terça-feira, 26 de novembro de 2019

Brasil Bozo


A dor dos invisíveis

A única chance de Sâmia é abandonar o bebê. A única chance do recém-nascido será a adoção por uma família constituída, pai e mãe, nome e sobrenome. O país é Marrocos. Os dias de hoje. Tão bem contada em "Adam", dirigido por Maryam Touzani, linda atriz, roteirista, marroquina, 39 anos, a história de Sâmia trata literalmente dos excluídos. A dor avassaladora da mãe ao desamparar o filho só não é maior que o medo de vê-lo condenado como bastardo para o resto da vida.

O filme é delicado. Mas sufocante. Não permite o choro... não está longe de nós a realidade marroquina, machista, intolerante, miserável e desigual. Quase 50 mil crianças estão em abrigos públicos no Brasil, em situação de abandono absoluto. Mães desesperadas. Desamparadas. Desse universo invisível, apenas sete mil estão prontos para a adoção. O restante? O resto? Os que não se incluem nos adotáveis ainda estão sub judice.


Num país tão desigual como o nosso, a grande maioria das crianças - 61% do total, cerca de 33 milhões - vivem na pobreza, perto de 13 milhões não tem saneamento básico, 2,5 milhões estão fora da escola; 2,7 milhões em situação de trabalho infantil.

Queira ou não o capitão que nos desgoverna, e abomina ONGs, os dados são realistas. E atuais. Foram recolhidos por cinco organizações não governamentais sem fins lucrativos para o “Child Rights Now – Análise da Situação dos Direitos da Criança no Brasil”.

No quadro em que vivemos, vai piorar. Há menos de um mês. Bolsonaro anunciou a criação do "direito ao equilíbrio fiscal", sobrepondo-o ao artigo 6º da Constituição que diz que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a Previdência Social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". Pela proposta do Capitão, se passar no Congresso, primeiro paga-se aos bancos. Depois, se sobrar, o resto.

Bolsonaro ainda planeja um estelionato eleitoral. Na campanha, garantiu que jamais acabaria com o Bolsa Familia. Não é o que parece. O capitão não gosta do programa que tem a cara de Luis Inácio Lula da Silva, e seu ministro da Economia anda com uma tesoura no bolso para cortar programas sociais. Minha casa, minha vida também tem a cara de Lula e já foi reduzido de R$ 4,6 bilhões para R$ 2,7 bilhões. Terá o menor orçamento de sua história.

A igualdade de oportunidades na sociedade brasileira é utopia. Desde sempre. Os filhos dos ricos ou mais abastados estudam, os pobres ensinam seus filhos a reciclarem lixo. O IBGE espelha o Brasil de hoje: a renda média do 1% mais rico do país é cerca de 35 vezes maior que os ganhos de metade dos mais pobres. O IPEA engrossa: o desemprego empobreceu mais ainda os que já eram pobres, recuando de 5,7% para 3,5% sua participação na renda nacional.

Sem dó nem piedade. O dinheiro dos que trabalham já não é suficiente para o luxo do almoço ou do transporte coletivo. E vida que segue. Em O Globo dessa segunda, o cineasta Cacá Diegues encara o assunto. Fala de desigualdades, pobreza, indiferença, omissão. ";Hoje, o desprezo pela dor do outro e a ideia de fatalidade do sofrimento alheio estão consagrados, já viraram programa de governo em muitos regimes. Alguns, até, considerados exemplos de democracia", sentencia.

Estão no Brasil. Estão nas telas dos cinemas. De "Adam", a "Coringa", ou "Parasita", os excluídos, os invisíveis, não estão longe das nossas casas. Gente de verdade, absolutamente descartável, habitando um mundo cada vez mais cruel. A vida cada mais difícil, 
Brasil desfocando cada vez mais as diferenças, a agonia de quem não tem emprego, não tem saúde, não tem escola. Não tem abrigo. Se esse governo pudesse, excluiria até nossa esperança de dias melhores.
Mirian Guaraciaba

Em resposta à loucura


Alguém me avise se pedirem o AI-5 de novo para eu sair do hospital e ir protestar contra
Bruno Covas (PSDB),prefeito de São Paulo internado para tratamento de câncer

Lulofobia provoca em Guedes um surto de inépcia

O medo tem múltiplos olhos. Eles são invisíveis. E enxergam coisas no subsolo da existência. Já se sabia que a família Bolsonaro cria as assombrações e depois se assusta com elas. Descobre-se agora que os fantasmas dos Bolsonaro apavoram também Paulo Guedes. Com pânico de Lula, o ministro da Economia teve um surto de inépcia. Aderiu ao radicalismo da estupidez.

Numa viagem em que deveria acalmar investidores nos Estados Unidos, Paulo Guedes conseguiu inquietar observadores no Brasil. Numa única entrevista, revelou-se alérgico ao cheiro de asfalto —'Acho uma insanidade chamar o povo pra rua pra fazer bagunça'—, sensível aos pendores repressivos de Jair Bolsonaro —'Ele só pediu o excludente de ilicitude'— e permeável a aventuras ditatoriais —'Não se assustem se alguém pedir o AI-5'.


Sob o impacto do ronco emitido pelas ruas em países vizinhos, Guedes atribuiu a letargia das reformas pós-Previdência ao medo do monstro: "Qualquer país democrático, quando vê o povo saindo para a rua, se pergunta se vale a pena fazer tantas reformas ao mesmo tempo".

Na sequência, o ministro elegeu Lula como culpado pela insanidade que o rodeia: "Assim que ele [Lula] chamou para a confusão, veio logo o outro lado e disse: 'É, sai pra rua, vamos botar um excludente de ilicitude, vamos botar o AI-5, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Que coisa boa, né? Que clima bom!".

Lulafóbico, o ministro perdeu a noção do tempo e do ridículo. Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três, levou o AI-5 à vitrine antes do discurso de porta de cadeia em que a divindade petista exaltou as manifestações que sacodem a América Latina. De resto, os bolsonaristas é que tomaram gosto pelas ruas. Praticam a democracia direta, na qual o meio-fio e a internet produzem maioria parlamentar na marra.

Lula e o petismo não se autoatribuem tanto poder. No ano passado, ao discursar no comício que antecedeu a sua prisão, Lula testou seus poderes ao convocar os devotos para "queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade". O orador foi em cana. E seus seguidores foram para casa.

No 7º Congresso do PT, encerrado no domingo passado, a ala esquerdista da legenda sugeriu a adesão ao "Fora Bolsonaro". O grupo majoritário, liderado por Lula, injetou no documento aprovado no encontro uma emenda que expõe os pés de barro do petismo.

Ficou decidido que a direção do PT pode exigir a saída de Bolsonaro a qualquer momento, desde que se materialize uma "evolução das condições sociais", da "percepção pública sobre o caráter do governo" e da "correlação de forças".

Quer dizer: a insurreição das ruas não depende de Lula. O asfalto só vai roncar se Bolsonaro e Guedes fornecerem material. E a dupla parece decidida a corresponder às expectativas dos seus adversários.

Há irresponsáveis na oposição. Mas nada supera a irresponsabilidade de um governo que, tendo 12 milhões de desempregados para atender, prefira transformar o país num trem fantasma.

Risco de mais violência no campo

Não basta entregar o Incra aos ruralistas e paralisar a reforma agrária. Agora Jair Bolsonaro quer usar os militares para despejar famílias sem terra. Ontem o presidente anunciou a criação da “GLO rural”. A ideia, segundo ele próprio, é usar as Forças Armadas para reprimir e dispersar ocupações no campo.

As operações de “garantia da lei e da ordem” podem ser convocadas em situações de emergência, como greves das PMs. Por lei, só devem ser usadas “de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”. A regra foi sancionada em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.


O texto frisa que as tropas só devem ser empregadas “após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública”. O motivo é simples: as Forças Armadas são treinadas para a guerra, não para as atividades de segurança pública.

Pelo plano de Bolsonaro, os militares passariam a ser acionados para cumprir ordens de reintegração de posse, com blindagem contra eventuais processos. “É chegar e tirar o cara da propriedade”, afirmou.

Ao anunciar a proposta, ele deixou claro que não está preocupado em evitar confrontos. “Não é uma ação social, chegar com flores na mão. É chegar preparado para acabar com a bagunça”, disse, antes de atacar o MST e chamar sem-terras de “marginais”.

Reintegrações de posse são operações complexas, que exigem prudência e negociação. O Estado deve ter responsabilidade com as famílias assentadas, que em muitos casos já enfrentam ameaças de jagunços a serviço de fazendeiros.

Bolsonaro não disfarça que tem lado nos conflitos pela terra. Ele entregou a Secretaria de Assuntos Fundiários a Nabhan Garcia, chefão da UDR. É um personagem truculento, que já foi associado a milícias rurais no Pontal do Paranapanema.

Em agosto, o presidente prometeu indulto aos policiais condenados por matar 19 trabalhadores no massacre de Eldorado do Carajás, em 1996. Com a proposta de ontem, ele arrisca envolver os militares em novos casos de derramamento de sangue.

Imagem do Dia


A alma soterrada do Brasil

Estive no mais profundo Brasil, numa das regiões mais secas e pobres do país. Ela fica no centro dessa gigantesca nação, e, no entanto, é afastada e isolada. Possivelmente apenas poucos brasileiros a conhecem.

O norte de Minas Gerais é marcado pelo calor, solo árido, espinhos e poeira. E por uma injustiça que já dura séculos. É a terra dos latifundiários e dos antigos coronéis. É também, porém, a terra de lavradores e pescadores, que se impõem contra a natureza impiedosa. E contra a discriminação histórica.

Através da paisagem onde predominam o amarelo e marrom, corre o poderoso Rio São Francisco, o "Velho Chico", a artéria vital da região. Tranquilo e belo, ele flui por seu largo leito, mas todos que o conhecem dizem que é preciso atentar para sua força e respeitá-la, pois, quem o subestima é arrastado e engolido.

Na margem do "Velho Chico" vive Dona Enedina. Ela construiu uma casa simples, de barro e madeira, e cobriu-a de telhas de argila que parecem ter sido modeladas sobre a coxa do artesão. A casa tem uma varanda sombreada, com dezenas de plantas, uma cozinha com um fogão de barro e um pequeno banheiro, onde ela se banha com a água do rio.


A casa de Dona Enedina fica num quilombo chamado Croatá, onde vivem 25 famílias de lavradores e pescadores. Seus antepassados foram escravos que construíram os palácios do Brasil, araram seus campos, morreram em suas minas de ouro, cozinharam para os senhores e criaram os filhos deles. Eles foram forçados a isso, mas ninguém jamais lhes pediu desculpas, agradeceu, muito menos pagou uma reparação.

Mas Enedina Souza dos Santos não se queixa. Ela é orgulhosa, e trabalha. "Eu remo e pego peixe. Eu corto madeira, cubro o telhado, construo paredes e coloco canos d'água. Eu planto feijão, milho e mandioca. Eu crio animais e cuido das crianças. Eu sei usar a foice, o machado e a enxada. Eu sou uma mulher macho, e ninguém vai me tirar da minha terra."

Quando a visitei, Dona Enedina estava dando de comer aos porcos. Alguns anos atrás, alguém lhe presenteou uma leitoa, e, desde então, ela criou e vendeu dúzias de porcos. Além disso, tem incontáveis galinhas tagarelas, cães e dois gatinhos que criou na mamadeira, depois que uma ave de rapina matou a mãe deles. Dona Enedina também tem uma roça do tamanho de meio campo de futebol, e uma horta circular. Ela gostaria de começar com a semeadura, mas desde abril não chove.

Dona Enedina também pesca no São Francisco. Mas, diz, os peixes estão doentes desde que a lama tóxica do rompimento da barragem de Brumadinho contaminou também o rio: "O 'Velho Chico' está sofrendo!"

Aos 51 anos, Dona Enedina é uma empreendedora exemplar, além de mãe de seis filhos. É casada com um homem branco, oito anos mais novo que ela. Os dois maridos anteriores, ela mandou embora, pois a traíram. "Aqui, quem dita o tom sou eu", afirma e ri.

Tudo o que ela construiu está ameaçado. A massa falida da Atrium – uma fazenda falida – entrou na Justiça com um pedido de reintegração de posse contra a comunidade de Croatá. Segundo os moradores, a massa falida inclui latifundiários, especuladores e grileiros de terras públicas em áreas da União no São Francisco.

Por vezes, aparecem no quilombo capangas armados para perturbar Dona Edina e os outros. Esses homens, contam várias fontes, recebem ordens do empresário Walter Arantes. Ele é um dos donos da rede de supermercados BH e aliado político do ex-governador Newton Cardoso (MDB), hoje aposentado. Arantes tem vários processos abertos contra ele, a maioria por crimes ambientais, e chegou a ser preso no âmbito da Lava Jato em 2018. Em Belo Horizonte, ele responde por "enriquecimento ilícito", entre outras acusações.

"Esses grileiros não me impressionam com as picapes Hilux deles", desafia Dona Enedina. "Uma vez eles vieram, mas a gente tinha construído uma barricada. Quando viram as nossas foices, deram no pé."

Em 1979, o Rio São Francisco inundou o Quilombo Croatá, e seus moradores fugiram. Quando voltaram, um latifundiário havia se apoderado das terras. Só em 20008 encontraram coragem para retornar – e foram expulsos. Em 2012, Dona Enedina e os demais tentaram de novo e começaram a construir casas.

"Os fazendeiros vieram com escavadeiras e helicópteros, para nos ameaçar", lembra Dona Enedina. E o Estado? Pôs-se do lado dos fazendeiros, mandou a Polícia Militar para intimidar os moradores e negou os serviços públicos. Até hoje a comunidade Januária, a que Croatá pertence, não instalou eletricidade no quilombo. Assim, é à luz de lampião que nos reunimos à noite, enquanto Dona Enedina preparava feijão, arroz e galinha no fogão.

"O mais importante para a gente poder ficar foi o Conselho Pastoral dos Pescadores da Igreja Católica", conta. "As irmãs do Conselho nos ensinaram que temos direitos. Não os conhecíamos, antes."

Dona Enedina é secretária na Associação dos Quilombolas. É uma das líderes da resistência. A pequena comunidade se encontra regularmente para se aconselhar e cantar. "Não somos grileiros, especuladores ou invasores", afirma Dona Enedina. "Croatá tem mais de 100 anos de história. Nós somos posseiros!"

Enedina Souza dos Santos é uma mulher que é como a alma soterrada do Brasil: resistente, bem-humorada, honesta, diligente e generosa. O Brasil seria um país melhor com mais Enedinas.
Philipp Lichterbeck

Veneno só para pobre

Ele (Paulo Guedes, ministro da Economia) está deixando de ser o ‘Posto Ipiranga’ do governo, só tem feito trapalhadas, com propostas de remédio amargo apenas para os pobres. Por que ele não taxa os lucros e os dividendos dos banqueiros? Ele quer que isso aqui vire um Chile?
José Nelto, líder do Podemos na Câmara

Inaptidão para a democracia

Não se pode confundir democracia com liberdade para afrontar os princípios básicos da convivência política e social. E isso tem acontecido com frequência preocupante desde que chegou ao poder um grupo político que, a título de recuperar os “valores e tradições” mais caros à sociedade brasileira, como prometeu o presidente Jair Bolsonaro em sua posse, vem intoxicando a atmosfera do País com truculência e intolerância.

Esses não são os valores mais caros à sociedade brasileira. Não era isso o que clamavam os que se enojaram da corrupção e da leviandade dos políticos na era lulopetista. Era o exato oposto: que fossem resgatados os valores frontalmente aviltados por mais de uma década de desfaçatez e autoritarismo protagonizada pelo PT de Lula da Silva, que dificultou o diálogo democrático mesmo na esquerda e fez da arrogância e da violência retórica – quando não física, como atesta o longo histórico de vandalismo do MST e seus congêneres a serviço do partido – um método para chegar ao poder e lá ficar para sempre.

E tudo isso, é sempre bom lembrar, sob o disfarce de partido campeão da ética, com o qual Lula e seus devotos pretendiam se apresentar como moralmente superiores e, assim, impor suas vontades ao resto do País. Quem ousava não votar no PT era desde logo estigmatizado como inimigo dos pobres, insensível ante a “revolução social” capitaneada pelo demiurgo de Garanhuns.

Foi contra esse crime continuado cometido pelo PT contra a democracia que os eleitores manifestaram, no ano passado, sonoro repúdio. Mas, por mais eloquente que tenha sido, tal voto certamente não trazia embutida nenhuma autorização para que os eleitos dessem vazão a seus instintos mais primitivos, como se a vitória eleitoral tivesse o condão de levantar todas as interdições que a civilização impõe àqueles que dela pretendem fazer parte.

Quando um deputado federal destrói parte de uma exposição na Câmara alusiva ao Dia da Consciência Negra, sob o argumento de que o que ali estava retratado vilipendiava os policiais militares ao acusá-los de promover um “genocídio da população negra”, a democracia é violentada – com a agravante de se dar nas dependências da chamada “Casa do Povo”. Quando esse mesmo deputado faz de seu ato insano um evento para suas redes sociais, como se fosse um gesto político legítimo, então é a barbárie.

E quando outro deputado, em defesa do gesto agressivo do colega, vai à tribuna da Câmara e diz que a Polícia Militar não pode ser responsabilizada pela morte de negros “porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”, adentra-se o terreno em que inexistem padrões mínimos de convivência em sociedade. É o vale-tudo – o exato oposto da democracia.

Não é mera coincidência que esses parlamentares sejam correligionários do presidente da República, Jair Bolsonaro, que reiteradas vezes ao longo de sua trajetória política demonstrou escassa disposição de aceitar os ritos e costumes próprios da vida democrática, a começar pelo respeito a quem pensa diferente. Logo, nada mais fazem do que imitar o estilo do “mito”, na presunção de que isso deleitará os eleitores.

Pode até ser que alguns eleitores de fato vibrem com essas demonstrações cabais de menosprezo pela democracia e suas instituições, mas certamente a grande maioria se preocupa com a escalada de grosserias por parte dos bolsonaristas, pois esse comportamento jamais dá em boa coisa. Pelo contrário, é um indicativo claro de inaptidão para a democracia.

Não se pode tratar esses fatos como normais ou mesmo toleráveis. A naturalização da violência como instrumento político torna a sociedade mais vulnerável à ação dos liberticidas. É preciso demonstrar, de maneira clara, total repúdio a essa tentativa de transformar a política em rinha de galos. Muitos eleitores, com carradas de razão, ajudaram a defenestrar o PT do poder justamente por tentar criar uma insuperável divisão na sociedade; agora, espera-se que esses mesmos eleitores, com igual vigor, condenem aqueles que, a título de combater “esquerdistas” em toda parte, alimentam um clima de confronto crescente com o qual planejam minar a democracia e, assim, estender indefinidamente sua permanência no poder.

O teatro do silêncio da ministra Damares Alves

O dia 25 de novembro devia ser de solenidade: a data é para lembrar os horrores da violência contra a mulher. A linguagem é inclusive militar — dia internacional de eliminação da violência contra a mulher. América Latina e Caribe é a região do mundo que mais agride e mata mulheres. O fenômeno é tão entranhado no patriarcado colonial que adotamos um neologismo para nomear o naturalizado pela honra masculina: feminicídio é quando uma mulher morre simplesmente porque é mulher. Mulheres e meninas morrem nas relações familiares, afetivas ou de amizade.

Ministra Damares Alves conta ter sido vítima de violência de gênero. Além disso, é responsável pela pasta que define políticas para as mulheres e para os direitos humanos. Ao anunciar a primeira campanha do Governo Bolsonaro para eliminar a violência contra a mulher se fez de atriz: foi ao palco de uma coletiva de imprensa e silenciou diante das perguntas. Os jornalistas a respeitaram, foram obsequiosos ao que poderia ser o sofrimento genuíno de uma vítima. Quem a assistia não sabia a origem do mal-estar de Damares: uma angústia por pensar nas mulheres que naquele instante viviam o horror da violência ou um temor por sua própria história como vítima.

Infelizmente, a performance de ministra Damares era um teatro de mau gosto e desrespeitoso às vítimas de violência. Seu silêncio era o show inicial para a campanha “Se uma mulher perde a voz, todas perdem”. Ministra Damares ignorou a seriedade do cargo e, além da vulgaridade da cena, demonstrou o quanto desconhece a força do feminismo na luta para o fim da violência contra as mulheres. Se o feminicídio mata mulheres e a violência silencia tantas outras, o patriarcado não emudece todas nós. É falso supor que se uma mulher perde a voz, todas perdem. O correto é dizer que se uma mulher perde a voz, todas nós falaremos ainda mais. Pois, como dizem as argentinas, é “nem uma a menos”.

Como ministra de Estado, o dever de Damares é falar mais e com a firmeza daquela que representa o poder das políticas de públicas que oferecem proteção às mulheres que sofrem violência. É seu dever colonizar este país com mensagens de segurança de que nenhum agressor será impune, que nenhuma mulher será abandonada. Mas, infelizmente, ela emudece porque é incapaz de nos oferecer segurança. Ela mesma é uma mulher subjugada ao jogo masculino do poder, às artimanhas de um uso perverso da representatividade de gênero na política que transforma a agenda igualitarista em uma armadilha contra a próprias mulheres. Ministra Damares representou o silêncio de algumas vítimas exatamente porque esse é seu lugar na política — o da pastora que faz ruído sobre azul e rosa, que enxerga Jesus na goiabeira, mas que parece ser incapaz de entender que contra o patriarcado não há teatro, mas luta.
Debora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brown / Giselle Carino, diretora da IPPF/WHR