quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Brasil vai às urnas

 

Ramón Díaz Yanes (Cuba)

Transamazônica: 50 anos entre ufanismo e desastre ambiental

Havia um intencional clima de otimismo naquele 27 de setembro de 1972, quando foi inaugurada a BR-230, mais conhecida como rodovia Transamazônica. O Brasil vivia o auge da ditadura militar e esforços de propaganda procuravam dar a ideia de grandeza.

Conforme registrou o jornal O Estado de S. Paulo, o então ministro dos Transportes, Mário Andreazza (1918-1988) foi ufanista. Disse ele que a Transamazônica "simboliza o poder criador do homem brasileiro e sobretudo a atitude de uma nação jovem e corajosa, decidida a enfrentar com firmeza e determinação todos os problemas que lhe dificultam o acesso ao pleno desenvolvimento econômico e social".

Na visão predominante naqueles dias, desenvolver significava avançar sobre a floresta. A mentalidade era de uma verdadeira batalha entre civilização e natureza. A cerimônia de inauguração do primeiro trecho, com 1.253 quilômetros, ocorreu em um ponto a cinco quilômetros de Altamira, com a presença do então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici.


A historiadora Janaína Martins Cordeiro, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta que a Transamazônica estava dentro da ideia, presente no governo Médici, de "construção de um Brasil potência como projeto da política econômica da ditadura".

Em seu livro Reinventando o Otimismo, o historiador Carlos Fico, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), situa a rodovia como parte do sonho histórico brasileiro de integração plena do território, inclusive a região amazônica.

"Houve um investimento sem igual em propaganda e uma conjuntura que favoreceu a emergência de um nacionalismo desenvolvimentista extremamente ufanista e otimista", contextualiza Cordeiro. "A Transamazônica passou a ser o símbolo de um país que se realizava, o futuro que tinha chegado. Era o homem se sobrepondo à floresta, domando as forças da natureza."

Para embasar a expansão sobre a floresta, havia teorias conspiratórias. Como lembra o historiador César Martins de Souza, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e editor da Nova Revista Amazônica, argumentava-se que havia "interesses estrangeiros em tomar a Amazônia" e, por isso, era necessário ocupá-la e explorá-la. "Essas ideias, que eu chamo de ideologias, embasavam a construção de projetos agropecuários e minerais [na região]", pontua o historiador.

Além de simbolizar o que se entendia por desenvolvimento, a Transamazônica deixou clara a prioridade nacional pelo transporte rodoviário, em detrimento de outras possibilidades.

Além disso, como ressalta o antropólogo Fred Lucio, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), representava um acesso a áreas remotas, em nome de uma suposta segurança nacional. "Havia uma preocupação com as fronteiras do Brasil. A defesa da Amazônia fazia parte do fantasma da segurança nacional", diz ele.

Segundo a imprensa da época, a rodovia já trazia ocupação humana para a floresta, com 250 "colonos" chegando por dia à região de Altamira e se fixando nas redondezas da Transamazônica.

Slogans governamentais incentivavam isso, dizendo que a Amazônia era "uma terra sem homens para homens sem terras", por exemplo.

"Chega de lendas, vamos faturar", apelava anúncio publicado pelo governo, na imprensa, para divulgar as ações da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). "A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro."

Anúncios de empresas ligadas à construção, publicados na época, reforçavam a ideia. "Para unir o Brasil, nós rasgamos o inferno verde", escreveu a construtora Andrade Gutierrez. "A Amazônia já era", exaltou a companhia Netumar.

"A propaganda mostrava árvores sendo derrubadas, a estrada aberta onde antes havia, segundo o discurso, uma natureza hostil, selvagem. Predominava a ideia da civilização dominando o selvagem, o indomável", aponta Cordeiro.

A tônica era a ideia de "conquista da Amazônia", explica o historiador Souza. "Como se a floresta fosse um inimigo a ser vencido", acrescenta.

Do plano inicial de 8 mil quilômetros, a Transamazônica acabou ficando com pouco mais da metade. Cinquenta anos depois, a história demonstra que o projeto foi um desastre ambiental.

"Havia estimativa de escavação de aproximadamente 35 milhões de metros cúbicos de terra e foram erguidos cerca de 4 mil metros de pontes de madeira. Nessa mesma proporção, o desmatamento já alcançava cerca de 100 milhões de metros quadrados. Árvores com mais de 50 metros de altura e centenas de anos de vida iam ao chão em poucos minutos e, com elas, toda uma biota era arrancada e destruída", comenta Souza.

"As obras transformaram e transtornaram a região, pois a Transamazônica não era apenas uma estrada que objetivava atravessar a Amazônia no sentido Leste-Oeste e integrar a região ao restante do país e o Atlântico ao Pacífico, permitindo ao Brasil acessar com maior facilidade e menores custos mercados asiáticos, mas uma obra que integrava diversos projetos de ocupação e exploração da Amazônia", afirma.

"Dessa forma, ela gerou um novo desenho da cartografia da região, pautada no desenvolvimentismo, com fortes impactos socioambientais sobre as populações da Amazônia, como povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e populações urbanas, bem como sobre a fauna e flora."

Quem ousava fazer uma crítica ambiental costumava ser rebatido com teorias conspiratórias. Em entrevista publicada na revista Manchete, na época, o ministro Andreazza argumentou que por trás da defesa ecológica havia interesses estrangeiros em dominar a floresta.

"Os debates ambientais ainda não se davam de modo sistemático como atualmente, devido ao momento histórico", pontua Souza.

Professor na Universidade de Bristol, no Reino Unido, o biólogo Filipe França explica que a construção de rodovias em regiões florestais acarreta dois danos ambientais e, nesse sentido, analisar a Transamazônica é mergulhar em "um clássico exemplo".

O primeiro dano é aquele que parece mais óbvio: o desmatamento, a remoção florestal para dar espaço à via. "Além da perda de árvores, ocorre a fragmentação da floresta, com a criação de ilhas de vegetação [divididas por áreas desmatadas]", explica. "A estrada divide os ecossistemas. Isso leva a mortalidade de espécies e redução da diversidade genética."

Depois do primeiro momento, contudo, esse processo continua, porque, com a facilidade de acesso, grupos passam a explorar cada vez mais o entorno, estradas secundárias — ainda que extraoficiais — são criadas e isso aumenta a escala de degradação. "A floresta ainda fica de pé, mas perde biodiversidade", argumenta.

O antropólogo Fred Lucio resume as consequências da construção da Transamazônica da seguinte maneira: "destruição e extermínio de populações indígenas", a transformação do entorno em "um lugar deplorável" e um "desenvolvimento fajuto para a região".

Vícios do Poder

Os detentores do Poder , sempre e em toda a parte , são completamente indiferentes ao bem-estar ou mal-estar dos que não têm poder, exceto na medida em que os seus atos são condicionados pelo medo. Esta afirmação talvez possa parecer demasiado dura. Pode-se opor-me a afirmação de que as pessoas decentes não maltratam outras pessoas para além de certos limites. Pode fazer-se tal afirmação, mas a história logo mostrará que tal afirmação não é verdadeira. As pessoas decentes de que se fala conseguem sempre ignorar , ou pretender ignorar , os tormentos que são infligidos a outrem para os conservar confortáveis e felizes.

Lord Melbourne , que foi o primeiro-ministro do reinado da rainha Vitória, era precisamente dessas pessoas decentes. Na sua vida privada era um homem encantador : cultivado, lido, humano, liberal. Era também riquíssimo; o seu dinheiro vinha-lhe todo das minas de carvão onde crianças trabalhavam turnos longuíssimos na escuridão mais completa a troco de tuta-e-meia. Era a agonia lenta dessas crianças que lhe permitia ser tão polido e elegante. E nem sequer se pode dizer que o seu caso fosse excepcional. Factos análogos afectam até as origens do próprio comunismo: Marx viveu durante longos anos da caridade de Engels, e Engels vivia da exploração do proletariado de Manchester durante a década esfomeada de 1840. Os jovens finíssimos dos diálogos de Platão, que os classicistas ingleses sempre têm apresentado como modelos a serem seguidos pela juventude aristocrática inglesa, viviam do trabalho de escravos e da exploração do Império Ateniense, de curta duração. As injustiças que nos trazem benefícios diretos e pessoais podem sempre ser justificadas com um sofisma qualquer.

As pessoas ficam horrorizadas , e com imensa razão, pelas atrocidades cometidas pelos Mau-Mau, mas quantos refletirão que tais desmandos, na sua totalidade, não chegam a ser uma milésima parte das atrocidades que os Brancos infligiram , durante séculos, sobre os Negros, através da instituição da escravatura e do rendoso comércio de escravos. A cidade de Bristol conta entre os seus cidadãos muitos homens ricos da mais alta e insuspeita integridade moral - mas a prosperidade dessa cidade deve-se, originalmente e principalmente , ao comércio de escravos.

Quando Stalin estava a introduzir a coletivização na Rússia, teve de enfrentar a oposição obstinada dos camponeses. Desfez essa oposição com uma implacabilidade que teria sido impossível num país democrático. Das suas medidas resultou a morte pela fome de cerca de 5 milhões de camponeses, enquanto vários milhões mais eram exilados para campos de concentração do círculo Ártico. E tudo isto foi feito em nome da necessidade de introduzir uma "agricultura cientifica".

(...) O grande valor da democracia está precisamente em evitar a prática de atrocidades nessa larga escala. É este o seu primeiro e maior mérito. (...)

Contudo , a democracia possui também outros méritos que só ligeiramente são menos importantes. Torna possível um grau de liberdade intelectual que não tem grandes probabilidades de existir sob um regime despótico. Na Rússia de hoje não se permite qualquer obra literária que possa instilar a menor dúvida acerca da sabedoria e virtude superiores dos chefes. Os monarcas despóticos sempre suprimiram, até onde lhes era possível , qualquer sugestão de que o seu poder era excessivo. As Igrejas têm tido culpas idênticas a este respeito. (...)

Outra vantagem da democracia reside no facto de ser menos atreita a atitudes belicosas do que um governo autocrático. As vantagens da guerra - se é que há algumas! - vão beneficiar só os poderosos e eminentes nações vencedoras . As desvantagens que são muito mais evidentes, recaem principalmente sobre o comum dos cidadãos. Quase não tenho dúvidas de que, se a vontade do povo russo, neste momento histórico , pudesse prevalecer , os perigos de uma guerra entre o Oriente e o Ocidente desapareceriam por completo.(...)

Se uma terceira guerra mundial vier a eclodir - e oxalá tal hipótese não venha jamais a verificar-se -, parece-me claro que a orientação agressiva e nada amistosa do Governo russo, desde 1945, terá sido uma das maiores causas, seja qual for a faísca que provoque a explosão. Portanto, parece-me razoável supor que uma das vantagens da democracia sobre outras formas de governo reside na sua maior tendência para a paz.

Apesar de que frequentemente se tem dito em contrário, parece-me que um dos grandes méritos da democracia tem sido o de conferir às nações que a adoptam uma fortaleza maior no caso de guerra. Talvez isto não seja verdade durante os primeiros meses de uma guerra, especialmente quando, durante esses primeiros meses, as autocracias podem alcançar algumas vitórias militares. Mas tem sido verdade quando se considera a guerra na sua totalidade . Alguém que se dê ao trabalho de analisar as guerras importantes que ocorreram durante os últimos duzentos e cinquenta anos verificará que, em todos os casos , as vitórias finais pertenceram àquelas nações que mais se aproximavam daquilo a que chamamos democracia.

Bertrand Russell, "Realidade e Ficção"

Bolsonaro está perto do fim

Esta semana pode ser a última de uma época marcada pela passagem da extrema direita no poder. Bolsonaro se inspirou no governo militar, mas a História não se repete. Ele chegou pelo voto e será despachado pelo voto.

No período militar, a Guerra Fria dominava o contexto, o comunismo era visto como uma grande ameaça. O medo da época concentrava-se muito na estatização, na ameaça à propriedade privada.

Bolsonaro manteve o discurso anticomunista, mas agora centrado nos temas culturais. Os grandes países comunistas não tiveram peso em suas diatribes, mas sim as organizações multilaterais. Agora era preciso defender Deus, pátria e família de elementos morais que poderiam desintegrá-los.

O Brasil era complexo demais para uma visão tão estreita. Mas sua complexidade nos mostrou que há espaço para a extrema direita e que teremos de conviver com ela como uma força considerável, como na França. Possivelmente, aqui como lá, dificilmente será majoritária. Na França, chegou duas vezes ao segundo turno e fracassou.


Não temos no Brasil o combustível que incendeia a extrema direita de lá: os fluxos migratórios, vistos como ameaças ao emprego e ao modo de vida local. No Brasil, a saída para seu crescimento é ficar à espreita, esperando os erros do governo. Pode haver muita gritaria no campo dos costumes, mas ela só tem consequências maiores se a economia não reencontrar um ritmo de crescimento sustentável.

Ainda assim, mesmo com o país crescendo, surgem problemas: uma concentração apenas nas melhorias materiais, como se isso fosse o único objetivo nacional, e, eventualmente, a tendência à corrupção.

Não vejo como exercício inútil falar dessas preocupações na que pode ser a última semana de Bolsonaro no governo. A derrota da extrema direita é essencial, a maioria parece decidida a realizá-la e, sinceramente, não há no horizonte nada que possa mudar esse quadro no domingo.

Bolsonaro tem um alto índice de rejeição. É algo que não se resolve nos últimos dias, porque representa o julgamento de todo um governo, a soma de todas as falas e ações de um presidente. A tentativa mais audaciosa, a criação de um novo auxílio emergencial, acabou fracassando porque os mais pobres continuam votando no adversário.

Alguns jornalistas chamavam a emenda que criou o auxílio de Kamikaze porque desequilibrava o Orçamento. Resisti a esse nome, porque os pilotos kamikazes na Segunda Guerra Mundial colocavam a própria vida em risco, e não o dinheiro dos outros. Olhando para trás, creio que estava equivocado. De certa forma, era uma emenda Kamikaze: Bolsonaro colocaria todas as esperanças nela, e sua campanha explodiria como um avião japonês pilotado por um suicida.

Certamente, minhas preocupações atuais estão fora de época. O que acontecerá com a derrota de Bolsonaro será uma grande celebração. Mas, assim que passar a festa, certamente haverá espaço para esta pergunta, para mim indispensável: como evitar que aconteça de novo?

Basta considerar a Floresta Amazônica e concluir, depois de tanta devastação, que um novo período de barbárie simplesmente arruinará as chances futuras do Brasil, que dependem de sua riqueza natural.

Bolsonaristas radicais fizeram um grande auê no funeral da rainha e disseram que a BBC não era bem-vinda em Londres. Nada impedirá que continuem falando bobagens; se voltam ao poder, continuaremos resistindo, mas nas ruínas do que chamávamos o país do futuro.

Agora, que está quase acabando, nada mais razoável do que intensos estudos sobre como começa, o que come, onde a serpente bota os ovos, qual o antídoto para movimentos tão raivosos.

Vivemos uma tempestade perfeita. Há o que comemorar, mas como esquecer quase 700 mil mortos? Não podemos mais suprimir a solidariedade, a compaixão num país em frangalhos.

Pensamento do Dia

 




Reino da estupidez

O diálogo com a estupidez
estraga a vida e corrói a alma.
Mesmo um estúpido de cada vez,
à doce paciência, leva a palma.
A estupidez é um muro de betão,
que fica diante de nós, teimoso:
não há argumento ou empurrão,

que mova um imbecil meticuloso.

O estúpido não sabe argumentar,
porque isso fica além das suas posses:
por isso, mais não faz do que alinhar

patetices, como se fossem doces.
A estupidez consome tempo e espaço
e, ao saber, prefere o estardalhaço!
Eugénio Lisboa

A linguagem que separa Lula e Bolsonaro

No último domingo, estive na quadra da escola de samba Portela, no bairro carioca de Madureira. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, havia convidado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para fazer um comício a uma semana da eleição, o que, é claro, também deveria colocar em evidência o próprio Paes. Para o candidato presidencial do PT, foi como jogar em casa. As ruas ao redor da Portela estavam completamente vermelhas, e era quase impossível chegar até a quadra, que a certa altura acabou fechando as portas, por ter atingido lotação máxima.


Quem afirmava, como se lê muitas vezes nas redes bolsonaristas, que Lula não ousa estar no meio do povo e não mobiliza ninguém, recebeu uma lição. Após quatro anos de abstinência e medo da agressão dos bolsonaristas, brasileiros de esquerda e progressistas têm novamente coragem de mostrar publicamente suas cores e símbolos – e também agitar a bandeira nacional, porque não querem deixá-la para os extremistas de direita.

Quando Lula chegou, mostrou mais uma vez porque ele é capaz de mobilizar a gente como nenhum outro político da esquerda. Tem a ver com sua lendária ascensão de filho de uma mãe solteira pobre com oito filhos a chefe de Estado. Sua história lhe dá credibilidade. A isso se soma sua retórica simples, que sempre toca mais o coração do que a razão. Um terceiro fator é que muitos brasileiros se lembram com certa nostalgia dos anos 2000, quando o Brasil crescia economicamente, os salários subiam, e a pobreza caía.

Após várias semanas acompanhando a campanha eleitoral, identifiquei perfis de eleitores que também se confirmaram na Portela.

O eleitor típico de Bolsonaro é mais velho, de pele mais clara, do sexo masculino, mais rico e com maior nível de educação formal. Ele se sente ameaçado por "comunismo", "ideologia de gênero" e "globalismo". Coloquei os termos entre aspas porque são invenções de estrategistas de direita. Não há comunismo no Brasil (mesmo em 13 anos de PT, nenhuma empresa foi estatizada), não há ideologia de gênero, nem ideologia de globalização (se estiver errado, agradeceria se alguém me mostrasse os manifestos e princípios dessas ideologias). São termos que agrupam os difusos medos de mudanças sociais. Muitos eleitores de Bolsonaro não conseguem lidar com esses medos – do feminismo, por exemplo –, que muitas vezes levam à agressão.

Os eleitores de Lula, por sua vez, são de pele mais escura, menos abastados, têm menor nível de educação formal e são mais jovens. Também é um eleitorado mais feminino. Isso também fica claro na Portela. E eles reagem a expressões completamente diferentes das dos apoiadores de Bolsonaro. São também duas linguagens diferentes que separam os seguidores de Lula e os bolsonaristas. Isso não apenas expressa duas formas diferentes de pensar, mas também duas formas de percepção, sentimento e prioridades.

Esta é provavelmente a maior diferença que caracteriza os eleitores de Bolsonaro: eles podem se dar ao luxo de temer um "comunismo" imaginário. Já para os eleitores de Lula, o aspecto material é mais importante. Enquanto nos eventos de Bolsonaro há mais aplausos quando ele fala sobre Deus, os militares, a pátria e ele mesmo, o povo de Lula aplaude quando ele diz que as mães do Brasil querem alimentar bem seus filhos e vesti-los bem, querem mandá-los para a escola e a universidade. Ou quando ele apela ao orgulho nacional e diz que a Petrobras tem condições de extrair petróleo do pré-sal porque seu governo investiu em ciência e tecnologia e vai voltar a fazê-lo.

Lula é, na maioria das vezes, concreto; Bolsonaro costuma ser abstrato. Quando Lula diz que Bolsonaro viajou para o funeral da rainha, mas não dedicou uma única palavra de lamento pelas quase 700 mil mortes por covid-19 no Brasil, algumas pessoas na Portela vão às lágrimas. Bolsonaro sempre afirma em seus comícios: "Lamentamos todas as mortes". Agora ele deveria contar uma história pessoal sobre o quanto se comoveu com a morte de um brasileiro específico – como faria Lula. Mas ele não tem nada a oferecer.

Bolsonaro discursa muito sobre Deus, os militares, a pátria e a família mas nunca preenche os conceitos com conteúdo. A retórica de Bolsonaro é fria, distante e desperta ressentimentos; a retórica de Lula é concreta, direta e desperta esperanças.

No evento com Lula na Portela, não foi um problema me identificar como jornalista estrangeiro e fazer perguntas, inclusive críticas, como sobre o Petrolão. Os participantes responderam com seriedade e sem agressão. Por outro lado, quem incluir a menor crítica ao "mito" numa pergunta, num evento com Bolsonaro – sobre os 51 imóveis que sua família pagou em dinheiro, por exemplo – tem que temer ser agredido verbalmente e até atacado fisicamente.

Neandertal: as lições que eles nos ensinam 40 mil anos após sua extinção

Cuidavam dos jovens, velhos e doentes, criavam abrigos para se protegerem, suportavam invernos rigorosos e verões quentes e enterravam seus mortos. DNA neandertal que pode ter sido benéfico para os humanos há dezenas de milhares de anos agora parece causar problemas quando combinado com um estilo de vida ocidental moderno.

Os neandertais servem como um reflexo de nossa própria humanidade desde que foram descobertos em 1856. O que achamos que sabemos sobre eles foi moldado para se adequar às nossas tendências culturais, normas sociais e padrões científicos. Primeiro, se acreditava que eles seriam espécimes doentes. Em seguida, nossos primos subumanos primitivos. Agora ninguém duvida que eles eram humanos avançados.

Hoje sabemos que o Homo neanderthalensis era muito parecido conosco: no passado, nós convivemos com eles e nos cruzamos com frequência. Mas por que os neandertais foram extintos, enquanto nós sobrevivemos, prosperamos e acabamos dominando o planeta?


Os neandertais evoluíram há mais de 400 mil anos, provavelmente a partir do Homo heidelbergensis. Eles tiveram muito sucesso e se espalharam do Mediterrâneo para a Sibéria. Eles eram altamente inteligentes, com cérebros em média maiores que os do Homo sapiens.

Eles caçavam grandes animais, coletavam plantas, cogumelos e frutos do mar, controlavam o fogo para cozinhar, faziam ferramentas rebuscadas, vestiam peles de animais, faziam decorações de conchas e eram capazes de desenhar símbolos nas paredes das cavernas.

Eles cuidavam dos jovens, velhos e doentes, criavam abrigos para se protegerem, suportavam invernos rigorosos e verões quentes e enterravam seus mortos.

Os restos esqueléticos dos neandertais revelam que eles tinham um cérebro quase tão grande quanto o dos humanos modernos, então pode-se presumir que eles eram inteligentes e capazes de resolver problemas

Os neandertais encontraram nossos ancestrais inúmeras vezes ao longo de dezenas de milhares de anos. As duas espécies compartilharam o continente europeu por pelo menos 14 mil anos. Eles até tiveram relações sexuais.

A diferença mais significativa entre os neandertais e nossa espécie é que eles foram extintos há cerca de 40 mil anos. A causa exata de seu desaparecimento ainda é um mistério para nós, mas acreditamos que provavelmente foi o resultado de uma combinação de fatores.

Em primeiro lugar, o clima da última era glacial era altamente variável, indo do frio ao calor extremo e vice-versa, o que pressionava as fontes de alimentos de animais e plantas e significava que os neandertais tinham que se adaptar constantemente às mudanças ambientais.

Em segundo lugar, nunca chegou a haver muitos neandertais, já que a população total deles nunca ultrapassou dezenas de milhares de pessoas.

Eles viviam em pequenos grupos, de cinco a 15 indivíduos, em comparação com o Homo sapiens que formava grupos de até 150 indivíduos. Essas pequenas populações neandertais isoladas podem ter se tornado geneticamente cada vez mais insustentáveis.

O fato de os neandertais viverem em pequenos grupos foi, na opinião dos autores, um dos motivos da sua extinção

Terceiro, eles tiveram que competir com outros predadores, particularmente os grupos de humanos modernos que surgiram da África há cerca de 60 mil anos. Acreditamos que muitos neandertais podem ter sido assimilados nos grupos maiores de Homo sapiens.

Os neandertais deixaram inúmeras pistas para examinarmos dezenas de milhares de anos depois — muitas das quais podem ser vistas na exposição especial que ajudamos a organizar no Museu de História Natural da Dinamarca.

Nos últimos 150 anos, coletamos ossos fósseis, ferramentas de pedra e madeira, encontramos objetos e joias deixadas para trás, descobrimos cemitérios e agora mapeamos seu genoma a partir de DNA antigo. Parece que 99,7% do DNA de neandertais e humanos modernos é idêntico, e não há dúvida de que eles são nossos parentes extintos mais próximos.

Talvez o mais surpreendente seja a evidência de cruzamento que deixou vestígios de DNA neandertal em humanos vivos hoje.

Muitos europeus e asiáticos têm entre 1% e 4% de DNA neandertal. Os únicos humanos modernos sem traços genéticos de neandertais são as populações africanas localizadas ao sul do Saara. Ironicamente, com uma população mundial atual de cerca de 8 bilhões de pessoas, isso significa que nunca houve tanto DNA neandertal na Terra.

A análise do genoma neandertal nos ajuda a entender melhor sua aparência, pois há evidências de que alguns desenvolveram pele clara e cabelos ruivos muito antes do Homo sapiens. Os muitos genes que os neandertais e os humanos modernos compartilham estão relacionados a diversas coisas, desde a capacidade de saborear alimentos amargos até a capacidade de falar.

Também aumentamos nosso conhecimento sobre a saúde humana. Por exemplo, parte do DNA neandertal que pode ter sido benéfico para os humanos há dezenas de milhares de anos agora parece causar problemas quando combinado com um estilo de vida ocidental moderno.

Existem ligações com alcoolismo, obesidade, alergias, coagulação do sangue e depressão. Recentemente cientistas sugeriram que uma antiga variante genética neandertal poderia aumentar o risco de complicações graves para quem contrai covid-19.

Como os dinossauros, os neandertais não sabiam o que viria pela frente. A diferença é que os dinossauros desapareceram repentinamente após o impacto de um meteorito gigante vindo do espaço. A extinção dos neandertais ocorreu gradualmente.

Eles acabaram perdendo seu mundo — uma casa confortável que ocuparam com sucesso por centenas de milhares de anos, e que lentamente se voltou contra eles, até que a sua existência se tornou insustentável.

Os neandertais agora têm um propósito diferente. Nós enxergamos nosso reflexo neles. Eles não sabiam o que estava acontecendo com eles e não tiveram escolha a não ser continuar no caminho que acabou levando à sua extinção. Nós, por outro lado, estamos dolorosamente conscientes de nossa situação e do impacto que temos neste planeta.

A atividade humana está mudando o clima e está nos levando diretamente a uma sexta extinção em massa. Nós podemos refletir sobre a confusão em que nos metemos e fazer algo a respeito disso.

Se não queremos acabar como os neandertais, é melhor agirmos juntos e trabalharmos coletivamente por um futuro mais sustentável. A extinção dos neandertais nos lembra que nunca devemos tomar nossa existência como algo garantido.
Peter C. Kjærgaard, Mark Maslin e Trine Kellberg Nielsen, professores de História Evolutiva na Universidade de Copenhague (Dinamarca), de Ciências na University College London (Reino Unido) e de Arqueologia na Arthaus University (Dinamarca)