terça-feira, 25 de agosto de 2020

Democraticamente armados


Agora essa infestação de armas numa gigantesca barbárie autorizada. É o polícia que hoje abertamente se excede ou se antecipa, é a adolescente de classe média toda paramentada treinando tiro, é o homem louco de raiva voltando equipado à lanchonete para nunca mais atrasarem seu pedido. São os monstros felizes que atiram para o alto como que produzindo seus próprios fogos de artifício. É a tentação na gaveta de casa para o filho deprimido, é um bem guardado no cofre do velho assombrado por bandidos, é a solução final que o nazista saca da cintura, por cima do muro do vizinho, o cala-a-boca, o ultimato, o argumento de autoridade, o elemento surpresa da desforra do garoto que mal atravessa o portão da escola já vai abrindo a mochila. Fetiche do presidente, dos filhos do presidente e de mais de um país de gente doente, que gosta de caça, de ameaça, da farsa de autodefesa e do embuste chamado bala perdida. Agora isso, quinze anos depois da campanha do desarmamento, que recolheu mais de quatrocentas mil armas de fogo pelo Brasil, entregues de boa-fé, numa resolução massiva, histórica, de gente que se desfazia de seus motes assassinos, quinze anos passados e agora temos um decreto que permite a cada cidadão a posse de até quatro armas, o dobro do que lhe pode caber nas próprias mãos. E temos o tempero do ódio servido fresco todo dia, a excitação da energia do disparo, uma espécie de diabólica autonomia de nos matarmos uns aos outros sem necessidade de polícia ou de bandido. E ainda pistolas, fuzis, escopetas, bazucas coloridas e munições plastificadas nas estantes das lojas de brinquedos. Uma infestação de armas e alvos, para (quase) todos os tipos de raiva e medo, para os que não têm nada e para os da elite, para o luxo da caça esportiva e para quem só está na lida, também para o bebê que nem queria, nem pretendia, mesmo assim tomou aquela estranha coisa fria entre os dedos, para ver o que era e como lhe dar vida.

 Mariana Ianelli

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