terça-feira, 25 de agosto de 2020

Brasil do escárnio

 

Nada de novo sob o sol

Mário Henrique Simonsen, ultraliberal, considerado gênio da economia tinha suas manias, como todo gênio que se preze. Ele, por exemplo, passava a semana usando o mesmo terno. E só tinha dois. Usava um na semana, outro nos sete dias seguintes. Seus amigos fizeram até vaquinha para comprar mais um conjunto de calça e paletó para o ministro.

Ele era um boa praça, homem rico, cantor de ópera amador, que se divertia fazendo equações, jogando xadrez, escrevendo textos sobre o destino do Brasil. Neles defendia a privatização de empresas estatais, a redução do estado e a abertura da economia. Discurso parecido com o de Paulo Guedes, porém mais inteligente, irônico e aberto ao debate.

Ele foi ministro forte no governo do general Ernesto Geisel, de 1975 a 1979. Na mesma administração, havia Severo Fagundes Gomes, homem culto, experiente, viajado, ótimo papo, liberal, industrial rico e defensor do capital brasileiro. Ele e Simonsen se respeitavam, mas falavam idiomas diferentes.

Severo defendia, junto com alguns militares e parcela da bancada de esquerda do Congresso, a indústria nacional. Eles foram responsáveis pela reserva de mercado para produção de computadores no Brasil, impedindo a entrada do produto estrangeiro. Simonsen, naturalmente, queria abrir o mercado.

Na questão política, o governo Geisel tinha dois lados opostos. O chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, trabalhava a favor da abertura lenta, gradual e segura. Na primeira semana daquela administração, ele, pessoalmente, me relatou o objetivo do governo e as etapas para conseguir alcançar aquele alvo, ou seja, a redemocratização do país.

Isso naturalmente envolvia a sucessão do presidente. Por essa razão, a escolha de João Baptista Figueiredo já estava decidida desde o início daquele governo.

No lado oposto estava o grupo que não queria que a sociedade evoluísse para uma democracia liberal. Preferia manter a política nas mãos dos generais. Seu representante maior foi Sylvio Frota, ministro do Exército.

Havia generais no Serviço Nacional de Informações (SNI) que não tinham nenhuma simpatia pela política de abertura, lenta, segura e gradual. Estes grupos continuam vivos. Apoiadores do presidente Bolsonaro não escondem o desejo de voltar aos governos militares e o retorno do AI-5. É o que sonha o pessoal da antiga.

No feriado de 12 de outubro de 1977, o Palácio do Planalto amanheceu protegido por soldados e atiradores de elite em posições estratégicas. O presidente da República decidira exonerar seu ministro do Exército, Sylvio Frota, que era abertamente contra o processo de abertura lenta e gradual na política brasileira.

Naquele dia de Nossa Senhora Aparecida ocorreu o confronto decisivo entre os partidários da democracia e os defensores do regime fechado conduzido pelos militares. O presidente convocou uma reunião do Alto Comando do Exército. Sylvio Frota convocou outra reunião na mesma hora, mas em outro local. No gabinete dele.

A maioria dos generais foi para o Palácio do Planalto. E Frota foi demitido. Houve ainda uma série de incidentes até que a Constituinte fosse convocada, o que só ocorreu no governo Sarney, depois do trauma da agonia e morte de Tancredo Neves.

O governo Geisel viveu a crise do petróleo. Acabou a gasolina no Brasil. Foi instituído o racionamento. As pessoas tinham que comprar boletos, chamados de simonetas, para adquirir gasolina. Os postos de combustíveis fechavam as oito da noite e abriam as seis da manhã. Naturalmente, crise econômica pesada se instalou no país. A saída sugerida por Simonsen era abrir a economia e convidar o capital internacional a investir no Brasil.

Uma das primeiras soluções foi demitir Severo Gomes do Ministério da Indústria e Comércio. Parecia que o rumo econômico estava decidido. Porém o país entrou numa espiral inflacionária e aumentou muito a dívida externa, que mais tarde iria resultar na moratória, já no governo Sarney.

Os militares retomaram o conhecido caminho do nacionalismo. Mais empresas estatais. Desta vez, quem saiu do governo foi Mário Henrique Simonsen.

Aqui, neste canto de mundo, as crises são iguais, só mudam os nomes dos envolvidos. Nacionalistas versus globalistas. Ultradireita que pretende fechar o Congresso e o Supremo, contra grupos a favor da democracia e das liberdades públicas. Só falta surgir a divisão dentro do Exército. É possível que aconteça nos próximos tempos. Mas também já ocorreu antes.

E, como sempre, a instabilidade política enriquece investidores e o pessoal do mercado financeiro. Nada de novo sob o sol. Mediocridade assustadora.

O incitamento ao ódio e a liberdade de expressão

O princípio de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que ninguém pode ser descriminado no exercício dos seus direitos em razão da raça, da cor ou da língua, assume na sociedade atual a natureza de um valor universal, inerente ao próprio reconhecimento da dignidade da pessoa humana.

O princípio expressamente consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em todos os documentos de natureza internacional dos direitos humanos, tem igual consagração na Constituição da República Portuguesa, enquanto direito fundamental de qualquer cidadão.


A liberdade de expressão constitui um direito de primeira geração, englobando o direito de exprimir e divulgar ideias e opiniões, através de quaisquer meios, sendo vedado qualquer obstáculo discriminatório para a sua concretização por parte do Estado ou de terceiros.

No entanto, o âmbito da liberdade de expressão não é ilimitado nem absoluto, podendo ser restringido ou regulado por lei em prol da ponderação de outros bens jurídicos igualmente relevantes ou de maior peso tutelados constitucionalmente ou internacionalmente.

O Código Penal Português, tal como outros códigos a nível europeu, punem criminalmente a conduta de quem “fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, ou que a encorajem; ou participar na organização ou nas atividades referidas ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento”.

Grande parte dos países europeus proíbe o discurso ao ódio.

A lei não deve tutelar a proteção da liberdade de expressão dos titulares de discursos propagadores do ódio, cujo único objetivo é, na sua forma e conteúdo, a estigmatização, o insulto ou a humilhação de um determinado grupo, seja ele minoritário ou maioritário. A liberdade de expressão deve ser negada a quem queira, através do seu exercício, restringir liberdades fundamentais alheias, propalando e incitando ao ódio racial e pondo com o seu comportamento em causa o próprio valor universal da dignidade da pessoa humana.

A propaganda e o incitamento à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, ou o encorajamento de tais atividades constituem atividade criminosa e, por conseguinte, caem fora do âmbito do princípio da liberdade de expressão.

Não estamos assim perante cidadãos a exercer o seu direito de opinião, mas perante um grupo de delinquentes que devem, por esse facto, ser investigados e responsabilizados pelos seus atos, pois são eles que estão a agir à margem dos valores constitucionais da sociedade em que se inserem.

A nossa memória coletiva é muito curta. Não aprendemos com a História.

Vivemos tempos em que os direitos humanos e a proibição da discriminação injustificada estão consagrados na legislação nacional, europeia e internacional, mas também não ignoramos que os tempos de crise são uma oportunidade para populismos discriminatórios e racistas.

O individualismo e o egoísmo nunca conduziram a bons resultados. Torna-se necessário utilizar com rigor os meios legais existentes, com tolerância zero para com os crimes racistas, mas também e, sobretudo, promover as condições do respeito pela dignidade e direitos de todos sem discriminações e a adoção de uma pedagogia que promova o espírito de fraternidade entre todos os residentes, sejam eles nacionais, estrangeiros ou apátridas.

Palavras torpes e mente autoritária

O presidente Jair Bolsonaro deveria ter se antecipado e prestado contas ao país das muitas dúvidas sobre as finanças da sua família. A nação tem o direito de saber. O jornalista do GLOBO fez a pergunta certa e necessária. A ameaça de “encher a sua boca de porrada” que ele disparou ao repórter é recorrente e reveladora. Ele quer uma imprensa domesticada que o exalte, como todo ditador. Bolsonaro tem um projeto autoritário de poder, já demonstrou inúmeras vezes, verbaliza com frequência, distorce, mente, atropela limites institucionais, e usa as Forças Armadas como escudo para ameaçar os outros brasileiros. As autoridades do Congresso e da Justiça que não querem ver essa realidade, colaboram com esse projeto.

Ontem o país ultrapassou os 115 mil mortos pela pandemia. Na cerimônia “Brasil vencendo o Covid-19” — fora do tom e sem propósito — o presidente foi aplaudido de pé dentro do Palácio do Planalto depois de agredir os fatos, a imprensa e o ex-ministro da Saúde. Congratulou seu governo por ter indicado o uso da cloroquina, disse que muitas das 115 mil vidas perdidas poderiam ter sido salvas com o remédio, jogou culpas sobre Luiz Henrique, repetiu que o Supremo “o alijou” do combate à pandemia e depois ofendeu de novo os jornalistas.

— Aquela história de atleta... que o pessoal da imprensa vai para o deboche. Mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade, usam a caneta com maldade.

Além de tentar atingir os jornalistas com mais uma palavra torpe, o que ele faz é ofender os doentes e até os mortos. Se ele define como bundões os que têm mais risco de morrer, se ele vive se referindo ao seu passado de atleta e diz que a doença tem que ser enfrentada “como um homem”, os que perderam a batalha têm culpa de seu próprio destino?


A pessoa pública deve prestar contas e esclarecer zonas de sombra e dúvidas. É inerente aos cargos que ocupam. Não há motivo aparente para que Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia façam depósitos na conta de Michelle Bolsonaro. Eles eram funcionários do gabinete do filho mais velho do presidente. O caso todo é uma coleção de dúvidas. Os excessos de depósitos em espécie na conta de Flávio Bolsonaro, os funcionários fantasmas que ocupavam aquela folha salarial, ter parentes do miliciano Adriano da Nóbrega entre esses falsos servidores. De um lado, o senador Flávio Bolsonaro em vez de se explicar, faz chicana. De outro, o presidente da República, em vez de responder, ameaça de agressão física o jornalista que perguntou. Mais de um milhão de tuítes repetiram a mesma pergunta e ela permanece no ar. Por que aqueles depósitos foram feitos na conta da mulher do presidente?

O risco de o país se acostumar está presente o tempo todo. Nos pouco mais de 60 dias em que Bolsonaro falou menos barbaridades, muitos passaram a considerar que agora ele estava estabilizado, teria sido enquadrado pelas instituições. O ministro Jorge Oliveira disse ao “Valor” que o presidente é “veemente”. Ora, ministro, procure outra palavra que defina com mais exatidão a arrogância, a agressividade, os ataques do presidente aos que ele escolheu como inimigos.

Quando Bolsonaro moderou o tom não foi por ter entendido o decoro do cargo, mas porque teve medo. Ele submergiu logo após Queiroz ter sido encontrado na casa do advogado Frederick que defendeu o presidente e era advogado de Flávio quando abrigou a peça-chave para esclarecer o que se passava no gabinete do agora senador.

Bolsonaro tem usado as Forças Armadas no mesmo estilo de Hugo Chávez. Como Chávez, ele chegou ao governo pela via democrática, como o ex-ditador venezuelano ele também não tem apreço pelas instituições democráticas. Na Venezuela, o orçamento privilegiou os gastos da Defesa para costurar essa lealdade militar. Essa história não terminou bem lá, não terminará bem aqui, a menos que o país se defenda de um jogo já conhecido. O passo agora é usar os recursos públicos para cimentar seu populismo. Na Venezuela foi assim também. O dinheiro dos nossos impostos deve chegar a quem mais precisa, mas não pode ser apresentado como doação do líder magnânimo às massas. Contudo, é para sustentar essa visão que se trabalha no governo em todas as áreas, inclusive na economia.

Democraticamente armados


Agora essa infestação de armas numa gigantesca barbárie autorizada. É o polícia que hoje abertamente se excede ou se antecipa, é a adolescente de classe média toda paramentada treinando tiro, é o homem louco de raiva voltando equipado à lanchonete para nunca mais atrasarem seu pedido. São os monstros felizes que atiram para o alto como que produzindo seus próprios fogos de artifício. É a tentação na gaveta de casa para o filho deprimido, é um bem guardado no cofre do velho assombrado por bandidos, é a solução final que o nazista saca da cintura, por cima do muro do vizinho, o cala-a-boca, o ultimato, o argumento de autoridade, o elemento surpresa da desforra do garoto que mal atravessa o portão da escola já vai abrindo a mochila. Fetiche do presidente, dos filhos do presidente e de mais de um país de gente doente, que gosta de caça, de ameaça, da farsa de autodefesa e do embuste chamado bala perdida. Agora isso, quinze anos depois da campanha do desarmamento, que recolheu mais de quatrocentas mil armas de fogo pelo Brasil, entregues de boa-fé, numa resolução massiva, histórica, de gente que se desfazia de seus motes assassinos, quinze anos passados e agora temos um decreto que permite a cada cidadão a posse de até quatro armas, o dobro do que lhe pode caber nas próprias mãos. E temos o tempero do ódio servido fresco todo dia, a excitação da energia do disparo, uma espécie de diabólica autonomia de nos matarmos uns aos outros sem necessidade de polícia ou de bandido. E ainda pistolas, fuzis, escopetas, bazucas coloridas e munições plastificadas nas estantes das lojas de brinquedos. Uma infestação de armas e alvos, para (quase) todos os tipos de raiva e medo, para os que não têm nada e para os da elite, para o luxo da caça esportiva e para quem só está na lida, também para o bebê que nem queria, nem pretendia, mesmo assim tomou aquela estranha coisa fria entre os dedos, para ver o que era e como lhe dar vida.

 Mariana Ianelli

Selfie do Brasil

 

Uma versão musical do Orçamento

No momento em que se discute um tema tão áspero como o Orçamento, lembrei-me de uma velha canção chamada “Matilda”, de um gênero antigo como o calipso, cantada por Harry Belafonte, hoje com 93 anos.

“Matilda, Matilda, Matilda, she take me money and run Venezuela” — dizia a letra. A idade atrai certas loucuras. Como essa de lembrar “Matilda” ao analisar os movimentos de Bolsonaro na articulação do Orçamento.

Bolsonaro previu uma destinação para as Forças Armadas maior do que para a Saúde e a Educação. O desejo de fazer dos militares sócios do governo é um traço comum entre o Brasil de hoje e a Venezuela bolivariana. Muita grana para a Defesa, militares em postos-chave, tudo isso revela que, ao se preparar para uma guerra imaginária, o governo tem em mente a verdadeira defesa que lhe interessa: a de si próprio contra uma eventual oposição popular.

Existe uma diferença, entretanto.

Os militares na Venezuela são acusados de corrupção por apoiar um governo do qual talvez discordem ideologicamente. No Brasil não há indícios de corrupção. O máximo que pode existir são algumas benesses que fundem salário e soldo.


Aqui há proximidade ideológica. Os militares, por uma bizarra concepção de Defesa, gostariam de ver o progresso clássico na Amazônia, como se a floresta em pé nos tornasse mais vulneráveis. E gostariam também de integrar os índios à sociedade abrangente: um só povo e um só Deus facilitam a Defesa nacional.

Bolsonaro prepara seu próprio Bolsa Família. Com a ajuda emergencial, percebeu o crescimento de sua popularidade. Pessoalmente, era contra a ajuda. No passado, acusava o PT de comprar votos com ela.

Em certos temas, esquerda e direita acham que escrevem a história e não percebem que são escritas por ela. O apoio de regiões mais carentes ao governo tem sido uma constante, uma vez que, em certa medida, dependem da ajuda oficial. Elas são as últimas a abandonar um governo decadente, mesmo no período da ditadura militar.

Se as pessoas desfavorecidas sentem que o governo alivia seu fardo, elas estão dispostas até a lutar por ele. Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte.

Nesse sentido que canto: Bolsonaro pega a grana e foge para a Venezuela. Naturalmente, as pessoas vão dizer: não é sustentável destinar tanto dinheiro para a Defesa nem manter grandes programas assistenciais.

Não discuto isso. Por acaso a Venezuela é sustentável? No entanto, Maduro sobrevive. O que interessa a ele não é a sustentabilidade nacional, e sim a do governo.

Nem interessa às Forças armadas de lá o fato de o país, pelo crescimento da pobreza, tornar-se mais vulnerável. A sensação corporativa é a de um poder crescente.

É sempre possível argumentar que políticas como a Educação e a Saúde influem diretamente no bem-estar das pessoas mais pobres. Neste momento de pandemia, a Educação é uma resignada lacuna, e a Saúde usa um orçamento de guerra.

Meu problema não é cantar calipsos na quarentena. Mas simplesmente tentar entender alguns enigmas como o de um presidente que se torna mais popular num país que entra em recessão. Há várias saídas para a Venezuela, de avião a Caracas, por terra até Santa Elena. Não esperava encontrar uma na própria discussão do Orçamento.

Não creio que Bolsonaro tenha tomado essa decisão consciente. Apenas tento imaginar as possibilidades futuras. A sedução das Forças Armadas e uma base popular não bastam para nivelar as experiências com a Venezuela. O Congresso é conquistável por métodos historicamente consagrados. A tentativa de destruir ou simplesmente arruinar uma parte da imprensa é idêntica. Resta um Supremo que também muda, embora demande algum tempo para a reposição de ministros.

Aqueles que se deslumbram com uma pseudonormalidade deveriam, pelo menos, levar em conta o processo de reorganização da inteligência estatal voltada basicamente a julgar pelos primeiros passos, a monitorar opositores. O movimento não cessa, nós é que, às vezes, não o notamos.

Rotina de matança

 

Esse é um país em que morrem em média 50.000 pessoas por ano assassinadas. É uma coisa absurda. É um país em que pessoas morrem de fome. Um país só pode ficar tão apático em torno de 100.000 mortes quando é um país que já se acostumou com a morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras. É um país que não se livrou da alma da escravidão. Ela não existe mais como sistema econômico e político, mas deixou marcas nas quais o Brasil se reconhece muito. Acho que 100.000 mortes é tido como algo absolutamente corriqueiro 

Água, livros e votos

Ainda não inventamos um sistema melhor do que a democracia para servir aos interesses do povo de uma nação, mas ela confunde as necessidades do povo no futuro com a soma dos interesses dos eleitores no presente: metade mais um dos indivíduos de hoje representando o todo no amanhã. Embora a democracia ainda seja o melhor dos sistemas, há momentos em que a soma dos indivíduos não representa, necessariamente, o conjunto deles, como nação. A democracia é o neoliberalismo na política. Um exemplo é a fala do Ministro da Economia dizendo que os livros são bens de consumo dos ricos e, portanto, é justo e democrático taxar os livros: cobrar dos ricos para que eles leiam e paguem para que os pobres tenham água para beber. Ele tem razão na lógica democrática e na justiça imediata: temos pobres sem água em casa e temos ricos lendo enquanto bebem água fresca. Ele tem razão na medíocre visão do neoliberalismo político, do imediato e dos indivíduos.



Nesta lógica, leitura é para ricos, água para os pobres, hoje e sempre, por isto ele não analisa a justiça de ensinar o povo, desde criança, a ler e gostar de ler. Na visão da política democrática neoliberal do eleitor individual e o contribuinte atual, não há justificativa para o eleitor pobre pagar para que o rico se embriague no vício da leitura, nem o rico pagar para o pobre virar leitor. Porque para ele, não existe o conceito de povo leitor, nem isto é visto como indicador de riqueza e progresso. Por isto ele se sente um paladino da justiça e do progresso ao defender o que nos parece absurdo, impostos mais altos para livros.

Mas muitos leitores, escritores, editores, são contra este aumento de imposto, sem defender e lutar para que a leitura deixe de ser um privilégio. Na visão do povo-leitor, não apenas eleitores e ricos, deveria lutar por programas de rápida erradicação do analfabetismo. Por uma estratégia para transformar o Brasil em um país de leitores, todos lendo, graças a uma escola com a máxima qualidade e igual para todos. Para implantação de uma rede de bibliotecas, inclusive domésticas, financiadas com recursos públicos e com acervo de um bilhão de livros.

Desde quando, para calar a boca do ministro, lutam para que a leitura não seja um consumo, alguns consideram um vício, de rico, como tomar uísque? No máximo defende-se pequenas políticas positivas em prática há décadas para minúsculos, sem o salto para termos uma escola de qualidade entre as melhores do mundo e a qualidade igual para todos: independente da renda e do endereço. Com resultados concretos na formação de uma sociedade leitora, ávida por livros. Deixa assim ao ministro a chance de dizer, com lógica, o absurdo que ele disse: “ler é um privilégio de quem lê”.

Com a lógica da democracia neoliberal do eleitor, sem considerar o povo e sem ver o país adiante. O neoliberalismo econômico vê o livro como bem de consumo, não a leitura como vetor de riqueza estética, de ampliação da eficiência econômica e do horizonte de liberdade. Lógica também dos que se opõem à medida do ministro, mas querem livros baratos para os mesmos que já leem, sem propor a construção de um povo de leitura.

A imbecilidade do ministro tem lógica e não é só ele que pratica esta lógica: a democracia vista como o governo a serviço de cada indivíduo, não a serviço da nação, e sem uma liga com o futuro. Não temos uma liga moral com os não leitores e nem com a lógica econômica, não percebermos que o custo do livro não é só imposto, é também o resultado das tiragens baixas em um idioma de raros leitores.

A imbecilidade do ministro está na moral, ele não vê a importância da leitura nem tem sentimento de povo e de transcendência histórica que vai além do imediato. Mas também lhe falta inteligência contábil para saber que são tão poucos os leitores, que aumentar imposto sobre livro empobrece o país e não ajuda a equilibrar as contas públicas. Estamos divididos entre pobres que não leem e leitores que não veem. Não percebem que os pobres não leem por falta de dinheiro, mas sobretudo por falta de alfabetização e educação de base que promova o gosto e a capacidade de ler. Se todos lessem, os livros ficariam baratos e as bibliotecas seriam como bolsões de oxigênio cultural.

Temos que enfrentar o neoliberalismo anti-leitores de Guedes, mas distinto do neoliberalismo social de manter os benefícios apenas para os poucos leitores que temos. Precisamos barrar livros, este imposto contra a riqueza cultural, lembrando que Guedes é um detalhe grotesco de uma política anti-leitura de séculos no Brasil. Devemos aceitar impostos sobre os leitores ricos, mas não sobre a leitura, penalizar os bens de luxo que eles compram, mas não tratar livros como luxo… salvo talvez alguns que o ministro leu. São estes impostos sobre os bens de luxo, que não são livros, serem usados para baratear os livros, até também com menos impostos sobre eles, mas sobretudo com melhores escolas para todos, inclusive os filhos de ricos que também estão deixando de ler.

Mas o Guedes não é o primeiro a querer propor esta troca: por décadas, decidiu-se enfrentar a desigualdade regional levando água, não leitura, para o Nordeste. Certo que água é mais urgente para a sobrevivência, mas não transforma a sociedade. Porque a água, como impostos sobre livros, pode dar votos, mas não enriquece o povo, não ensina a votar, nem faz perene o fluxo de água e demais bens e serviços que o povo precisa, inclusive sua liberdade.

Sr. presidente, por que sua mulher recebeu R$ 89 mil do Queiroz?

Bolsonaro voltou no domingo a ser o que é. Depois de dois meses cumprindo a liturgia do cargo, agrediu um repórter do GLOBO ao ser questionado, dentro das estritas prerrogativas e da missão do jornalismo profissional, sobre um assunto de interesse público — a razão de a primeira-dama Michelle ter recebido, do casal Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar, cheques num total de R$ 89 mil. 

O presidente reagiu com palavras dignas daquele personagem do “Casseta & Planeta”, o Maçaranduba, que queria resolver tudo “na porrada”. Os ares de valentão ginasiano podem pegar bem com o extremista que faz o gesto de arminha com a mão. Mas voltar a agredir a imprensa cobra um preço alto nas faixas da classe média e do eleitorado mais instruído, que voltaram a dar apoio a Bolsonaro, não por coincidência nestes pouco mais de dois meses em que mudou de tom. 


A onda de críticas que recebeu nas redes sociais — uma enxurrada de perguntas sobre a razão de R$ 89 mil terem sido depositados em favor de Michelle — confirma que Bolsonaro erra ao deixar emergir sua face autoritária, incapaz de entender que, numa democracia, é papel da imprensa fazer perguntas incômodas. É hora de ele compreender que parcela relevante da sociedade não aceita esse tipo de postura. Se não quer ou não sabe responder, que se cale. É inadmissível agredir um repórter que faz seu trabalho.

Das perguntas incômodas, a dos cheques de Michelle é apenas um dos mistérios que pairam sobre a conexão entre o ex-PM Queiroz e o clã Bolsonaro. O Ministério Público fluminense ainda investiga o papel de Queiroz no esquema que é acusado de gerenciar no gabinete do ainda deputado estadual Flávio Bolsonaro na Alerj.

A investigação já identificou o repasse de R$ 2 milhões de assessores de Flávio a Queiroz, forte evidência do esquema em que pessoas de confiança são nomeadas em gabinetes de parlamentares para devolver parte do que recebem, a “rachadinha”. A presença de parentes de Queiroz e dos Bolsonaros no caso reforça as suspeitas. O intenso tráfego de dinheiro vivo na vida de Flávio completa o enredo. 

Antes de tomar posse, Bolsonaro teve de responder sobre depósitos de R$ 24 mil feitos por Queiroz na conta de Michelle. Explicou que se tratava de parte do pagamento de um empréstimo, no valor total de R$ 40 mil. Podia fazer sentido na ocasião. Agora se descobre que os depósitos para Michelle somaram mais que o dobro disso — sem registro de transferência de Bolsonaro a Queiroz. O presidente continuou ontem a agredir a imprensa. Mas ainda não respondeu à pergunta do GLOBO: Por que sua mulher, Michelle, recebeu R$ 89 mil do Queiroz?

Nós, os restantes

Estou deixando para trás uma semana em que perdi um amigo para a covid-19. Nós, os consternados, a quem cabe relatar esta rotina cinzenta, vivemos a tragédia de sermos humanos.

Esta pandemia nos ensina a conviver com as perdas. Com as nossas vulnerabilidades. Com nossas limitações e fraquezas. A única forma de continuarmos com um mínimo de paz é nos adaptarmos a esta realidade maluca.

Não vou me ludibriar. Não vou fingir que não estou magoado com a perda do meu amigo. Nem que estou com medo do vírus. Esta pessoa desamparada sou eu. Esta dor sou eu. Profundamente eu.


O meu amigo se chamava Beto Rezende. Não resistiu às sucessivas paradas cardíacas, complicações enquanto estava intubado, lutando para sobreviver ao novo coronavírus.

Beto era da luta. Um enorme senso de justiça social, defensor das liberdades individuais, bem informado, humilde e leve, crítico ferrenho dos fascistas, dos fundamentalistas, dos caretas e bossais. O ateu mais misericordioso e fraterno que Deus colocou na face da Terra.

Foi jornalista. Dividi com ele o idealismo das redações de jornal, achando que nossas canetas e bloquinhos de repórteres poderiam contribuir para um mundo mais igualitário. Protagonizamos gargalhadas e lágrimas típicas da boemia nas mesas de bar. Vivemos aquela coisa toda da geração coca-cola nos anos 1990, quando fomos jovens. Pintamos a cara para pedir impeachment de um presidente que não gostava de gente.

Recentemente, víamo-nos pouco, pelas contingências. Mas, a amizade (esse misto de afeto e afinidade) estava ali, “em ferro e flor”. As alegrias de uma amizade, quando um amigo morre, ficam.

(Mesmo correndo o risco de parecer tolo, recomendo que se você tiver palavras de afeto, de alegria, de conciliação, de reflexão, de incentivo, para dizer a um amigo (a um parente, a um conhecido), diga-as agora. Não deixe as palavras para um dia quando elas jamais poderão ser ditas).

Esta pandemia desfigura a vida e parece interminável. A doença se espalha e se prolonga enquanto tememos por nós mesmos e pelas pessoas com as quais nos preocupamos. (Meu Deus, como será o nosso momento seguinte?).

A proximidade com a morte nos faz enxergar os débitos: nós nos banalizamos na trivialidade do dia a dia, nos fatos corriqueiros e cotidianos. Nessa corrida superficial, terminamos construindo muralhas com os sentimentos.

A perda de um amigo querido desperta em nós uma fatalidade. Tomamos consciência de que a vida é passageira demais, o que é hoje pode não ser amanhã, e uma certa urgência de viver termina nos obrigando a perder o medo de sentir os nossos sentimentos. Afinal são eles, os sentimentos, que dizem muito sobre nós mesmos. E sobre o mundo.
Cícero Belmar