domingo, 2 de julho de 2017

Resultado de imagem para brasil encalhado charge

Conversa num barco encalhado

Na semana passada nosso barco encalhou perto da Baía dos Pinheiros, no litoral sul do Paraná. A maré baixou rápido e ficamos mais ou menos perdidos: só tínhamos as coordenadas e um rádio. Não havia o que fazer, exceto esperar a maré subir. Alguém me provocou: nosso barco está encalhado como o país.

Nessas horas de espera a gente alonga a conversa. Disse que de uma certa forma só voltaríamos a flutuar quando viessem as eleições de 2018. Até lá estaremos encalhados de uma forma diferente do pequeno barco colado na lama do fundo do mar. Haveria muita turbulência e, como estamos no final de uma grande investigação, muitas situações repetidas.

A de Temer, por exemplo, afirmando que não há provas, dizendo-se vítima de uma perseguição. Quem não ouviu essa fala em outros atores da grande série político-policial?

Embora às vezes a gente se sinta perdido na complexidade da crise brasileira, é possível achar um rumo. Ele passará pela sociedade e pelo Congresso. Vamos entrar num período eleitoral, e a sociedade costuma ter mais peso nessas épocas. O Congresso torna-se mais sensível às pressões populares. De memória, lembro-me apenas de uma grande exceção: a derrota na emenda Dante de Oliveira.

Resultado de imagem para brasil encalhado charge

Enquanto o barco não sai do lugar, movido pelos ventos da legitimidade, há muito o que fazer na espera. Num barco, temos de distribuir as bananas, agasalhar a garganta do sudeste frio que sopra no litoral. Num país é preciso saber o que se quer enquanto estamos à espera de voltar a navegar. Fora Temer, ou fica Temer.

A Câmara terá que decidir isto. Mas não o fará sozinha. Se a pressão social a levar a aceitar a denúncia contra Temer, é o fim para ele. Só restará, depois de visitar a União Soviética, passar umas férias no Império Austro-Húngaro.

Começaria aí uma nova etapa, a escolha do novo presidente. É preciso algumas precauções básicas, pois não é possível derrubar presidentes com tanta frequência.

Entregue a si próprio, o Congresso tende a escolher alguém que o proteja da Lava-Jato. Mas não existe mais possibilidade de tomar as decisões nas madrugadas. Uma vigilância social pode conter os passos do escolhido para a transição.

O que se espera de um presidente de país encalhado é principalmente tocar a administração. Quando a maré subir, com eleitos no poder, tomam-se as grandes decisões.

Alguém me lembra que isso é não é uma situação sonhada. Mas a que a realidade nos coloca. Mesmo as eleições de 2018, embora tragam mais legitimidade aos eleitos, não devem ser vistas na categoria de sonho, mas sim de uma oportunidade, depois de tudo o que pessoas viram e ouviram sobre o sistema político partidário.

Na rua ouvem-se muito os nomes de Lula e Bolsonaro. Potencialmente pode surgir uma força de equilíbrio que suplante as duas. Não creio que aconteça o mesmo que aconteceu na França, onde houve uma ampla renovação, da presidência ao Congresso.

Mas alguma coisa vai acontecer. Enquanto a maré não sobe, há muito o que fazer no barco encalhado. É preciso que o essencial funcione.

No momento em que escrevo ouço os helicópteros da PM sobrevoando o morro. Uma dezena de tiroteios por dia, uma onda de roubos de carga, imagens de crianças deitadas no chão da escola enquanto os tiros ecoam.

Temer chegou a anunciar um plano de segurança para o Rio. Era pura agenda positiva, esse tipo de ação que fazem quando a barra está muito pesada e é preciso mudar de assunto. A dimensão da crise no cotidiano, a existência de 14 milhões de desempregados, esse pano de fundo inquietante torna a tarefa mais difícil. Quando governantes já caídos se apegam ao poder, na verdade colocam seu destino acima do destino nacional. Os reflexos na economia são sempre negativos.

Encalhamos um pouco mais.

A compreensão do momento vai exigir da sociedade evitar que o barco encalhado torne-se um barco naufragado. Será preciso um amplo entendimento entre todos que reconhecem a gravidade da crise, para que cheguemos em condições razoáveis em 2018.

Esta semana faltaram passaportes na Polícia Federal. É um sintoma. Se não houver o mínimo de energia na administração, daqui a pouco não faltarão apenas passaportes mas as próprias saídas.

Não é nada agradável se desfazer de dois presidentes num curto espaço de tempo. Mas o roteiro, de uma certa forma, estava escrito. Retirado o PT do governo, restaram em seu lugar os companheiros de uma viagem suja pelos cofres públicos brasileiros.

A investigação chegou a eles e à própria oposição. Não importa qual o desfecho jurídico desse imenso esforço, ele serviu para desvendar para a sociedade um gigantesco esquema de corrupção e um decadente sistema político partidário.

Daí pra frente a bola está com a sociedade.

Fernando Gabeira

Gente fora do mapa

deserto saara - Pesquisa Google
Saara

Trocar ética pelas reformas equivale à atualização do antigo rouba, mas faz

Ao final de uma semana em que entrou para a história como o primeiro presidente a ser denunciado por corrupção em pleno exercício do mandato, Michel Temer veiculou na internet um vídeo sugestivo. Nele, autocongratulou-se pela melhoria dos indicadores econômicos. E insinuou que as investigações anti-corrupção constituem uma conspiração impatriótica para frear o avanço nacional.

O presidente arrematou sua mensagem assim: “…Com o aumento do investimento, com a aceleração do consumo e as ações que estão reduzindo a taxa de juros, logo, logo teremos a volta definitiva do crescimento e do emprego. O Brasil está caminhando, apesar de alguns pretenderem parar nosso país. Não conseguirão!''


Noutros tempos, o político que explicitamente roubava, mas fazia, reinvindicava para si uma certa imunidade ética. Era como se sua obra justificasse seus pecados, quando não era uma decorrência natural deles. A eterna tolerância com esse fenômeno do roubamasfazismo desaguou na Lava Jato. Súbito, o país ficou sabendo que a JBS tricotava seus interesses empresariais no escurinho do palácio residencial. Ou que a Odebrecht mantinha em seu organograma um departamento encarregado de comprar políticos com verbas roubadas do Estado.

Rodeado de auxiliares e apoiadores investigados por suspeita de corrupção, Michel Temer declara-se portador de uma biografia impecável. Sustenta que a denúncia da Procuradoria-Geral da República, por “trôpega”, não passa de uma peça de “ficção” jurídica. O presidente dispõe de uma maneira simples e eficaz de restaurar a sua honra. Basta exigir que o Supremo Tribunal Federal exerça a sua atribuição constitucional de julgar a denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot.

Entretanto, Temer prefere testar os limites da paciência do brasileiro, ressuscitando a tese segundo a qual as supostas realizações de um governante perdoam todos os seus meios. No momento, alheio à fome de limpeza que paira no ar, o sistema de conivências e cumplicidades que une os poderes Executivo e Legislativo articula o sepultamento da denúncia contra o presidente no plenário da Câmara.

Servindo-se da matéria-prima que Temer lhe forneceu ao receber o empresário Joesley Batista, o procurador-geral grudou na biografia limpinha do presidente a figura de Rodrigo Rocha Loures. Na conversa vadia que manteve com o inquilino do Jaburu, o delator pediu ao anfitrião que indicasse um interlocutor para tratar dos interesses de sua empresa no governo. E Temer indicou o homem da mala —filmado depois recebendo propina de R$ 500 mil.

Imprenssado pelas evidências, Temer alegou ter indicado Rocha Loures apenas para se livrar de Joesley, um “notório bandido”. Curiosamente, definiu o assessor da mala como um homem “de boa índole, de muito boa índole.” E entoou para a bancada apodrecida da Câmara um velho lema mosqueteiro: ‘Um por todos, todos por hummm…” Pediu aos deputados que deixem tudo pra lá em nome da cumplicidade e da preservação das reformas.

De costas para a sociedade brasileira, que lhe atribui uma taxa de aprovação de 7%, a mais baixa desde José Sarney, o presidente ignora o saco cheio nacional. E oferece cargos e verbas aos deputados em troca da suspensão tácita de todos pudores morais. Num instante em que muitos chegaram a imaginar que a Lava Jato representaria um marco civilizatório, Temer e seus aliados cutucam a plateia com o pé pra ver se ela morde.

Décadas de depravação impregnaram no sistema político brasileiro um fascínio antroplógico pela cleptocracia. É como se o modelo político baseaedo no quanto eu levo nisso? roçasse os seus limites, rompesse escandalosamente esses limites e buscasse no passado a sobrevivência ou a transformação dos seus valores mais tradicionais depois do rompimento. A essa altura dos acontecimentos, a pretendida troca dos valores éticos pelas reformas econômicas equivale à atualização do velho e bom ‘rouba, mas faz’. O Brasil merece outro destino. Não é mais tolerável condicionar reformas à sobrevivência de um governo que merece ser reformado.

Fábrica de dádivas

Entre os diversos prodígios do mundo em que nos coube viver neste começo de século 21, ganha destaque cada vez maior a multiplicação geométrica dos especialistas em criar direitos sem criar deveres — ou sem perguntar se há meios objetivos para fazer valer tais direitos, qual é seu custo e outros detalhes incômodos. Nunca dá certo. Direitos em abstrato, como deveria estar bem claro já há muito tempo, não são nada; só existem se puderem ser assegurados no plano das realidades.

Mas esse tipo de consideração tem peso nulo para os que operam as fábricas de produzir dádivas, quase sempre com dinheiro público. Os burocratas sociais, presentes nas máquinas dos governos e nas organizações internacionais, não querem saber qual será o resultado prático de suas decisões — o que querem é se colocar na função de vigilantes do bem geral, imaginando, ou fingindo imaginar, que é possível fornecer felicidade por meio da redação de atos administrativos. O resultado, sobretudo em países subdesenvolvidos como o Brasil, é que temos, cada vez mais, direitos que nascem mortos; só sobrevivem nas declarações ou nas leis que os criaram. São apenas uma folha de papel ou um arquivo digital — nada mais.

A produção de direitos chegou a tal nível de desenvolvimento e velocidade que as pessoas, hoje em dia, nem sabem mais a quantidade de benefícios que têm. Os países da Comunidade Econômica Europeia, por exemplo, criaram ainda há pouco um “Pilar de Direitos Sociais” que estabelece não menos que 20 novos princípios e direitos a ser desfrutados por seus cidadãos. Além de declarar que as regras de proteção que já existem não podem ser modificadas, por fazer parte do conjunto de “direitos adquiridos”, o documento se propõe a estabelecer as bases para a criação de uma “economia social de mercado” na Europa — combinação de palavras que promete ir longe.

Resultado de imagem para direitos e deveres charge

Com essa intenção, ficou estabelecido, entre outros portentos, que os jovens passam a ter o direito oficial de não sofrer privações. Os desempregados, pelo mesmo código, terão direito a atendimento pessoal por parte das repartições públicas encarregadas de encontrar um emprego para eles — atendimento “sob medida”, como está escrito no texto. Quem não dispõe de condições para ser admitido numa empresa moderna, ligada à “economia do conhecimento”, ganha o direito a cursos individuais de aprendizado em ciências tecnológicas.

Há direitos específicos a moradias confortáveis, de dimensões adequadas e com localização em espaços urbanos desejáveis. Chegou-se a pensar num salário mínimo igual para todos os países da CEE, equivalente a 60% do salário médio da Europa — e por aí vamos.

O Brasil, justamente neste momento, está vivendo numa atmosfera de exaltação fervorosa de direitos, incluindo os que não existem na prática ou não podem ser desfrutados pelos cidadãos. Nenhum deles desperta tanta veneração quanto o conjunto de “direitos trabalhistas” — inclusive o direito sagrado de pagar o imposto sindical, uma coisa realmente extraordinária em matéria de vigarice mental ao apresentar como benefício o que é apenas uma extorsão de dinheiro em benefício dos proprietários dos sindicatos brasileiros.

Quem sabe, então, transformar o imposto sindical num tributo de pagamento voluntário, como sugere timidamente a reforma trabalhista ora em debate? Nem pensar. Imexível. Crime contra a humanidade. Os comandantes da contrarreforma, na linha da Igreja Católica depois de Lutero, tratam como heresia qualquer mudança na legislação atual — e encontram apoio nas pesquisas de opinião, nas quais os que são “contra a reforma trabalhista do governo” já se aproximam dos 100%.

A pergunta que lhes fazem, no fundo, é se são a favor ou contra a eliminação de seus direitos. Que resposta alguém pode dar a uma indagação dessas? Não se menciona, jamais, que há 14 milhões de desempregados que hoje não podem exercer seus direitos trabalhistas por ser trabalhadores sem trabalho. O que vale é gritar mais alto.

Agonia

Chegou-se a um ponto de criticidade que parece improvável o governo de Michel Temer sobreviver. Resistir à queda é possível, mas o custo da resistência se tornará inviável e manterá o país na UTI.

Pesa neste momento o isolamento dele em relação à opinião pública. Bate nele o maior índice de desaprovação da história republicana.

Como uma orquestra que enfrenta o ruído de uma locomotiva e não consegue expressar sua sinfonia, da mesma forma o governo de Temer vive sob os gritos de protestos da multidão e não consegue coordenar seus esforços. Os ministros transitam acochados, desacreditados, e deixam de ser engrenagens que movimentam a máquina da União.

Quanto mais abalado e encurralado um governo, mais cede aos vícios do Legislativo. O momento mais propício para os piores elevarem sua importância.


É claro que o poder constitucionalmente exuberante e inconteste ofusca o pensamento do empossado e o faz resistir além do que seria aconselhável e oportuno para o funcionamento de um governo. Decorrente desse excesso, assistimos nas últimas décadas a demoradas e sôfregas resistências, de Fernando Collor de Mello e de Dilma Rousseff. Caíram Getúlio Vargas, João Goulart, Jânio Quadros. A Presidência da República no Brasil se notabilizou como perecível quase descartável.

Um vice, ao contrário de um titular ungido pelas urnas, assume desautorizado, e não lhe é dado assim muito tempo para mostrar serviço. Deve conquistar a “autoridade presidencial” com ações imediatas de estadistas. O governo do vice precisa de um consenso maior, de realizar mais em menos tempo e com maior eficiência.

Temer, apesar de sua longa experiência, não entendeu o recado da história. Cercou-se de “amigos”, com currículo tremendamente esgarçado, no lugar de figuras competentes, acima de qualquer suspeita e crítica. Mais que uma equipe, convocou uma confraria, que o apoiou no processo de cassação de Dilma. E sempre se soube que quem é bom numa atividade não o é em outra que requeira excelsa competência. Usou apenas critérios políticos, e não técnicos. Em poucos meses viu tombar um atrás do outro os baluartes de sua fortaleza. Pior, em situação vexaminosa.

Deixou cair o desemprego e as atividades econômicas numa profundidade desesperadora.

Não vislumbrou medidas de desenvolvimento, de crescimento. Não chamou para si os setores produtivos e não se deu o trabalho de envolvê-los com seu governo. Não se apercebeu de que, enquanto a economia real estiver sangrando, continuará sendo o país fraco e problemático que já é. Enquanto quem trabalha precisa pedir permissão a quem não entende seu esforço e não sente seu desespero, não haverá solução. O Brasil é uma ditadura cleptocrática nas mãos de insaciáveis especuladores.

Ficou inerte a recessão, permitiu que se continuasse e se acentuasse o sofrimento social, que se ampliasse a miserabilidade no país. Assistiu anestesiado ao crescimento de 3 milhões de desempregados, não se solidarizou com o sufoco, não explicou suas ações. Rendeu-se à fórmula econômica ortodoxa, monetarista.

Meirelles não é um homem de “fábrica”, é, essencialmente, banqueiro (ainda trabalhou para a JBS, fazendo dela a maior tomadora de empréstimos do BNDES e dos bancos oficiais). Suas retinas enxergaram a vida toda o mundo como um fator tendencialmente monetarista e de lucros provenientes da especulação.

Isso não se coaduna com a estreiteza, a fragilidade e o curto raio de manobra de um presidente que entrou no Planalto pelos fundos.

As soluções adotadas para enfrentar a crise foram e são claudicantes, tardaram para chegar aos setores produtivos e a gerar efeitos positivos na vida da nação. Dificilmente daria outro resultado com um banqueiro forjado na especulação sem compromisso com o emprego e a riqueza nacional.

Temer se esqueceu da fórmula adotada por Itamar Franco ao suceder Fernando Collor. Agora parece ter perdido todas as fichas que a sorte lhe ofereceu para se legitimar e justificar a faixa que lhe caiu nos ombros.

Paisagem brasileira

Mauro Ferreira,Bondinho do Corcovado,46 x 75 cm – OST,Ass. CIE e Dat. 2006
Bondinho do Corcovado, Mauro Ferreira

A democracia ameaçada?

O grande pensador Norberto Bobbio publicou, em Torino, “alguns escritos dos últimos anos sobre as chamadas ‘transformações’ da democracia (...) Prefiro falar em transformação, e não de crise, porque ‘crise’ nos faz pensar num colapso iminente. A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo” (O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo; Ed, Paz e Terra, 1986).

No livro Sobre a Tirania, (2017, Companhia das Letras), o historiador Timothy Snyder, pesquisador profundo das atrocidades cometidas pela Alemanha Nazista, a União Soviética e, sob o impacto da eleição de Trump, alerta: “É preciso se preparar agora para a possibilidade de um colapso quanto o ocorrido nos anos 1920, 1930 e 1940”.

Na mesma linha de preocupaçāo com os riscos que correm as democracias, estão Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Harvard), co-autores do livro "Como morrem as democracias", a ser lançado no próximo ano.

Resultado de imagem para democracia ameaçada

Somente o tempo insondável do futuro dará razão a tão notáveis intérpretes da cena política. A prudência aconselha a não submeter as singularidades locais à uniformidade de “ondas” globais. Preventivamente, o ponto de partida é admitir que a democracia é uma ideia antiga, mas uma experiência recente que, segundo Huntington, sobreviveu às “ondas reversas”.

Por sua vez, Snyder registra que o avanço totalitário se dá pelo voto e obedece à lógica de que “na política, todos passaram a ser vistos como suspeitos” e, em sociedades assim, não percebemos o perigo de que “quem tem o melhor controle do palco tende a alcançar o poder”. Fatos, verdades e tolerância dialética não contam.

Transpondo para o caso brasileiro estes marcos analíticos, é fundamental atentar para a precisa constatação feita pelo cientista político Antonio Lavareda sobre o tamanho do mercado “supostamente não democrático no Brasil de hoje”. Ele toma como indicativo a pesquisa do instituto Latinobarômetro (2016), na qual, apenas, 32% dos brasileiros preferem a democracia como forma de governo, à frente da Guatemala e abaixo da média continental em que 54% dos povos preferem a democracia.

Considerando que o radicalismo à direita, interpretado por Bolsonaro, tem um potencial de cerca de 20% do eleitorado e o lulopetismo, um piso cativo em torno de 30%, cabe indagar: onde fica o centro democrático ocupado por uma esquerda contemporânea e liberais esclarecidos? Submersos na crise de representatividade e salpicados de lama?

Nada de previsão. No Brasil de hoje, o futuro foi ontem. Não custa, porém, ler as 20 vacinas ao autoritarismo, propostas por Snyder.

Fora os fora da lei

Os elogios causaram estranheza e eram desnecessários. Mas, goste-se ou não, o ministro Marco Aurélio de Mello acertou ao devolver o mandato ao senador Aécio Neves, suspenso pelo ministro Edson Fachin desde 18 de maio. O tucano, flagrado pedindo dinheiro ao delator Joesley Batista, pode até ter culpa no cartório, mas suspeição não é critério (ou não deveria ser) para interromper um mandato popular, seja de quem for. Quanto mais quando um único juiz decide fazê-lo.

Mais de três dezenas de senadores são alvos de investigação no Supremo. Só Renan Calheiros (PMDB-AL) tem 12 delas nas costas. O ex-líder do PMDB, que ao ver o presidente Michel Temer abatido migrou para a oposição, exemplifica bem os pesos e medidas do STF. Acusado de peculato, virou réu em dezembro do ano passado e não foi suspenso, continua a exercer seu mandato. É o que a lei prevê até ser julgado e ter a sua sentença proferida.

Diante do gigantismo da bandidagem, os bilhões afanados e a cada vez mais sofisticada rede do crime de corrupção, a descrença popular nos políticos é compreensível. Para muitos, a melhor solução é linchar todos, jogar na cadeia os 32 senadores investigados e a outra centena de deputados. Prender o presidente Temer e seus auxiliares. Justiçar em vez de fazer Justiça.

Charge O Tempo 02/07/2017

Apedrejar sem investigar remete a práticas da Idade Média, que só perseveram entre uma minoria fundamentalista do Islã. Mas, de certa forma, é o que tem sido feito por aqui. Delação virou prova, vazamentos determinam as sentenças populares, na maior parte das vezes tecida por torcida, ignorância, má-fé ou tudo isso.

Tem-se uma briga de facções, todas arremessando pedras, usando a suspeita ou a investigação de crimes ainda não comprovados para destruir seus oponentes. E o fazem sem medir consequências – todas elas danosas à democracia e ao Estado de Direito.

Para proteger o ex Lula, também enrolado em cinco processos, um deles perto de ser finalizado na primeira instância, os que apedrejam Temer o fazem sob o mesmo argumento que o presidente tem usado contra a Procuradoria-Geral da República (PGR): a perseguição. E os que querem ver Lula na cadeia possivelmente amargarão a frustração de o ex ser condenado por Sérgio Moro, mas continuar em liberdade. Não por bondade do juiz de Curitiba, mas por ser réu primário. É a lei.

Lula fora da cadeia causará tanta indignação e descrença na Justiça quanto a soltura de Aécio ou a possível – e até previsível – decisão da Câmara de Deputados de não autorizar que o processo contra Temer ande.

Se isso ocorrer, vão proliferar as teorias de um grande acordo para livrar todos, algo almejadíssimo, mas quase ficcional.

Um acordão é desejo de 10 em cada 10 investigados. Frequenta jantares de Brasília. Mas amarga a mais doce das sobremesas quando os convivas se confrontam com a imensa impopularidade de uma eventual anistia.

Há ainda os que se consideram senhores da concertação e se arvoram a falar em nome da salvação nacional – que não deixa de ser um acordo, visto que à margem da lei.

Gente do porte do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que recentemente passou a só ver saída com eleições gerais, tese que atraiu apoio de Lula e Renan, e outros tucanos de alta plumagem, que pregam parlamentarismo-já, rejeitado em plebiscito há pouco mais de uma década.

Gente que teria responsabilidade de apregoar a Constituição e que escolhe fazer pouco dela. Gente que deveria saber que é na crise que se revela o valor da Carta. Que mudá-la açodadamente é permitir que ela se mova de acordo com a força do vento – diga-se, de um aventureiro qualquer.

Não deveria existir condenação sem investigação e prova -- ainda que imaterial, já que corruptos não passam recibo. Não deveria existir alternativa fora da lei, muito menos fora da Constituição. Pior: quando a sensação geral é a de que há mais bandidos do que mocinhos, qualquer um acha que pode encarnar o xerife.

Escadas para os indivíduos ou caminhos para o país

Houve um tempo em que os políticos debatiam qual o melhor caminho para o progresso. Hoje, discute-se como o Brasil pode oferecer escadas mais fáceis para permitir ascensão social aos grupos com poder de pressão no uso dos recursos públicos. Procura-se beneficiar indivíduos, não o país. A discussão sobre as reformas, trabalhista e previdenciária, é exemplo desse desvio da estratégia do “caminho” para a estratégia da “escada”.

Cada grupo estuda e defende suas posições, favoráveis ou contrárias às reformas, não em função de qual será o melhor caminho para desamarrar o Brasil e permitir caminhar para o aumento de nossa eficiência, produtividade, justiça, independência, sustentabilidade, incentivo aos jovens, proteção aos velhos, pobres e doentes; mas em função de como evitar perdas para seu grupo, ou para conseguir aumentar seus benefícios ou seus votos. Buscam-se escadas para indivíduos, não caminhos para o conjunto do país.

Resultado de imagem para escadas para eleição charge

Este não é um fenômeno novo. Em reação aos anos de chumbo da ditadura, durante a elaboração da Constituição, decretaram-se mais direitos do que deveres. Desde a luta pela democracia que buscava definir os rumos para o país, o debate político perdeu a discussão de quais os melhores caminhos para todos os brasileiros e se concentra até hoje, com exceções, em quais são as escadas para servir a cada grupo e cada indivíduo.

Até mesmo boas políticas para corrigir injustiças têm sido definidas mais para atender interesses de grupos do que para formar compromissos com o país: preferimos o uso de cotas para ingresso na universidade ao caminho mais ambicioso de assegurar a educação de base com a mesma qualidade para brancos e negros, pobres e ricos. Contentamo-nos com um programa justo de assistência por meio de transferência de renda para cada família pobre no lugar de uma estratégia ousada para fazer a emancipação da população pobre e ninguém precisar de bolsas. O Ciência sem Fronteiras foi mais orientado para beneficiar jovens do que para construir um potente sistema de ciência e tecnologia a serviço de todo o país e seu futuro.

A operação Lava Jato e a Lei da Ficha Limpa têm a grande vantagem de tirar escadas para a eleição de políticos corruptos, mas não vão construir o caminho para a escolha de políticos honestos. Felizmente, já temos o sistema judiciário que prende corruptos, mas ainda não formamos uma massa de eleitores capazes de eleger políticos honestos.

O Brasil precisa sair da discussão de escadas que atendem interesses de grupos e fazer o debate sobre quais são os melhores caminhos para o futuro desejado. Mas isso é difícil porque, no lugar de buscar construir uma coesão nacional, preferimos continuar a política de atender corporações, sindicatos, associações, grupos. Não percebemos que essa falta de coesão é a principal causa de nossos problemas e frustrações: porque, sem coesão política e social, não vamos definir um rumo para o conjunto de nosso povo e nossa nação.

Imagem do Dia

Canterbury, Kent, England.
Canterbury (Inglaterra)

Nas redes sociais, os filhos da Imprensa Marrom

Imagem relacionada
O progresso nunca vem só. Antes era a imprensa marrom maculando a comunicação. Mas seu alcance era limitado. De repente as redes sociais invadiram a vida do cidadão. É preciso resistir para não sermos absorvidos por elas. Cada um se sente no direito de ser o jornal de si mesmo. E vai escrevendo, publicando, dando sua opinião a torto e a direito, sem controle e sem critério. Quem diz o que quer ouve o que não quer. Daí esta infinidade de jornais e jornalecos borbulhando online.

Não consultam fontes, não vão as enciclopédias, não leem, não estudam, não pesquisam. Acham que o que pensam tem que ser ouvido e aceito pelos outros. É o império da verborreia. Resultado, as escolas foram invadidas por professores sem aulas.

Depois queixam-se de que o nível de ensino caiu muito. Não caiu, desabou. A consequência disso na política, então, é devastadora e aparecem líderes, falsos líderes, liderecos que o povo ouve e começa a seguir. É o exemplo típico de Lula que se vangloria de não ter estudado, não estudar e não gostar de quem estudou. É o país das jararacas, só servem para morder e envenenar. A consequência disso é uma distorção total da vida pública.

Em Salvador, o advogado Antonio Pessoa Cardoso, diante da “delação premiada” de Joesley Batista, foi certeiro:

– “Não se pode aceitar como delator criminoso confesso que obtém a permissão de autoridades para esmiuçar a vida alheia e “fabricar” provas com gravações e outras artimanhas com o objetivo exclusivo de livrar-se de processos e da cadeia. A prova preparada para obter o perdão não condiz com o sistema legal de delação. A sensação de tornar-se herói no mar de lama que vivemos permite o uso de todos os recursos”.

Os benefícios exagerados concedidos pela PGR (Procuradoria Geral da República) e, agora, homologados parcialmente pelo STF, não são matéria consensual. Alguns ministros do Supremo votaram pelo respeito legal ao princípio das delações, mas destacaram que, no caso JBS, se sólidas provas factuais não se sustentarem, a anulação dos benefícios pessoais obtidos poderá acontecer.

A rigor, na vida republicana brasileira, a corrupção alastrou-se pelas artérias da nação. E tem na sua estrutura de poder, em todos os níveis, o principal responsável. É muito mais ampla do que os fatos até agora investigados vêm comprovando. A aliança de corruptores o corruptos no Brasil não mais é fato recente. O dinheiro público foi drenado e assaltado em velocidade de “fórmula 1”. Grupos oportunistas apelidados de campeões nacionais do desenvolvimento deitaram e rolaram.

Quem não se lembra de Eike Batista, que queria ser o homem mais rico do mundo? Suas empresas viraram pó e atualmente cumpre prisão domiciliar.

Os outros Batistas, os irmãos Joesley e Wesley, montaram a maior empresa do mundo em proteína animal, com dinheiro público. De média empresa em 2003, a JBS em 2006 já faturava R$ 4 bilhões. Graças ao financiamento público em escala incontrolável e sociedade com o BNDES.

Com os bilhões que acumulam os corruptos põem a seu serviço exércitos de falsos jornalistas escondidos atrás de redes sociais. São os filhos da imprensa marrom.

Ilação, substantivo feminino

O que isso significa na prática? Nada, só uma observação. Mas garante que pelo menos mais da metade da população, as mulheres, está bem certa do que acha de tudo isso que ocorre sob nossas barbas, ops!, vistas. E, cá entre nós, combina. Mulher gosta de fazer ilações, somos boas nisso, admita

Ilação. Nunca se ouviu tanto essa palavra. Só compete com o número de ligações no celular que recebi esses dias do telemarketing de uma operadora de tevê. Contei mais de 70 só esta semana. Perturbador. De manhã, de tarde, de noite, e claro, nas horas mais impróprias em que a última coisa que você podia fazer era atender ao telefone, mãos molhadas, debaixo do chuveiro, dormindo… Não sei o que querem. Me dar algo, certamente que não. Deduzo que não. Portanto, faço uma ilação.


Mas alguém aí duvida que eu esteja certa? Ninguém (especialmente uma empresa dessas que nos arrancam o couro mês a mês) ligaria tantas vezes para dar nada, e olha que eu até acredito em milagres.

Ilação: dedução, suposição, inferência, o ato de fazer conjecturas baseadas em hipóteses, em suposições, em dados baseados em presunções, por meio de fatos observados, tendo como base os dados coletados e observados, que proporcionaram a construção de suposições por meio do raciocínio lógico. Tipo você viu, ouviu, leu sobre isso, pensou, analisou bem e traçou uma opinião.

Em lógica, ilação é o mesmo que inferência, uma operação mental em que se admite uma conclusão como verdadeira depois de se verificar que as premissas que a sustentam são reconhecidamente verdadeiras.

Tipo mala cheia de dinheiro sendo carregada por deputado dando corridinha para sair com ela da pizzaria. Tinha encontro, tinha mala, tinha dinheiro, tinha deputado, tinha até polícia fazendo a tal e indiscutível operação controlada. Tinha vídeo de tudo isso.

(Não é que agora tem até a pizza?).

Pois é. Mas você duvida da sua conclusão?

Eles duvidam – não me façam repetir quem são “eles”. São os que nos deram azia e má digestão essa semana. Ou discutindo por dias e dias o óbvio. Ou decidindo, no último minuto da prorrogação do tempo para o recesso judicial, dar uma liberada geral – deputados, malas, senador, bois e donos de bois, etc, etc – em tudo sobre o que nós tínhamos feito “ilações”, a arma de suas defesas. No campo jurídico não valem – tem de haver provas reais para que alguém seja condenado. Tudo bem. Mas também não precisam jogar areia em nossos olhos e nem vir dizer que as gravações que vemos e ouvimos eram algum tipo de ilusionismo.

Comento tudo isso porque me impressiona a tristeza e a desesperança de muitos, ouço seus comentários, dúvidas, incertezas. Daqui, no entanto, só vejo certezas já há algum tempo. Serão inevitáveis as revisões dos processos, porque estão mesmo cheios de erros e até mesmo ilações desnecessárias dos investigadores ávidos. Conheço muitos casos onde, inclusive, será muito bem vinda a total reordenação jurídica, adequação às leis, à Constituição, palavra e livrinho bradado em púlpitos.

Tudo bem. Não gosto de injustiças. Mas ao mesmo tempo também não gosto quando as leis são interpretadas como se apenas ilações fossem os fatos envolvendo poderosos e que desfilam diante de nós.

Desse jeito não vamos consertar o que tanto precisamos. Isso é certeza.

Marli Gonçalves

A morte do diálogo

A arte de ouvir é o pré-requisito da sabedoria. O matemático grego Pitágoras em tempos da grande civilização grega, já filosofava: “Quem fala semeia, quem escuta, colhe”. Vivemos tempos em que a história, tradições e cultura emudeceram. A humanidade resolveu desprezar o passado, e, com isso, a mediocridade se impõe na cultura rasteira, fake, sem noção, dos oráculos tecnológicos, do tipo Google, Wikipédia e falsidades espelhadas ao vento pelas diversas redes.

Os antepassados são esquecidos, senão desvalorizados pelos exércitos de telas móveis, no seu silêncio individualista e solitário.

Diferenças dos pássaros
Modernos smartphones nem são usados mais para falar. Digitam-se textos, transferem-se fotos usando abreviaturas preguiçosas, ou emojis mornos, repetitivos e sem graça, pois sentimentos e expressões são de forma caricata e pasteurizada, repassados uns aos outros em um conteúdo pouco original. Uns dirão que os emojis são uma linguagem universal. O esperanto que, finalmente, pode ser compreendido em todo o mundo.

O custo de tudo isso é o silêncio, o emudecimento. Não se olha nos olhos, não se dá as mãos, ocupadas pelo telefone que já não toca, pois passar um WhatsApp ou e-mail é mais rápido, evita ter que falar, dialogar e se expor. A voz emocionada, irada ou desabafada é calada. Evita a coragem de se expressar verdades, insatisfações ou discórdias. Covardemente, digitamos nossa versão dos fatos, pois a fúria de ser criticado, frustrado, chamado atenção, é algo que não suportamos.

Vivemos um tempo em que ninguém quer ser contrariado. Uma pena, pois a verdade tem sido distorcida e censurada. A grandeza e humildade de reconhecer erros, dizer um simples “não sei”, “não quero”, “não posso”, “perdão” tornaram-se eventos raros, de uma minoria que tem maturidade.

Sentados em uma mesa de um restaurante ou bar, em uma viagem de férias com paisagens estonteantes ou mesmo vendo um jogo ao vivo e lá estão,de cabeça baixa e olhos vidrados na tela viciante. Famílias e amigos,sem se olhar ou conversar. Juntos, mas separados por uma indiferença e um silêncio ensurdecedor. O universo virtual, que conecta quem está distante, na mesma medida que desconecta quem está ao lado.

O resultado é essa carência mascarada por selfies, busca de status nas redes sócias, likes e unlikes, seguidores mesmo que seja por robôs que podem ser contratados para aumentar a falsa multidão de admiradores. O mundo, insistindo em fornecer o nascer e por do sol, céu estrelado e paisagens deslumbrantes. Mas o olhar está hipnotizado na prisão das telas.

Não se beija, não se abraça, não tem colo. Mãos ocupadas e dedilhando frenéticos. Sexo mecânico, baladas intoxicadas por bebida excessiva e drogas sintéticas e a ressaca da solidão acompanhada. “Mudos telepáticos”, como diria certo poeta.

E pensar que palavras têm alma... E uma vez cantada, em prosas e versos, acendia paixões, emocionava e ativava sensações extracorpóreas. Sonhávamos acordados, dormíamos após um sonoro “dorme com os anjos, meu bem”. Abraçadinho de “conchinhas”. Eu sei, tudo isso soa ridículo em tempos tecnológicos. Sou ridículo. Romanticamente romântico. Olhos nos olhos, cafuné, palavras doces ao ouvido. Estou em extinção, graças a Deus. Ou não?