Lord Melbourne , que foi o primeiro-ministro do reinado da rainha Vitória, era precisamente dessas pessoas decentes. Na sua vida privada era um homem encantador : cultivado, lido, humano, liberal. Era também riquíssimo; o seu dinheiro vinha-lhe todo das minas de carvão onde crianças trabalhavam turnos longuíssimos na escuridão mais completa a troco de tuta-e-meia. Era a agonia lenta dessas crianças que lhe permitia ser tão polido e elegante. E nem sequer se pode dizer que o seu caso fosse excepcional. Factos análogos afectam até as origens do próprio comunismo: Marx viveu durante longos anos da caridade de Engels, e Engels vivia da exploração do proletariado de Manchester durante a década esfomeada de 1840. Os jovens finíssimos dos diálogos de Platão, que os classicistas ingleses sempre têm apresentado como modelos a serem seguidos pela juventude aristocrática inglesa, viviam do trabalho de escravos e da exploração do Império Ateniense, de curta duração. As injustiças que nos trazem benefícios diretos e pessoais podem sempre ser justificadas com um sofisma qualquer.
As pessoas ficam horrorizadas , e com imensa razão, pelas atrocidades cometidas pelos Mau-Mau, mas quantos refletirão que tais desmandos, na sua totalidade, não chegam a ser uma milésima parte das atrocidades que os Brancos infligiram , durante séculos, sobre os Negros, através da instituição da escravatura e do rendoso comércio de escravos. A cidade de Bristol conta entre os seus cidadãos muitos homens ricos da mais alta e insuspeita integridade moral - mas a prosperidade dessa cidade deve-se, originalmente e principalmente , ao comércio de escravos.
Quando Stalin estava a introduzir a coletivização na Rússia, teve de enfrentar a oposição obstinada dos camponeses. Desfez essa oposição com uma implacabilidade que teria sido impossível num país democrático. Das suas medidas resultou a morte pela fome de cerca de 5 milhões de camponeses, enquanto vários milhões mais eram exilados para campos de concentração do círculo Ártico. E tudo isto foi feito em nome da necessidade de introduzir uma "agricultura cientifica".
(...) O grande valor da democracia está precisamente em evitar a prática de atrocidades nessa larga escala. É este o seu primeiro e maior mérito. (...)
Contudo , a democracia possui também outros méritos que só ligeiramente são menos importantes. Torna possível um grau de liberdade intelectual que não tem grandes probabilidades de existir sob um regime despótico. Na Rússia de hoje não se permite qualquer obra literária que possa instilar a menor dúvida acerca da sabedoria e virtude superiores dos chefes. Os monarcas despóticos sempre suprimiram, até onde lhes era possível , qualquer sugestão de que o seu poder era excessivo. As Igrejas têm tido culpas idênticas a este respeito. (...)
Outra vantagem da democracia reside no facto de ser menos atreita a atitudes belicosas do que um governo autocrático. As vantagens da guerra - se é que há algumas! - vão beneficiar só os poderosos e eminentes nações vencedoras . As desvantagens que são muito mais evidentes, recaem principalmente sobre o comum dos cidadãos. Quase não tenho dúvidas de que, se a vontade do povo russo, neste momento histórico , pudesse prevalecer , os perigos de uma guerra entre o Oriente e o Ocidente desapareceriam por completo.(...)
Se uma terceira guerra mundial vier a eclodir - e oxalá tal hipótese não venha jamais a verificar-se -, parece-me claro que a orientação agressiva e nada amistosa do Governo russo, desde 1945, terá sido uma das maiores causas, seja qual for a faísca que provoque a explosão. Portanto, parece-me razoável supor que uma das vantagens da democracia sobre outras formas de governo reside na sua maior tendência para a paz.
Apesar de que frequentemente se tem dito em contrário, parece-me que um dos grandes méritos da democracia tem sido o de conferir às nações que a adoptam uma fortaleza maior no caso de guerra. Talvez isto não seja verdade durante os primeiros meses de uma guerra, especialmente quando, durante esses primeiros meses, as autocracias podem alcançar algumas vitórias militares. Mas tem sido verdade quando se considera a guerra na sua totalidade . Alguém que se dê ao trabalho de analisar as guerras importantes que ocorreram durante os últimos duzentos e cinquenta anos verificará que, em todos os casos , as vitórias finais pertenceram àquelas nações que mais se aproximavam daquilo a que chamamos democracia.
Bertrand Russell, "Realidade e Ficção"
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