quarta-feira, 18 de agosto de 2021

É crime ser pobre neste país?

Repercutiu bastante na mídia a declaração do presidente de que é contra tributar as fortunas porque, segundo ele, ser rico não é crime. Ora, se não devemos tributar a riqueza porque ser rico não é crime, por que tributamos tanto os mais pobres, os trabalhadores e a classe média? Tem razão o presidente, ser rico, realmente, não é crime. Sonegar tributos, sim, é crime. Superfaturar o preço das vacinas também é crime. Roubar é crime. Matar é crime. Expor a vida ou a saúde dos outros a perigo direto ou iminente é crime. Ser rico, obviamente, não é crime.

Embora se saiba que boa parte das riquezas acumuladas possa ter tido origem de atividades de legalidade duvidosa, como superexploração do trabalho, sonegação de tributos, apropriação de terras indígenas, privatização do patrimônio público, desrespeito às regras ambientais e aos direitos dos trabalhadores, por exemplo, ser rico, de fato, não é crime. Mas não é esse o ponto. A questão central é que a opção por não tributar os mais ricos constitui uma opção por uma sociedade mais desigual e disfuncional do ponto de vista da economia, mas com oportunidades para ampliação da concentração das riquezas.

Por outro lado, temos que ter em conta que tributo não é penalidade, portanto não tem nada a ver com crimes. Crimes são punidos com prisão, com perdimento de bens ou valores, ou com multas qualificadas, mas não com tributos. Então, por que relacionar uma coisa com a outra? Parece clara a intenção de amplificar, na sociedade, a rejeição aos tributos. Aliás, quem não lembra daquela declaração, também do presidente, “eu sonego tudo o que for possível”? A rejeição aos tributos leva de carona a rejeição ao Estado, às políticas públicas e aos direitos sociais, que são financiados pelos tributos.


Outro dia, o empresário Flávio Rocha, dono da Riachuelo, também se declarou contrário à taxação das grandes fortunas porque esse imposto, disse ele, empobreceria os ricos. Imagino que tenha sido apenas força de expressão, de sua parte, uma brincadeira ou uma piada, pois como é que alguém pode pensar que um imposto de 0,5% incidindo apenas sobre a parcela das grandes riquezas que ultrapassarem R$ 10 milhões, fosse suficiente para tornar pobres, os ricos? Esse é o significado do verbo empobrecer. Só para termos uma ideia do montante, uma pessoa que tenha um patrimônio de R$ 12 milhões, por exemplo, pagaria R$ 10 mil por ano de imposto, e isso corresponderia a apenas 0,083% do valor total dos seus bens. De fato, ou aquele empresário estava de brincadeira, ou ele não tem nenhuma noção do que significa ser pobre no Brasil.

É bom que se diga que ser contra a taxação das grandes fortunas não é um problema em si. A razão de cada um para ser contra, sim. Tanto o presidente quanto aquele empresário, e, certamente, muitos outros representantes dos setores mais ricos da população pensam da mesma maneira, são contra a tributação das grandes fortunas pelos efeitos que essa tributação promete produzir, de redistribuição de renda e riqueza e de redução das desigualdades sociais. Para eles, a concentração de riquezas não deve ser desestimulada pelo Estado.

Já aqueles que desejam o contrário podem até entender que a taxação das grandes fortunas não seja o instrumento mais adequado e que a desejada redução das desigualdades e da concentração das riquezas poderia ser obtida de forma mais eficaz por uma tributação fortemente progressiva sobre a renda e por uma tributação elevada sobre as grandes heranças, por exemplo. O ex-presidente Lula manifestou também sua opinião de que o “problema não é tributar as grandes fortunas (….). O problema é ter uma política de imposto de renda que seja justa, que as pessoas paguem de acordo com o que ganham”.

Portanto, há uma diferença fundamental entre as motivações que mobilizam as opiniões. Entre os que defendem o Estado social, ou seja, a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, a promoção do desenvolvimento econômico, a redução das desigualdades sociais, o fortalecimento do papel do Estado, os debates e eventuais divergências estão localizados no campo instrumental, ou seja, nos meios. Receios de que a tributação das fortunas possa promover fuga de capitais, desinvestimento na atividade econômica, ou mesmo de que este tributo possa ser complexo demais ou tenha baixa potencialidade de arrecadação já estão superados por inúmeros estudos acadêmicos e, também, por experiências internacionais, mas ainda são manifestados com alguma frequência.

Além disso, é preciso ter em conta que a redução das desigualdades não pode ser atribuída a um único instrumento, mas sim à combinação de vários instrumentos tributários, de natureza progressiva, com gastos públicos bem orientados e com uma política ativa de emprego e de valorização dos salários dos trabalhadores.

Em relação àqueles outros, que rejeitam a tributação das riquezas porque defendem, contrariamente ao que diz a Constituição Federal, a manutenção ou o aprofundamento da desigualdade, a redução do Estado, a precarização das condições de trabalho e a perpetuação da uma economia primário-exportadora, a disputa real não está no campo da tributação, mas nas finalidades relacionadas ao modelo de Estado e de sociedade. Aliás, a sua rejeição à tributação das grandes fortunas confirma a importância deste instrumento para quem defende um Estado mais justo.

No Brasil, mais da metade de tudo o que arrecadamos vem de tributos que incidem sobre o consumo e é por isso que a tributação acaba pesando muito mais sobre os mais pobres, aprofundando, portanto, a desigualdade social. Além disso, esse tipo de tributação onera demais a produção e reduz o poder de compra dos consumidores, prejudicando, dessa forma, a própria atividade econômica e a geração de empregos. Se quisermos promover o desenvolvimento e reduzir as desigualdades sociais, mais cedo ou mais tarde, teremos que enfrentar esse problema, mas não podemos embarcar no simplismo de reduzir da tributação sobre o consumo sem que, antes, tenhamos promovido uma elevação da tributação sobre os mais ricos, sob pena de prejudicarmos ainda mais os mais pobres pela redução da capacidade do Estado na promoção das políticas públicas essenciais.

Para quem defende uma sociedade mais justa, tributar mais os mais ricos é uma necessidade, não apenas porque temos uma enorme carência de recursos para fazer frente às demandas reprimidas em decorrência da crise, mas também porque é uma questão de justiça, pois o nível de sacrifício que a tributação impõe aos mais pobres é infinitamente maior do que o que impõe aos mais ricos. Além disso, a própria Constituição estabelece a obrigatoriedade de a tributação respeitar a capacidade contributiva e não há nada mais representativo de capacidade contributiva do que a riqueza acumulada.

Para os muito ricos, é evidente que o Imposto sobre as Grandes Fortunas é pouco expressivo em termos de valor, mas seria, sem dúvida alguma, extremamente importante para melhorar as condições de vida para milhões de pessoas. De acordo com os documentos da campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS, estima-se que esse imposto promoveria uma arrecadação de aproximadamente R$ 40 bilhões ao ano, atingindo somente 60 mil pessoas, cujo patrimônio supera R$ 10 milhões.

Aranhas, teias e golpes

As aranhas urdidoras de fraudes eleitorais do conto de Machado de Assis “A Sereníssima República”, publicado em 1882, uma época marcada pela transição do Império à República e da escravidão ao trabalho livre, é uma genial ficção etnológica e uma extraordinária reflexão sobre a adoção de novos regimes políticos. Um assunto em que o Brasil é um caso exemplar e Machado de Assis um privilegiado observador, pois, devido à plenitude de uma aristocracia e de um patriarcado hegemônico, com o reforço da fuga da Corte portuguesa, proclamamos uma atiradíssima República sem republicanos e uma democracia sem igualdade. Hoje, vítimas das teias que tecemos, lidamos com o que parece ser uma maluquice eleitoral, tal como aconteceu com as aranhas.

A fábula relata uma excepcionalidade, um processo de mudança cultural. As aranhas têm uma língua e, tanto quanto o Brasil, aceitam o republicanismo para descobrir que as demandas da República têm em seu sistema eleitoral uma degradável impessoalidade. Uma imparcialidade que nos torna anônimos e iguais perante a lei. Aranhas e nós, porém, temos reservas quanto a esse princípio contrário a práticas sociais hierarquicamente orientadas, mas enterradas em nosso inconsciente, exceto quando colocamos alguém no seu devido lugar com o “você sabe com quem está falando?”.

A igualdade como valor destoa da reciprocidade revelada por Marcel Mauss, que obriga a fazer e a devolver o favor que, ao lado do jeitinho (caseiro ou legalmente supremo), coloca as ideias nos seus lugares. Esses são os costumes não convidados que trazem de volta a “velha política”. O sistema em que Bolsonaro foi eleito para liquidar. E que hoje o leva a pensar no golpe que destampa a teia de uma aristocracia estatizada.

A comunidade das aranhas também sofre de um claro antietnocentrismo. Inventada por seus onipotentes intelectuais, a pátria das aranhas não percebe as gradações, privilégios e castas de sua ordem social. A incongruência entre o regime político e os costumes promove um rodriguiano complexo de vira-lata — esse sintoma de uma inferioridade estrutural diante de estrangeiros “adiantados” e “civilizados”.

Por isso as aranhas mais sensíveis pedem ao Cônego Vargas — aquele humano a elas simpático que, como um etnólogo, aprendeu sua língua e admirou suas teias — um regime político. Visto como um demiurgo, algo comum nos encontros entre povos com grandes diferenças de poder, esses contatos que conduzem à escravidão e ao colonialismo, o honesto Cônego não hesitou em sugerir o sistema da Sereníssima República de Veneza, o menos sujeito às imobilidades das heranças e casas aristocráticas, o que contém um mecanismo de mudança e aprimoramento.

Adotando o regime republicano, logo as melhores moças da coletividade teceram os sacos de onde sairia o nome de um dos eventuais candidatos. Elas foram chamadas de “mães da república”, informação reveladora de que a “política”, como a religião, o ensino, o jogo, o esporte ou o trânsito, não entram em espaços vazios porque não há nenhuma sociedade com espaços sem significado.

O resu
ltado, depois de algumas eleições, foi decepcionante. Sem serem capazes de enxergar as implicações e o protagonismo social de seus próprios costumes, as aranhas logo descobriram seus malandros e seus golpistas. A disputa eleitoral, ao lado do negacionismo do poder de seus estilos estabelecidos de prestígio de poder, fez com que as aranhas de Machado de Assis até hoje urdam e desmanchem suas sacolas eleitorais e, como Penélope, aguardem seu Ulisses — uma enorme paciência e ao lado de uma velha sabedoria.

O preço do autodesconhecimento é a repetição que conduz à ausência de história e de mudança. Pensar que se podem controlar costumes ou, mais ingênuo que isso, ignorar que, depois de Dom João VI, tivemos um Pedro Zero Um e Pedro Zero Dois e alguns mandachuvas é — no limite da estupidez — desejar não mudar. É voltar ao autoritarismo aristocrático disfarçado de “estados novos” podres de velhos, mostrando a saudade das dita-duras.

A miragem nacional denunciada por Machado de Assis é que o republicanismo não é um mecanismo formalista isolado, pois todo regime é contaminado pelo conjunto dos costumes da sociedade de que faz parte.

Impossível mudar? Claro que não. O ponto é ter consciência de que todo processo de mudança tem miragens e exige paciência com o velho e energia para implementar o novo.

PS: Todo golpe troca teias por grades. Faz parte dos golpes o patético “botar os tanques na rua”, essas armas do puro poder, poluidoras da vida dos que apenas desejam viver em paz sem abdicar de seu direito de construir suas teias. Esse valor que a maluquice de um presidente aliado da morte não pode abolir.

Roberto DaMatta

'Normalidade' genocida

Continuam morrendo 1.000 pessoas por dia e a gente está achando que está ótimo, está fantástico. E não está! O nosso desafio é que as pessoas entendam que 560.000 mortos é mais grave do que qualquer caso de corrupção
Alessandro Vieira, senador, Cidadania-SE

Um presidente aloprado e sua gangue fora da lei

Encurralado por quatro ações no Supremo Tribunal Federal (STF) e uma no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um recorde histórico, Jair Bolsonaro postou no sábado 14: “Todos sabem das consequências, internas e externas, de uma ruptura institucional, a qual não provocamos ou desejamos. De há muito, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, extrapolam com atos os limites constitucionais”.

Mentira! Desde 2018 o presidente denuncia as urnas eletrônicas como fraudadas para evitar, com um autogolpe, a derrota em 2022. Após longa leniência das autoridades guardiãs da Constituição, da paz e da ordem públicas, estas exigiram que ele apresente as provas que diz ter. Mas, à exceção da fraude que pratica, tendo prometido combater a corrupção, “mais Brasil e menos Brasília”, e traído tais promessas, nada revelou de relevante.

Ao contrário, seja por tolerância exagerada ou compreensível respeito à vontade popular em decisões eleitorais não alteradas, que venceu seis vezes, o chefe do desgoverno atroz tem sido poupado de merecidas penas. Há dois anos, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro denunciou suas reiteradas tentativas de interferir politicamente na Polícia Federal (PF). De lá para cá, fez gato e sapato com a instituição, ao nomear fâmulos da famiglia, Anderson Torres e Paulo Maiurino, para o Ministério da Justiça e a direção da policia judiciária. O delegado Alexandre Saraiva foi afastado do inquérito sobre suspeita de cumplicidade de seu apoiador Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, mesmo tendo sido este denunciado em venda ilícita de madeira da Amazônia, flagrada não pela PF, mas no destino, os EUA, o que lhe provocou demissão. O inquérito está parado porque o STF ainda não decidiu se o presidente deporá por escrito ou pessoalmente. Lana caprina, portanto.


Bolsonaro ainda compartilhou, por escrito, no aplicativo Whatsapp, manifesto ostensivamente golpista, assinado por um grupo de Facebook chamado “Ativistas direita volver”. O manifesto reza, em vernáculo vulgar: “O Presidente Bolsonaro, no início de agosto, em vídeo gravado, pediu para que o povo brasileiro fosse mais uma vez às ruas, na Avenida Paulista, no dia sete de setembro, dar o último aviso, mas, desta vez, ele reforçou que o ‘contingente’ deveria ser absurdamente gigante, ou seja, o tamanho desta manifestação deverá ser o maior já visto na história do país, a ponto de comprovar e apoiar, inclusive internacionalmente, para que dê a ele e às FFAA, para que, em caso de um bastante provável e necessário contragolpe que terão que implementar em breve, diante do grave avanço do golpe já em curso há tempos e que agora avança de forma muito mais agressiva, perpetrado pelo Poder Judiciário, esquerda e todo um aparato, inclusive internacional, de interesses escusos”. Compartilhar significa participar.

Compartilhou-o simultaneamente à divulgação por seu aliado Roberto Jefferson, dono do Partido Trabalhista Brasileiro – que lhe foi doado por Golbery do Couto e Silva na ditadura –, de um manifesto virulento, ilustrado por uma foto empunhando duas pistolas, ao estilo caubói do Velho Oeste. No mesmo sábado 14 de agosto em que o próprio Bolsonaro anunciou que exigiria as cabeças de Barroso e Moraes ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que ajudou a eleger, um cantor que migrou da Jovem Guarda para o sertanejo convocou, em reunião com empresários ditos do agronegócio, o “antigolpe” para o feriado da Independência: “Nós vamos parar 72 horas. Se não fizer nada, nas próximas 72 horas, ninguém anda no País, não vai ter nem caminhão para trazer feijão para vocês aqui dentro”, disse o artista em reunião em Brasília. Sentado ao lado do presidente da Aprosoja, Antonio Galvan, Sérgio Reis gabou-se ainda de ter sido remunerado e de haver almoçado com Bolsonaro antes das ameaças.

A impudica e imprudente pretensão golpista do capitão terrorista o inclui na condição de “aloprado”, definição usada por seu mais provável adversário no segundo turno da eleição presidencial de 2022, Lula, quando insultou correligionários que produziram relatório falso para evitar a vitória do senador José Serra ao governo de São Paulo. A pretensão do cantor esbarra em leis que proíbem o impedimento de abastecimento de alimentos e o congelamento de preços de derivados de petróleo. Como Jefferson, Reis e Eduardo Araújo encenam um caso de polícia corriqueiro, que nem exigiria a intervenção do STF ou do TSE.

Em entrevista ao Blog do Nêumanne, no portal do Estadão, o economista Paulo de Tarso Venceslau, o primeiro a denunciar corrupção do PT, observou: “Bolsonaro é um zero à esquerda e não depende de Deus para ficar, mas dos milicos”. E do povo. Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara dos Deputados, resumiu: “Presidente, chega! Chegou a hora de o senhor falar como vai enfrentar 15 milhões de desempregados, 19 milhões com fome, juros crescentes, inflação descontrolada na comida, energia e combustível. Chega dessa graça de criar problemas artificiais para um país cheio de problemas reais”. Basta, xô e tchau!

Brasil da 'Nova Política'

 


O drama afegão e a tragicomédia brasileira

Era noite de domingo. Redes de televisão de todo o mundo divulgavam imagens da chegada dos talibãs a Cabul. Vinte anos depois da invasão americana, lá estavam eles de novo, com suas barbas longas e suas metralhadoras penduradas nos ombros. Como se nada tivesse acontecido.

As telas estavam tomadas por comentários de especialistas e entrevistas com mulheres afegãs, que se preparavam para mais uma longa temporada sob pesadas vestimentas tradicionais e longe das escolas e dos locais de trabalho.

A marcha até Cabul havia sido muito mais rápida do que imaginavam as autoridades locais e os militares americanos, que empreendiam esforços de última hora para retirar do país seus aliados e estrangeiros que ainda estavam na cidade.

O presidente afegão, Ashraf Ghani, se foi, provavelmente a bordo de um helicóptero. Teve tempo de um breve comunicado: “eles venceram”. A partir daí, multidões correram para o aeroporto de Cabul, adivinhando o inferno que teriam de enfrentar se permanecessem no país.

As cenas dessas multidões também ganharam o mundo. Pessoas desesperadas se agarrando a aviões americanos, implorando um lugar a bordo. No palácio presidencial, os talibãs prometiam moderação. Quem terá acreditado?

Ao mesmo tempo que as emissoras de televisão mostravam cenas das tropas talibãs chegando à capital do Afeganistão, circulavam nas redes sociais brasileiras ameaças de invasão de outra capital, a 13.400 quilômetros de distância.


As ameaças vinham da voz de um cantor sertanejo, Sérgio Reis, e de atores coadjuvantes em um roteiro que se torna cada vez mais familiar aos brasileiros: a ameaça da tomada de Brasília por militantes bolsonaristas.

“O Brasil inteiro vai estar parado”, prometeu Reis, ao convocar caminhoneiros para uma grande manifestação na primeira semana de setembro. “Ninguém trafega, ninguém sai. Ônibus volta para trás com passageiros. Só vai passar Polícia Federal, ambulância, bombeiro e cargas perecíveis. Fora isso, ninguém anda no Brasil”.

As organizações representativas dos caminhoneiros se apressaram a negar participação em qualquer movimentação política. Mas é fácil lembrar o que ocorreu da última vez que eles fecharam as estradas. E a convocação de Reis circulou por todo o país.

E qual seria o objetivo da grande manifestação? Segundo mensagens que circularam por WhatsApp, os participantes do movimento exigiriam do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o impeachment de dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Caso contrário, Jair Bolsonaro partiria para a segunda etapa: o golpe.

De tão estapafúrdio, o roteiro não foi levado muito a sério. Mas tratando-se de quem se trata, de apoiadores de quem não esconde as simpatias por uma aventura política, é sempre prudente estar atento. Isolar Brasília seria o plano. E depois?

Dos talibãs já se sabe o que esperar. Um novo governo tão ou mais obscurantista que o de duas décadas atrás. Depois de vencer governos mantidos por tropas soviéticas e americanas, por que fariam diferente?

A mesma união entre uma interpretação belicosa dos textos islâmicos e a aplicação implacável de regras sociais – especialmente em relação às mulheres. Acompanhada, é claro, de uma postura isolacionista e autossuficiente na política internacional.

Os principais órgãos de imprensa ocidental já iniciaram um grande exercício de busca de culpados pelo retrocesso que se espera para o Afeganistão. O primeiro na linha de tiro é o presidente Joe Biden, a quem coube a decisão de retirar as tropas americanas do país.

Essa espécie de mea culpa ocidental tende a manter o tema nas manchetes pelo menos por algumas semanas. Além disso, a própria posição geográfica do país e as possíveis influências que um governo talibã pode vir a exercer na região motivam preocupações não só das potências ocidentais, mas também da China e da Rússia.

E dos nossos rebeldes bolsonaristas, o que se pode esperar? Eles não têm armas, como os talibãs, mas namoram quem as têm – as Forças Armadas e as polícias militares. Se o flerte será bem acolhido, ninguém se arrisca a dizer com certeza. As notas oficiais juram que não.

Eles também não iriam tão longe a ponto de decepar cabeças de rebeldes ou de proibir meninas e mulheres de estudar e trabalhar. As longas barbas tampouco lhes cairiam bem. Poderiam lembrar hippies contestadores das regras mais conservadoras.

O amor às armas, porém, é semelhante. A postura conservadora na pauta de costumes também. Assim como a tentação autoritária. As coreografias da campanha de 2018 já se inspiravam em movimentos de combate. O começo do atual mandato foi acompanhado pela propaganda ostensiva de uma intervenção militar.

As reivindicações mudaram, de certa forma, para permanecer as mesmas. A defesa do voto impresso, por exemplo, já foi programada para servir de argumento na hora de contestar resultados eleitorais negativos.

E a mais recente bandeira, o pedido de impeachment de dois ministros que ousaram enfrentar os delírios golpistas de simpatizantes do atual presidente, indica a intenção de elevar a temperatura do embate com o Poder Judiciário.

A marcha para Brasília, ameaça de um cantor e sonho dos rebeldes da direita tupiniquim, tem sido assim, cheia de avanços e recuos, como testes repetitivos da resistência à tentação autoritária. “Até onde irão?”, pergunta-se com frequência.

Provavelmente a lugar nenhum. O que se pode esperar com certeza é muito barulho. As ondas de protestos da extrema direita ainda vão assombrar o país por um bom tempo. E devem chamar a atenção da imprensa internacional. Mas deverão ter outro tratamento dos principais meios de comunicação globais.

A queda de Cabul entristeceu o mundo pelo anúncio de um novo tempo de retrocesso no Afeganistão. A planejada marcha para Brasília soará como mais um capítulo de uma tragicomédia cujo enredo tem como marca principal o isolamento internacional do Brasil.

Um miliciano na Presidência da República

Em vez de visitar hospitais e se solidarizar com as famílias vitimadas pela Covid-19, Jair Bolsonaro promove “motociatas”, gastando milhões de reais, que poderiam reforçar os minguados orçamentos das universidades federais.

É verdade que a parvoíce da presidente Dilma Rousseff e a corrupção do PT despertaram na sociedade um justo sentimento de repulsa. Contudo, não era previsível que militares saudosos das benesses da ditadura, com o apoio de certas elites de poucas letras, quisessem ver o país nas mãos de generais linhas-duras.

No entanto, instintivamente, o capitão Bolsonaro previu isto, empunhou a bandeira do combate à corrupção e ousou candidatar-se — logo ele, que foi expulso do Exército como tenente terrorista e passou 27 anos como deputado no baixo clero, envolvendo-se no fenômeno das “rachadinhas” (peculato), comprando imóveis em dinheiro vivo, injuriando colegas deputadas, elogiando torturadores e propondo aumentos salariais para cativar militares.

Começou então a campanha e veio a facada em Juiz de Fora (MG), que comoveu o país e o livrou dos debates e da comparação com candidatos decentes. E ele acabou sendo eleito.


Na época, desconhecia-se a sua folha corrida, e poucos sabiam de suas fortes ligações com as milícias cariocas. Não era, pois, de se esperar que aquele capitão conhecesse figuras qualificadas para formar um ministério. O que ele conseguiu foi congregar uma caterva que ia do obtuso Ernesto Araújo ao bonifrate Eduardo Pazuello, passando por mediocridades como Bento Albuquerque, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro, Damares Alves e Fábio Faria.

Não vamos esquecer do falaz Paulo Guedes, com sua voracidade por estatais lucrativas e fundos de pensão de funcionários públicos, e o escroque Ricardo Salles, acusado de enriquecimento ilícito e cumplicidade com os criminosos que estão devastando a Amazônia.

Agora, Bolsonaro está com medo da CPI da Covid e fará tudo para se agarrar ao governo, a fim de escapar da Justiça criminal.

Assim, quer transformar uma instituição de Estado, o Exército, em “seu Exército”, ou milícia particular. Para isso, colocou no Ministério da Defesa o general Braga Netto, que já em sua posse rinchou em tom de ameaça que “é preciso respeitar o ‘projeto’ escolhido pela maioria” — ​e depois relinchou que “sem voto impresso, não haverá eleição em 2022”.

Cabe perguntar se esse governo tem algum projeto, e se tal projeto inclui a subversão nas Forças Armadas, a morte de 600 mil brasileiros por Covid-19, a devastação da Amazônia e um “orçamento secreto” pior do que o mensalão do PT.

É patente que Bolsonaro aparelhou as instituições para se blindar e proteger seus filhos ladravazes, chamados por ele de 01, 02, 03 e 04. Foi para isso que interferiu na Polícia Federal, transferiu o Coaf do Ministério da Justiça para o Banco Central e rompeu com a tradição da lista tríplice, nomeando —e reconduzindo— o capacho Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República.

Completando a razia nas instituições, ele nomeou o fâmulo Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal e escolheu o pastor André Mendonça para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que acaba de se aposentar. Não precisou ter notório saber jurídico. Bastou ser “terrivelmente evangélico” e mostrar disposição para anular as irrefutáveis provas contra o ladrão 01, no escândalo das “rachadinhas”.

Até os militares já percebem que o capitão é inepto, mendaz, corrupto e perigoso.

É urgente que o Congresso aprove ao menos um dos mais de cem pedidos de impeachment deste celerado, antes que ele acabe com o que resta do Estado democrático de Direito.

O problema é que o Congresso é majoritariamente composto por biltres iguais a Bolsonaro, a começar pelo réu que preside a Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que comandou um milionário esquema de “rachadinhas” em Alagoas.

E nem falemos dos líderes do governo na Câmara e no Senado, respectivamente Fernando Bezerra (MDB-PE) e Ricardo Barros (PP-PR), acusados de receberem subornos quando foram ministros, respectivamente, de Dilma e Michel Temer (MDB).

Como esses velhacos não honram os seus mandatos, só nos resta esperar que o escândalo da Covaxin derrube o presidente-miliciano.

A Igreja do Diabo

O Malafaia, aquele que conversa quase sempre com o Bozo, em lugar de oferecer o ombro, poderia presenteá-lo com “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, lançado em 1884.

Numa daquelas noites tristes, o pastor leria a história para o amigo.

Seria um regalo inesperado. Algo assim como o Carluxo com tatuagem do Chico Buarque no torso.

Bozo, por certo, não tem a menor ideia de quem seja Machado de Assis. Mas, certeza, sabe tudo do Diabo, e vice-versa: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”.

Machado antecipou em anos a bozofrenia brasileira. A baixa produtividade (“-5% + 4% = 9%”), o oportunista religioso e ainda a desumanidade popularizada a partir do curralzinho, sempre contrária à solidariedade humana: “Com efeito, o amor do próximo é um obstáculo grave (...), uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se deve dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo”.

(Antes de prosseguir na história, vale lembrar que Machado de Assis casou-se apenas uma vez — com dona Carolina, por 35 anos —, era católico praticante, mas sarcástico com os costumes da religião, profundo conhecedor das malandragens do brasileiro e conservador na política. Quando morreu, em 1908, seu féretro foi seguido nas ruas do Rio por milhares de pessoas. Ah, nunca foi comunista!).

Dito isso, observações feitas, sigamos.


No conto de Machado, um dia, o Diabo tem a desatinada ideia de fundar uma igreja. Quer acabar com as outras religiões. Era rico, tinha lucros contínuos, mas sente-se avulso por não possuir regras, rituais, tampouco cânones. Vivia dos “descuidos e obséquios humanos”. Um pária. Sobe ao céu e comunica a Deus seu intento. Desalentado, o pobre Senhor o expulsa novamente e antevê um fracasso. Ao voltar à terra, atuando no mesmo ramo do Malafaia, proclama a seus seguidores:

— Sim, sou o Diabo; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos… Vede-me gentil e airoso… Sou o vosso verdadeiro pai.

Em seguida, detalha sua doutrina. A soberba, a luxúria e a preguiça são reabilitadas. Também a avareza, a gula e a ira. A inveja torna-se virtude principal. O pregador, em sua Igreja, atordoa a turba, incitando-a a “amar as coisas perversas e detestar as sãs”.

A plateia de sua motociata ulula. Sentem- se livres para a prática do racismo, da homofobia e a mentira contumaz. Também para a compra de vacinas.

Para não deixar seus ouvintes do Centrão receosos, fornecendo-lhes espécie de álibi satânico, o Diabo define o que entende ser fraude, com uma alegoria: “é o braço esquerdo do homem; o braço direito é a força”. E conclui: “Muitos homens são canhotos, eis tudo”.

Em seguida, forjou seu mais ousado conceito: perorou sobre a venalidade, abraçando-a, para aplausos do aplastado Arthur Lira.

— Se tu podes vender a tua casa, o teu boi… como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, a tua própria consciência?

É possível vislumbrar os olhos bacentos do Bozo ouvindo a voz esgalgada de Malafaia, ao lado de uma margarina aberta sobre a mesa da cozinha. Ele pensa em Ricardo Barros; espanta o odor sacudindo a cabeça. O silêncio é total, tanto que se ouvem os perdigotos presidenciais caindo ao chão.

A leitura prossegue.

O empreendimento religioso é um sucesso. A doutrina se espalha pelo planeta. Contamina o Judiciário, as Forças Armadas, os partidos de oposição. Aécio Neves pede uma audiência noturna. O Diabo já sabe a conta.

Mas…

Crédulo e cego em sua soberba, o anjo caído escorrega da moto. Embalado por sua popularidade, ensurdecido pela quantidade de aplausos no curralzinho e pelo ronco das motocicletas, o pobre Diabo descobre estar sendo traído.

Às suas costas, às escondidas, seus fiéis voltam a praticar as antigas virtudes. Algo como as redes bozofrênicas em busca de redenção. “Dilapidadores do Erário restituem pequenas quantias”.

O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia, sentencia Machado. Deus sorriu.

Ainda é possível vislumbrar o espanto do Bozo ao final da leitura. Percebe que até o Diabo se dá mal. Antes de chupar um dente, busca uma saída:

— Malafaia, que história triste… Me dá aqui que vou colorir.

Brasil está à beira de um ataque de nervos

Motivos não faltam. Vivemos num País fora do eixo. O que já era execrável, tornou-se repulsivo. Primeiro, com a eleição do Capitão do mato. Depois, com a pandemia. Tratada com molecagem pelo governo, a peste empurrou sua população para trás, fez o desemprego desembestar, e a fome voltar às manchetes.

Já em 2017, pesquisa da Organização Mundial da Saúde mostrou que 9,3% dos brasileiros tinham graves transtornos de ansiedade. Em 2020, 41% da população relatou sintomas sintomas de ansiedade, insônia e depressão, diz pesquisa do Instituto Ipsos, encomendada pelo Forum Econômico Mundial.

Um País sem noção de presente ou de futuro. Nem de passado. Avanços econômicos e sociais, conquistados a duras penas, nas ultimas duas décadas, retrocederam. No roteiro de derrotas de Bolsonaro, universidade deve ser para poucos, nossa memória arderá em chamas, o meio-ambiente continuará entregue aos abutres, e a saúde às negociatas.


Está puxado ser brasileiro. Todos os dias, nosso equilíbrio emocional é posto à prova pelo infame que ocupa a Presidência da Republica. Agora, ameaça destituir ministros do Supremo Tribunal Federal. E convoca um contingente “absurdamente gigante” contra a democracia.

Bolsonaro não é louco. É desumano, frio, tirânico. Perturbados estamos ficando nós. Adoecendo. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP alertam que a ansiedade desencadeia outras doenças crônicas, sérias. Doenças respiratórias e cardiovasculares, artrite e diabetes.

Vamos resistir, Capitão. Nosso destino é acabar com seu reinado, espirito de porco, dentro das 4 linhas da Constituição. Em 2022. Até lá, continuará a nos matar de vergonha – e de Covid – mundo afora. Bizarro, negou o racismo no Brasil. Insolente, negou o Holocausto. Cínico, disse a enviados de Joe Biden que as eleições americanas foram fraudadas.

Semana passada, foi chamado de “figura de república de bananas” pelo jornal inglês The Guardian, ao exibir o patético desfile militar com o descarado propósito de intimidar o Parlamento.

Foi ao clímax da desonra alheia no almoço oferecido ao elegante presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, e sua comitiva, no dia 02 ultimo. O colunista Lauro Jardim contou que, ao estilo “tiozão”, o inominável fez Sousa perder um tempo precioso ouvindo piadas de cunho sexual. Impertinente, grosseiro, Bolsonaro constrangeu com vontade os comensais.

Que vergonha, Jair.

PS: Sérgio Reis entrou em depressão com o inquérito policial que sofrerá por ameaçar invadir o Congresso. No dia 7 de setembro, o gado pode se juntar sem o berrante de Reis.