domingo, 10 de março de 2024
Pobre Brasil: é espantoso que não haja condenação clara à trama de um golpe
Há algo muito errado com o Brasil. O contexto histórico da época (o que os alemães chamam de zeitgeist), marcado por diversos escândalos, explica que em 2018 o país tenha escolhido um presidente como Bolsonaro.
É espantoso, porém, para uma nação que pretenda se definir como tal, seguindo as palavras de Ortega y Gasset (“uma nação é um projeto de vida em comum”), que não haja uma condenação clara às barbaridades perpetradas por aqueles que, sem sombra de dúvida, tramaram um golpe de Estado na transição entre 2022 e 2023.
O fato de que, em função do receio de “cancelamento” por parte dos cangaceiros das mídias sociais, uma parte do corpo político do país conserve a ambiguidade diante daquelas manifestações criminosas revela que a nação está, em parte, doente.
Se aquele bando que tentou “virar a mesa”, revertendo o resultado das eleições e subvertendo a ordem constitucional, fez o que fez, foi por entender que forças relevantes do país iriam amparar tais disparates.
Se naquela época o que se tentou já era um despropósito completo, hoje, à luz do que se sabe da famosa gravação daquela reunião indecente, a ambiguidade é um atestado de falta de liderança.
A sociedade brasileira em peso, seus políticos, suas lideranças empresariais, os governadores etc. deveriam deixar cristalinamente claro que não há outra atitude diante daquelas aberrações que não um repúdio veemente. Não nos enganemos: o fato de que isso não tenha ocorrido revela muito sobre nossas deficiências.
O filósofo José Ingenieros, no seu magnífico “El hombre mediocre”, publicado em 1913, qualifica a mediocridade como uma “incapacidade de ideais”, definindo idealistas como aqueles “dispostos a emancipar-se do seu rebanho, procurando uma perfeição que vá além do atual”, reconhecendo que “a Humanidade não chega onde desejam os idealistas, mas sempre chega além de onde teria ido sem os seus esforços.”
Ele marca a devida distinção entre o que se espera de quem tem o dom de se destacar e aqueles que apenas copiam o que entendem que os outros esperam que seja feito, ao afirmar que “a personalidade individual começa no ponto preciso onde cada um se diferencia dos outros.”
Na definição do arquétipo que dá nome ao livro, ele escreve que “o homem medíocre está adaptado para viver em rebanho; sua característica é imitar aqueles que o cercam: pensar com cabeça alheia e ser incapaz de formar ideais próprios.”
E conclui que, no que qualifica de “mediocracia”, ou seja, no “governo dos medíocres”, o que se observa é que “os governantes que não pensam parecem prudentes; os que não roubam resultam exemplares. Ao invés de heróis, declaram-se administradores discretos.”
Ora, o papel de liderança vai muito além de apenas agir da forma que parte da população espera que o político atue e, sim, implica definir um rumo, com base em valores que deveriam ser inegociáveis. Há situações em que um governante — ou aspirante a sê-lo — deve fazer um risco de giz e deixar claro que, em relação a certos pontos, será intransigente.
Não importa se em um primeiro momento ele não tiver a compreensão de todos: com o tempo, ganhará o respeito e a admiração pela sua atitude.
É isso o que se deveria esperar de lideranças: que sinalizem claramente que nunca mais o país deveria assistir a um espetáculo deprimente como o que, desde os mais altos escalões da República, se tentou encenar em 2022.
Por uma ironia, a divulgação desses fatos se deu quando eu estava lendo o livro de Kissinger, “Liderança”. O contraste entre a coragem do general De Gaulle — quando, praticamente sozinho, baseado no que Kissinger descreve como o “senso nato de autoridade pessoal” de um “brigadeiro sem um tostão, exilado numa terra cuja língua não conhecia”, lançou as bases da Resistência francesa — e a atitude dócil dos nossos “caballeros de triste figura”, curvando-se diante do chefe quando estava se tramando uma atrocidade institucional, é a expressão de um país aviltado. Pobre Brasil.
É espantoso, porém, para uma nação que pretenda se definir como tal, seguindo as palavras de Ortega y Gasset (“uma nação é um projeto de vida em comum”), que não haja uma condenação clara às barbaridades perpetradas por aqueles que, sem sombra de dúvida, tramaram um golpe de Estado na transição entre 2022 e 2023.
O fato de que, em função do receio de “cancelamento” por parte dos cangaceiros das mídias sociais, uma parte do corpo político do país conserve a ambiguidade diante daquelas manifestações criminosas revela que a nação está, em parte, doente.
Se aquele bando que tentou “virar a mesa”, revertendo o resultado das eleições e subvertendo a ordem constitucional, fez o que fez, foi por entender que forças relevantes do país iriam amparar tais disparates.
Se naquela época o que se tentou já era um despropósito completo, hoje, à luz do que se sabe da famosa gravação daquela reunião indecente, a ambiguidade é um atestado de falta de liderança.
A sociedade brasileira em peso, seus políticos, suas lideranças empresariais, os governadores etc. deveriam deixar cristalinamente claro que não há outra atitude diante daquelas aberrações que não um repúdio veemente. Não nos enganemos: o fato de que isso não tenha ocorrido revela muito sobre nossas deficiências.
O filósofo José Ingenieros, no seu magnífico “El hombre mediocre”, publicado em 1913, qualifica a mediocridade como uma “incapacidade de ideais”, definindo idealistas como aqueles “dispostos a emancipar-se do seu rebanho, procurando uma perfeição que vá além do atual”, reconhecendo que “a Humanidade não chega onde desejam os idealistas, mas sempre chega além de onde teria ido sem os seus esforços.”
Ele marca a devida distinção entre o que se espera de quem tem o dom de se destacar e aqueles que apenas copiam o que entendem que os outros esperam que seja feito, ao afirmar que “a personalidade individual começa no ponto preciso onde cada um se diferencia dos outros.”
Na definição do arquétipo que dá nome ao livro, ele escreve que “o homem medíocre está adaptado para viver em rebanho; sua característica é imitar aqueles que o cercam: pensar com cabeça alheia e ser incapaz de formar ideais próprios.”
E conclui que, no que qualifica de “mediocracia”, ou seja, no “governo dos medíocres”, o que se observa é que “os governantes que não pensam parecem prudentes; os que não roubam resultam exemplares. Ao invés de heróis, declaram-se administradores discretos.”
Ora, o papel de liderança vai muito além de apenas agir da forma que parte da população espera que o político atue e, sim, implica definir um rumo, com base em valores que deveriam ser inegociáveis. Há situações em que um governante — ou aspirante a sê-lo — deve fazer um risco de giz e deixar claro que, em relação a certos pontos, será intransigente.
Não importa se em um primeiro momento ele não tiver a compreensão de todos: com o tempo, ganhará o respeito e a admiração pela sua atitude.
É isso o que se deveria esperar de lideranças: que sinalizem claramente que nunca mais o país deveria assistir a um espetáculo deprimente como o que, desde os mais altos escalões da República, se tentou encenar em 2022.
Por uma ironia, a divulgação desses fatos se deu quando eu estava lendo o livro de Kissinger, “Liderança”. O contraste entre a coragem do general De Gaulle — quando, praticamente sozinho, baseado no que Kissinger descreve como o “senso nato de autoridade pessoal” de um “brigadeiro sem um tostão, exilado numa terra cuja língua não conhecia”, lançou as bases da Resistência francesa — e a atitude dócil dos nossos “caballeros de triste figura”, curvando-se diante do chefe quando estava se tramando uma atrocidade institucional, é a expressão de um país aviltado. Pobre Brasil.
Autocracia religiosa-nacionalista
Netanyahu e os seus parceiros deixaram claro que o objetivo do seu governo de pura direita é a supressão da liberdade de expressão e o estabelecimento de uma autocracia religioso-nacionalista que proíbe aqueles que pensam de forma diferente da esfera pública.
Israel abusou de detidos de guerra em Gaza
Um relatório interno da ONU visto pela BBC descreveu o abuso generalizado de palestinos que foram capturados e interrogados em centros de detenção israelenses improvisados durante a guerra em curso em Gaza.
O projeto de documento compilado pela Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras (Unrwa), a principal agência da ONU que apoia os palestinianos, inclui testemunhos detalhados de detidos que descrevem uma extensa gama de maus-tratos.
Eles incluem ser despido e espancado, ser forçado a ficar em gaiolas e atacado por cães, forçado a posições de estresse por longos períodos e submetido a "traumas contundentes", incluindo coronhas de armas e botas, resultando em alguns casos em "costelas quebradas, separadas ombros e lesões duradouras".
Afirma que tanto homens como mulheres relataram “ameaças e incidentes de violência e assédio sexual”, incluindo toques inadequados nas mulheres e espancamentos nos órgãos genitais dos homens.
Num comunicado fornecido à BBC, as Forças de Defesa de Israel (IDF) afirmaram: “Os maus-tratos aos detidos durante o seu tempo de detenção ou durante o interrogatório violam os valores das IDF e contrariam as IDF e são, portanto, absolutamente proibidos”.
Rejeitou alegações específicas, incluindo a negação de acesso a água, cuidados médicos e roupa de cama. As IDF também disseram que as alegações relativas ao abuso sexual eram "outra tentativa cínica de criar uma falsa equivalência com o uso sistemático do estupro como arma de guerra pelo Hamas".
Em declarações anteriores aos jornais New York Times e Guardian, os militares israelitas afirmaram estar cientes das mortes durante a detenção, incluindo aquelas com doenças e ferimentos pré-existentes, e afirmaram que todas as mortes estavam a ser investigadas.
Os relatos da Unrwa coincidem com outros relatos de abusos em centros de detenção israelitas publicados recentemente por grupos de direitos humanos israelitas e palestinianos, bem como com investigações separadas da ONU.
Este último relatório da ONU, que ainda não foi publicado, baseou-se em entrevistas com mais de 100 detidos, parte de um grupo de cerca de 1.000 detidos que a Unrwa conseguiu documentar desde Dezembro, depois de terem sido libertados de três instalações militares israelitas. Eles incluíram pessoas – homens e mulheres – com idades entre seis e 82 anos, incluindo 29 crianças.
A agência explica que esta informação foi obtida durante a sua função de coordenação da ajuda humanitária no ponto de passagem Kerem Shalom entre Gaza e Israel, onde as FDI têm libertado detidos. A informação também teria sido fornecida “de forma independente e voluntária” por palestinos libertados da detenção.
O relatório afirma que muitos palestinos foram detidos no norte de Gaza enquanto se refugiavam em hospitais ou escolas ou quando tentavam fugir para o sul em busca de abrigo. Outros eram habitantes de Gaza com autorização de trabalho para entrar em Israel. Eles ficaram presos em Israel quando a guerra eclodiu e mais tarde foram detidos.
A Unrwa estima que mais de 4.000 palestinianos foram detidos em Gaza desde o início das hostilidades desencadeadas pelo ataque do Hamas a 7 de Outubro, quando quase 1.200 israelitas, a maioria civis, foram mortos e mais de 250 israelitas e estrangeiros foram feitos reféns.
Na guerra que se seguiu, agora no seu quinto mês, mais de 30 mil palestinianos foram mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, gerido pelo Hamas.
A própria Unrwa tem sido o foco da investigação durante esta guerra. Israel acusou-o repetidamente de apoiar o Hamas e de contratar os seus membros.
A agência da ONU, cujos 13 mil funcionários são considerados a espinha dorsal das operações humanitárias em Gaza, negou as acusações. Mas rescindiu imediatamente os contratos dos funcionários acusados num documento israelita de terem desempenhado um papel nos ataques de 7 de Outubro.
As alegações, também investigadas pela ONU, levaram quase 20 países e instituições a suspender o financiamento. Mas a UE retomou recentemente o seu apoio e outros estão supostamente a preparar-se para o fazer.
"A Unrwa está a enfrentar uma campanha deliberada e concertada para minar as suas operações e, em última análise, acabar com elas", disse recentemente o comissário-geral Philippe Lazzarini numa reunião especial da Assembleia Geral da ONU, no meio de apelos em Israel para que a agência fosse desmantelada.
Na introdução do seu relatório interno, a Unrwa destaca que não é um relato abrangente de todas as questões relativas às detenções durante a guerra, incluindo reféns detidos pelo Hamas, ou outras preocupações relativas ao tratamento de reféns em Gaza por grupos armados palestinianos.
O projeto de documento compilado pela Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras (Unrwa), a principal agência da ONU que apoia os palestinianos, inclui testemunhos detalhados de detidos que descrevem uma extensa gama de maus-tratos.
Eles incluem ser despido e espancado, ser forçado a ficar em gaiolas e atacado por cães, forçado a posições de estresse por longos períodos e submetido a "traumas contundentes", incluindo coronhas de armas e botas, resultando em alguns casos em "costelas quebradas, separadas ombros e lesões duradouras".
Afirma que tanto homens como mulheres relataram “ameaças e incidentes de violência e assédio sexual”, incluindo toques inadequados nas mulheres e espancamentos nos órgãos genitais dos homens.
Num comunicado fornecido à BBC, as Forças de Defesa de Israel (IDF) afirmaram: “Os maus-tratos aos detidos durante o seu tempo de detenção ou durante o interrogatório violam os valores das IDF e contrariam as IDF e são, portanto, absolutamente proibidos”.
Rejeitou alegações específicas, incluindo a negação de acesso a água, cuidados médicos e roupa de cama. As IDF também disseram que as alegações relativas ao abuso sexual eram "outra tentativa cínica de criar uma falsa equivalência com o uso sistemático do estupro como arma de guerra pelo Hamas".
Em declarações anteriores aos jornais New York Times e Guardian, os militares israelitas afirmaram estar cientes das mortes durante a detenção, incluindo aquelas com doenças e ferimentos pré-existentes, e afirmaram que todas as mortes estavam a ser investigadas.
Os relatos da Unrwa coincidem com outros relatos de abusos em centros de detenção israelitas publicados recentemente por grupos de direitos humanos israelitas e palestinianos, bem como com investigações separadas da ONU.
Este último relatório da ONU, que ainda não foi publicado, baseou-se em entrevistas com mais de 100 detidos, parte de um grupo de cerca de 1.000 detidos que a Unrwa conseguiu documentar desde Dezembro, depois de terem sido libertados de três instalações militares israelitas. Eles incluíram pessoas – homens e mulheres – com idades entre seis e 82 anos, incluindo 29 crianças.
A agência explica que esta informação foi obtida durante a sua função de coordenação da ajuda humanitária no ponto de passagem Kerem Shalom entre Gaza e Israel, onde as FDI têm libertado detidos. A informação também teria sido fornecida “de forma independente e voluntária” por palestinos libertados da detenção.
O relatório afirma que muitos palestinos foram detidos no norte de Gaza enquanto se refugiavam em hospitais ou escolas ou quando tentavam fugir para o sul em busca de abrigo. Outros eram habitantes de Gaza com autorização de trabalho para entrar em Israel. Eles ficaram presos em Israel quando a guerra eclodiu e mais tarde foram detidos.
A Unrwa estima que mais de 4.000 palestinianos foram detidos em Gaza desde o início das hostilidades desencadeadas pelo ataque do Hamas a 7 de Outubro, quando quase 1.200 israelitas, a maioria civis, foram mortos e mais de 250 israelitas e estrangeiros foram feitos reféns.
Na guerra que se seguiu, agora no seu quinto mês, mais de 30 mil palestinianos foram mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, gerido pelo Hamas.
A própria Unrwa tem sido o foco da investigação durante esta guerra. Israel acusou-o repetidamente de apoiar o Hamas e de contratar os seus membros.
A agência da ONU, cujos 13 mil funcionários são considerados a espinha dorsal das operações humanitárias em Gaza, negou as acusações. Mas rescindiu imediatamente os contratos dos funcionários acusados num documento israelita de terem desempenhado um papel nos ataques de 7 de Outubro.
As alegações, também investigadas pela ONU, levaram quase 20 países e instituições a suspender o financiamento. Mas a UE retomou recentemente o seu apoio e outros estão supostamente a preparar-se para o fazer.
"A Unrwa está a enfrentar uma campanha deliberada e concertada para minar as suas operações e, em última análise, acabar com elas", disse recentemente o comissário-geral Philippe Lazzarini numa reunião especial da Assembleia Geral da ONU, no meio de apelos em Israel para que a agência fosse desmantelada.
Na introdução do seu relatório interno, a Unrwa destaca que não é um relato abrangente de todas as questões relativas às detenções durante a guerra, incluindo reféns detidos pelo Hamas, ou outras preocupações relativas ao tratamento de reféns em Gaza por grupos armados palestinianos.
O golpista e o assassino
No domingo, 25 de fevereiro, uma multidão de apoiadores convocados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro lotou a principal avenida de São Paulo . Investigado como mentor de um golpe de Estado , o extremista de direita precisava demonstrar que ainda detém uma parte significativa dos corações e mentes dos brasileiros. Como esperado, ele conseguiu. Porém, para compreender mais profundamente o que Bolsonaro representa, é preciso ir muito além das grandes cidades do sudeste do país. É preciso desviar o olhar alguns milhares de quilômetros ao norte de São Paulo e olhar para uma cidade de 27 mil habitantes na rodovia Transamazônica chamada Medicilândia. Ali se instalou Darci Alves Pereira, assassino do ambientalista Chico Mendes . E começou uma nova vida como apoiador de Jair Bolsonaro.
Agora como “Pastor Daniel”, identidade associada às igrejas evangélicas, o autor confesso do crime que chocou o mundo foi empossado como presidente local do Partido Liberal em janeiro. O que permite que o homem que em 1988 executou com um tiro de espingarda no peito o mais renomado defensor da Amazônia assuma a presidência do partido de Bolsonaro – foi demitido após revelações na imprensa – e seja pré-candidato a vereador é exatamente o que mantém vivo o bolsonarismo.
Se para o mundo Chico Mendes foi um “herói”, para uma parte significativa da população da Amazônia, formada por pessoas que vieram de outros Estados para ganhar a vida com a exploração da selva, o líder ambientalista nada mais foi do que um obstáculo que precisava ser eliminado. Seu assassino, portanto, teria prestado um “serviço” que consideram “legítimo”. Estas pessoas não se consideram criminosas, mas sim como “pioneiros”, “defensores do progresso”, “bons cidadãos”. E é assim que são reconhecidos nas cidades amazônicas, onde ladrões de terras, madeireiros e patrões da mineração ilegal ocupam os principais cargos políticos e possuem grande parte dos negócios.
Com a redemocratização do Brasil e a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas, esses “pioneiros” começaram a ser vistos e tratados como feios, sujos e maus, e seu poder foi parcialmente limitado. Tal como o seu espelho, ao alcançar o poder com os seus votos, Bolsonaro redimiu-os e “libertou-os”, expandindo os limites para além da lei. O sabor desta redenção – e daquilo a que chamam “liberdade” – não será apagado cedo ou facilmente, talvez nunca.
Faltava ainda a redenção religiosa, uma vez que a Igreja Católica na Amazônia estava ligada à Teologia da Libertação e muitos dos atuais líderes da esquerda foram formados nas comunidades eclesiais de base. Com a ascensão e expansão das igrejas evangélicas, que hoje formam a base de apoio mais resiliente de Bolsonaro , elas alcançaram essa outra camada. Tanto é que, como diz o “Pastor Daniel”, o assassino de Chico Mendes costuma pregar sem nenhum pudor: “Em tudo que fazemos, devemos colocar Deus no meio”.
O fato de o assassino ter escolhido esta cidade da região transamazônica para sua redenção oferece um grau adicional de espanto. Medicilancia leva o nome de Emílio Garrastazu Médici, general e presidente do período em que ocorreram mais sequestros, torturas e assassinatos durante a ditadura brasileira, e que também transformou a destruição da Amazônia em um projeto de Estado. Essa é a filiação de Bolsonaro, do bolsonarismo e do “Pastor Daniel”. E sobreviverá até a Bolsonaro.
Agora como “Pastor Daniel”, identidade associada às igrejas evangélicas, o autor confesso do crime que chocou o mundo foi empossado como presidente local do Partido Liberal em janeiro. O que permite que o homem que em 1988 executou com um tiro de espingarda no peito o mais renomado defensor da Amazônia assuma a presidência do partido de Bolsonaro – foi demitido após revelações na imprensa – e seja pré-candidato a vereador é exatamente o que mantém vivo o bolsonarismo.
O que hoje chamamos de bolsonarismo já existia muito antes, mas sem nome e sem rosto que lhe desse coesão e organização. Esta foi a contribuição decisiva de Bolsonaro para o fortalecimento da extrema direita fascista. Na Amazônia Legal, região que abrange nove Estados e mais da metade do território brasileiro, essa mentalidade – aqui entendida como forma de existir, pensar e se movimentar – domina as eleições e o cotidiano.
Se para o mundo Chico Mendes foi um “herói”, para uma parte significativa da população da Amazônia, formada por pessoas que vieram de outros Estados para ganhar a vida com a exploração da selva, o líder ambientalista nada mais foi do que um obstáculo que precisava ser eliminado. Seu assassino, portanto, teria prestado um “serviço” que consideram “legítimo”. Estas pessoas não se consideram criminosas, mas sim como “pioneiros”, “defensores do progresso”, “bons cidadãos”. E é assim que são reconhecidos nas cidades amazônicas, onde ladrões de terras, madeireiros e patrões da mineração ilegal ocupam os principais cargos políticos e possuem grande parte dos negócios.
Com a redemocratização do Brasil e a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas, esses “pioneiros” começaram a ser vistos e tratados como feios, sujos e maus, e seu poder foi parcialmente limitado. Tal como o seu espelho, ao alcançar o poder com os seus votos, Bolsonaro redimiu-os e “libertou-os”, expandindo os limites para além da lei. O sabor desta redenção – e daquilo a que chamam “liberdade” – não será apagado cedo ou facilmente, talvez nunca.
Faltava ainda a redenção religiosa, uma vez que a Igreja Católica na Amazônia estava ligada à Teologia da Libertação e muitos dos atuais líderes da esquerda foram formados nas comunidades eclesiais de base. Com a ascensão e expansão das igrejas evangélicas, que hoje formam a base de apoio mais resiliente de Bolsonaro , elas alcançaram essa outra camada. Tanto é que, como diz o “Pastor Daniel”, o assassino de Chico Mendes costuma pregar sem nenhum pudor: “Em tudo que fazemos, devemos colocar Deus no meio”.
O fato de o assassino ter escolhido esta cidade da região transamazônica para sua redenção oferece um grau adicional de espanto. Medicilancia leva o nome de Emílio Garrastazu Médici, general e presidente do período em que ocorreram mais sequestros, torturas e assassinatos durante a ditadura brasileira, e que também transformou a destruição da Amazônia em um projeto de Estado. Essa é a filiação de Bolsonaro, do bolsonarismo e do “Pastor Daniel”. E sobreviverá até a Bolsonaro.
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