quem melhor desvendou tal mecanismo foi o antropólogo Roberto DaMatta, num ensaio publicado em 1979, reeditado mais de 40 anos depois. A expressão, que despreza a impessoalidade da lei e tenta pôr o outro em seu “devido lugar” diante de alguém pretensamente superior, traduz aquilo que DaMatta classifica como uma “vertente indesejável da cultura brasileira”.
“O autoritarismo do ritual sugere uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece ser avessa ao conflito”, escreve. “Concebemos conflitos como presságios de fim de mundo e como fraquezas.” No lugar do conflito, entra a hierarquia, a ordem, a força da autoridade. A democracia não existe como um sistema político capaz de organizar a sociedade e de mediar conflitos sem recurso à violência, mas, como sugerem as palavras de Bolsonaro, se torna uma espécie de “concessão” da casta militar à população. E o povo que se comporte e mantenha a compostura, ou então…
O ensaio de DaMatta é especialmente feliz ao interpretar a dinâmica entre dois sentimentos que de certa forma dilaceram nossa alma. De um lado, a informalidade, a abertura para o outro, o nivelamento social e o clima de festa representado no Carnaval. De outro, a hierarquia e a ordem restabelecidas pelo “você sabe com quem está falando?”. Um funciona meio como compensação pelo outro, ambos são na verdade duas faces de uma mesma moeda: uma sociedade incapaz de se guiar pela impessoalidade e pela objetividade da lei, que por definição trata todos não como pessoas, mas como indivíduos ou cidadãos. Numa palavra, como iguais. Para resolver o conflito, ou bem a lei se perde na subjetividade das relações pessoais, ou então se curva à hierarquia imposta pelo “você sabe com quem está falando?” (e sua variante contemporânea, a proverbial “carteirada”). Trata-se, diz ele, do “instrumento de uma sociedade na qual as relações pessoais formam o núcleo daquilo que nós chamamos de ‘moralidade’ (ou ‘esfera moral’) e têm um enorme peso no jogo vivo do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do Estado e da economia não penetram”.
Em contraste com os Estados Unidos — onde o equivalente “who do you think you are?” (quem você pensa que é?) é usado para lembrar o interlocutor que fura a fila ou desrespeita a lei da igualdade de todos perante a lei —, nosso “você sabe com quem está falando?” serve para assegurar os privilégios ao filho do general, do senador, do ministro ou do presidente. Não só ao filho, mas a todos aqueles que possam demonstrar vínculo com aquele personagem hierarquicamente superior por todos chamado de “doutor”. É a marca da sociedade ainda dividida em clãs, feudos e corporações, impermeável aos contratos impessoais que definem a essência do capitalismo, marca do país das “regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal importante”. Nisso, Bolsonaro nada tem de diferente de todos nós, demais brasileiros. DaMatta já mostrou, mais de 40 anos atrás, que existe um pequeno Bolsonaro autoritário em cada um de nós. Helio Gurovitz
Em contraste com os Estados Unidos — onde o equivalente “who do you think you are?” (quem você pensa que é?) é usado para lembrar o interlocutor que fura a fila ou desrespeita a lei da igualdade de todos perante a lei —, nosso “você sabe com quem está falando?” serve para assegurar os privilégios ao filho do general, do senador, do ministro ou do presidente. Não só ao filho, mas a todos aqueles que possam demonstrar vínculo com aquele personagem hierarquicamente superior por todos chamado de “doutor”. É a marca da sociedade ainda dividida em clãs, feudos e corporações, impermeável aos contratos impessoais que definem a essência do capitalismo, marca do país das “regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal importante”. Nisso, Bolsonaro nada tem de diferente de todos nós, demais brasileiros. DaMatta já mostrou, mais de 40 anos atrás, que existe um pequeno Bolsonaro autoritário em cada um de nós. Helio Gurovitz
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