Numa viagem em que deveria acalmar investidores nos Estados Unidos, Paulo Guedes conseguiu inquietar observadores no Brasil. Numa única entrevista, revelou-se alérgico ao cheiro de asfalto —'Acho uma insanidade chamar o povo pra rua pra fazer bagunça'—, sensível aos pendores repressivos de Jair Bolsonaro —'Ele só pediu o excludente de ilicitude'— e permeável a aventuras ditatoriais —'Não se assustem se alguém pedir o AI-5'.
Sob o impacto do ronco emitido pelas ruas em países vizinhos, Guedes atribuiu a letargia das reformas pós-Previdência ao medo do monstro: "Qualquer país democrático, quando vê o povo saindo para a rua, se pergunta se vale a pena fazer tantas reformas ao mesmo tempo".
Na sequência, o ministro elegeu Lula como culpado pela insanidade que o rodeia: "Assim que ele [Lula] chamou para a confusão, veio logo o outro lado e disse: 'É, sai pra rua, vamos botar um excludente de ilicitude, vamos botar o AI-5, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Que coisa boa, né? Que clima bom!".
Lulafóbico, o ministro perdeu a noção do tempo e do ridículo. Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três, levou o AI-5 à vitrine antes do discurso de porta de cadeia em que a divindade petista exaltou as manifestações que sacodem a América Latina. De resto, os bolsonaristas é que tomaram gosto pelas ruas. Praticam a democracia direta, na qual o meio-fio e a internet produzem maioria parlamentar na marra.
Lula e o petismo não se autoatribuem tanto poder. No ano passado, ao discursar no comício que antecedeu a sua prisão, Lula testou seus poderes ao convocar os devotos para "queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade". O orador foi em cana. E seus seguidores foram para casa.
No 7º Congresso do PT, encerrado no domingo passado, a ala esquerdista da legenda sugeriu a adesão ao "Fora Bolsonaro". O grupo majoritário, liderado por Lula, injetou no documento aprovado no encontro uma emenda que expõe os pés de barro do petismo.
Ficou decidido que a direção do PT pode exigir a saída de Bolsonaro a qualquer momento, desde que se materialize uma "evolução das condições sociais", da "percepção pública sobre o caráter do governo" e da "correlação de forças".
Quer dizer: a insurreição das ruas não depende de Lula. O asfalto só vai roncar se Bolsonaro e Guedes fornecerem material. E a dupla parece decidida a corresponder às expectativas dos seus adversários.
Há irresponsáveis na oposição. Mas nada supera a irresponsabilidade de um governo que, tendo 12 milhões de desempregados para atender, prefira transformar o país num trem fantasma.
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