terça-feira, 25 de agosto de 2020

Nós, os restantes

Estou deixando para trás uma semana em que perdi um amigo para a covid-19. Nós, os consternados, a quem cabe relatar esta rotina cinzenta, vivemos a tragédia de sermos humanos.

Esta pandemia nos ensina a conviver com as perdas. Com as nossas vulnerabilidades. Com nossas limitações e fraquezas. A única forma de continuarmos com um mínimo de paz é nos adaptarmos a esta realidade maluca.

Não vou me ludibriar. Não vou fingir que não estou magoado com a perda do meu amigo. Nem que estou com medo do vírus. Esta pessoa desamparada sou eu. Esta dor sou eu. Profundamente eu.


O meu amigo se chamava Beto Rezende. Não resistiu às sucessivas paradas cardíacas, complicações enquanto estava intubado, lutando para sobreviver ao novo coronavírus.

Beto era da luta. Um enorme senso de justiça social, defensor das liberdades individuais, bem informado, humilde e leve, crítico ferrenho dos fascistas, dos fundamentalistas, dos caretas e bossais. O ateu mais misericordioso e fraterno que Deus colocou na face da Terra.

Foi jornalista. Dividi com ele o idealismo das redações de jornal, achando que nossas canetas e bloquinhos de repórteres poderiam contribuir para um mundo mais igualitário. Protagonizamos gargalhadas e lágrimas típicas da boemia nas mesas de bar. Vivemos aquela coisa toda da geração coca-cola nos anos 1990, quando fomos jovens. Pintamos a cara para pedir impeachment de um presidente que não gostava de gente.

Recentemente, víamo-nos pouco, pelas contingências. Mas, a amizade (esse misto de afeto e afinidade) estava ali, “em ferro e flor”. As alegrias de uma amizade, quando um amigo morre, ficam.

(Mesmo correndo o risco de parecer tolo, recomendo que se você tiver palavras de afeto, de alegria, de conciliação, de reflexão, de incentivo, para dizer a um amigo (a um parente, a um conhecido), diga-as agora. Não deixe as palavras para um dia quando elas jamais poderão ser ditas).

Esta pandemia desfigura a vida e parece interminável. A doença se espalha e se prolonga enquanto tememos por nós mesmos e pelas pessoas com as quais nos preocupamos. (Meu Deus, como será o nosso momento seguinte?).

A proximidade com a morte nos faz enxergar os débitos: nós nos banalizamos na trivialidade do dia a dia, nos fatos corriqueiros e cotidianos. Nessa corrida superficial, terminamos construindo muralhas com os sentimentos.

A perda de um amigo querido desperta em nós uma fatalidade. Tomamos consciência de que a vida é passageira demais, o que é hoje pode não ser amanhã, e uma certa urgência de viver termina nos obrigando a perder o medo de sentir os nossos sentimentos. Afinal são eles, os sentimentos, que dizem muito sobre nós mesmos. E sobre o mundo.
Cícero Belmar

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