segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Brasil em prato limpo

 


Liberdade consentida

Ouvi essa história em primeira mão. Em 1972, um colegial matando aula na praia de Ipanema tocava em sua flautinha doce, moda na época, uma música que estava estudando: o Hino Nacional. Às primeiras notas, uma sombra surgiu ao seu lado. Era um homem de certa idade, óculos Ray-Ban, cabelo à escovinha e cara fechada. "Por que está tocando o Hino, garoto?", rugiu. "Está querendo provocar?". Militar, claro. Em plenos anos Médici, o Hino Nacional, tocado obrigatoriamente nas escolas e repartições, era sagrado. Um garoto ensaiando-o baixinho na praia só podia ser provocação.


Enquanto isso, a poucos metros dali, em meio às dunas formadas pela areia despejada na praia para a construção de um emissário submarino, a turma do cinema, teatro, poesia, música popular e agregados fazia a sua revolução de sexo, drogas, rock ‘n roll, cabelo, comida natural, astrologia e demais itens da contracultura. Era a "república independente do Píer", que existiu de 1970 a 1973 e teve como musa sua mais ilustre frequentadora: Gal Costa. Daí, as "dunas da Gal".

Há pouco, a morte de Gal trouxe de volta a memória daquele tempo e não faltaram artigos românticos na imprensa falando das dunas como "um oásis de liberdade", um eterno verão, em que era proibido proibir. Só não perguntaram como foi possível toda aquela liberdade na fase mais dura da ditadura.

É uma pergunta a se fazer aos militares daqueles anos. Pelo visto, ocupados com censurar, prender, torturar, matar e sumir com os que os combatiam de arma na mão, eles achavam besteira perder tempo com um pessoal só a fim de queimar um fuminho e que pregava fazer amor, não guerra —muito menos guerrilha.

Por acaso, na mesma época, os militares estavam dando toda espécie de apoio, assessoria e até financiamento a uma nova mania: os motéis. Com o povo na horizontal ou no maior barato, era mais fácil passar a boiada.

O mundo paralelo dos que não respeitam a própria bandeira que vestem

Nunca se viu algo igual às micaretas bolsonaristas dispersas há mais de mês pelo Sul-Sudeste do País: chacrinhas sebastianistas, a clamar pela volta da ditadura militar, entre outras quimeras abomináveis, como a anulação do pleito que levou o ídolo da seita à derrocada nas urnas, a prisão de ministros, e até mesmo o impedimento da posse de Lula.

Vi a pantomima dos patriotários neofascistas apenas pela internet. Onde eu circulo elas não acampam, e portanto não se expõem a chacotas, aguaceiros e outras doenças além do fanatismo. Nossos telenoticiosos, sabiamente, não lhes dão bola. Estrangeiros ainda riram de algumas imagens inusitadamente absurdas, com os bozoloides implorando a pneus, ETs e às forças armadas que nos livrem de imaginários demônios e recuperem o que afinal já temos – liberdade e democracia – e eles, paradoxalmente, almejam destruir.

Não sei direito o que são, se apenas ingênuos e boçais, se agentes provocadores ideologicamente identificados com a ultradireita, vadios sexualmente descompensados ou baderneiros com pulsão de morte. Suspeito que já constituam uma nova subespécie de homo sapiens: o homo zapiens, mentalmente limitado pela dieta de fake news e teorias conspiratórias de que se empanturram pelas redes sociais.

Embrulhados no “lábaro estrelado”, suas palavras de ordem insurrecionais, suas ameaças (“É guerra!”) e seus refrões (“Deus! Pátria! Família! Liberdade!”) já têm cerca de um século de vacuidade e bolor. Proferidas com o erre retroflexo caipira, perdem todo o vigor que o alemão e o italiano lhes asseguravam.


Curioso por entender um pouco mais do comportamento desses vivandeiros golpistas, consultei o estudo de Michael Shermer sobre os motivos que levam seres racionais a acreditar no irracional, Conspiracy: Why the Rational Believe the Irrational. Aprendi o que pude e não foi muito. O assunto é complexo e em seu índice remissivo Jesus, Maomé, Noé, Nero, Hitler, Freud e QAnon têm lugar cativo.

Sim, Nero. O quinto César protagonizou uma das mais antigas teorias da conspiração. No incêndio que praticamente reduziu Roma a um monte de cinzas, 1958 anos atrás, Nero jogou a culpa nos cristãos, inaugurando um ardil diversionista que os nazistas ressuscitariam ao incendiarem o Reichstag e os milicos daqui no malogrado atentado do Riocentro, ambos ardilosamente atribuídos a subversivos comunistas.

Os soviéticos ainda estavam longe do poder quando na Rússia czarista surgiu e difundiu-se a “mãe” de todas as teorias conspiratórias do século passado, os apócrifos Protocolos dos Sábios do Sião, dando conta da dominação do mundo pelos judeus. Dessa fraudulenta cascata Hitler extraiu sua bíblia ideológica, Minha Luta, e a partir dela criou o nazismo, este sim, não o comunismo, um fantasma mais do que à espreita.

Já suportamos duas ditaduras justificadas pela paranoia anticomunista, também a seiva de tantos outros golpes de Estado e processos inquisitoriais cujo exemplo mais notório continua sendo o macarthismo. Não é de se estranhar que os patriotários do Bolsonaristão tenham ideia fixa no “perigo vermelho”. Sem ele, o presidente prestes a ir embora não teria sido eleito. Nem, por conseguinte, seu vice, que, dia desses, voltou a insistir naquela lorota de que, no levante comunista de 1935, soldados do Exército foram “covardemente assassinados enquanto dormiam”, falsidade jamais comprovada pelos estudiosos do período. E uma de nossas maiores contribuições ao futuro "Livro Guinness de Fake News Históricas".

O racista que denunciou um genocídio

Numa aula em que contou sobre como foi realizar a tradução para o alemão do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, o professor Berthold Zilly disse que teve receio de como seria a reação dos leitores do seu país, escaldados com a tragédia do Holocausto, ao se depararem com um livro que, logo na primeira página, abria falando em “esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”.

O temor do professor se mostrou infundado, já que a versão alemã do livro, publicada em 1994, acabou sendo bem recebida pela crítica local. Foi na condição de tradutor celebrado que Zilly deu a aula que vi na adolescência, em 1997, durante uma edição da Semana Euclidiana, evento de estudos sobre a obra de Euclides da Cunha realizado anualmente em São José do Rio Pardo (SP), onde nasci. A afirmação do professor alemão ficou na minha cabeça desde então e penso que diz muito sobre o Brasil de ontem, hoje e sempre que uma das obras literárias mais celebradas do país, que em dezembro de 2022 completa 120 anos, esteja repleta de declarações tão racistas que um de seus tradutores tenha pensado duas vezes antes de verter esses trechos para a língua de um povo que até hoje carrega a culpa de ter sido responsável por um dos maiores genocídios da história.

E diz muito sobre o Brasil que esse mesmo livro, escrito por um militar branco que acreditava na vitória inevitável de uma civilização moderna de inspiração europeia sobre o atraso representado por povos racializados, tenha se tornado uma das mais poderosas denúncias sobre os monstros gerados pelo sonho dessa mesma civilização, um retrato da violência praticada pelas elites brasileiras em nome de um projeto modernizador.

Por isso, nesse momento de rescaldo do governo Jair Bolsonaro, que expôs com uma clareza rara o quanto o ódio de classe, raça e gênero está presente entre nós e como estamos longe de ser o povo pacífico e cordial que a branquitude durante muito tempo acreditou que fôssemos, pode ser uma boa ideia aproveitar o aniversário de Os Sertões para retornar a um dos livros que melhor retratou, inclusive em suas contradições, as dimensões da violência brasileira.
Um livro esquecido pelas fogueiras

Pensando no quanto de racismo existe no texto euclidiano, chama atenção que Os Sertões ainda não tenha sido posto para queimar nas fogueiras dos debates sempre inflamados das redes sociais. Mesmo a escolha de Euclides da Cunha como autor homenageado da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2019, foi recebida quase sem controvérsias — com exceção de algumas vozes dissonantes, como as dos escritores Marilene Felinto e Dodô Azevedo. Curiosamente, a homenageada do ano seguinte, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop, recebeu uma onda de questionamentos muito maior, por causa do conteúdo de cartas pessoais em que a autora defendia o golpe de 1964. Se algumas cartas, que nem faziam parte da obra literária de Bishop, puderam gerar tantas e tão duras críticas, é de se estranhar que o debate que hoje busca derrubar homenagens, em pedra ou em palavras, a figuras da branquitude ligadas ao legado da escravidão ou do autoritarismo, tenha até hoje poupado uma obra como Os Sertões.

Afinal, é um livro que afirma com todas as letras a superioridade da raça branca sobre todas as demais e a necessidade de evitar a mestiçagem, já que a mistura de seres superiores e inferiores estaria destinada a produzir indivíduos “desequilibrados”, sempre em busca de embranquecer sua descendência por meio de “cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida”, uma vez que “a raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos”. Com declarações como essas, não é de se estranhar que Euclides da Cunha ainda não tenha se tornado um alvo de repúdio tanto quanto Bishop, Gilberto Freyre ou Monteiro Lobato?


Penso em duas explicações. Uma, talvez um tanto pessimista, é a de que talvez Euclides não seja mais odiado apenas por ser pouco lido. Publicado em 1902, Os Sertões foi elaborado numa linguagem que, mesmo para a época, já soava cheia de “termos técnicos, de um boleio de frase como quer que seja arrevesado, de arcaísmos e sobretudo de neologismos, de expressões obsoletas ou raras”, como observou o crítico literário José Veríssimo na época do lançamento. É um daqueles livros que costuma repelir leitores desavisados. Uma vez que o leitor ultrapasse a barreira da linguagem estranha, que mistura ciência e literatura, vai se ver jogado numa guerra feroz de contradições — e aí levanto uma segunda hipótese para Euclides não ter ainda entrado na lista de autores cujas estátuas devem ser derrubadas. É que o autor faz tantas afirmações opostas, uma em seguida da outra, que mesmo a sua visão racista, afirmada de maneira aparentemente inequívoca em diversas páginas, é constantemente desmentida em meio ao turbilhão da narrativa que Euclides constrói em seguida. É muito mais simples aplicar o rótulo de racista às obras de Lobato, ou mesmo de Freyre, que apresentam uma visão de mundo exposta de modo claro e coerente, do que ao livro de Euclides da Cunha, todo feito de antíteses e contradições.

Na raiz dessas contradições, que fazem de Os Sertões um livro tão único, estava a posição social de Euclides da Cunha. Os Sertões é uma obra que faz a denúncia de um crime, escrita por um autor que pertencia de corpo e alma ao grupo dos assassinos.

Nascido em 1866, em Cantagalo, no Rio de Janeiro, Euclides da Cunha foi um defensor ardoroso da República desde a juventude. Em 1888, quando estudava na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, então capital federal, protagonizou um protesto contra a monarquia, ao atirar um sabre aos pés do ministro da Guerra do imperador Dom Pedro II. O gesto rebelde — e solitário — em favor da República o obrigou a deixar o Exército. No ano seguinte, após os militares derrubarem o governo monárquico e proclamarem a República, Euclides pode ser reintegrado e concluir os estudos na Escola Superior de Guerra. Atuou como engenheiro e jornalista, abandonando a farda em 1896.

No ano seguinte, participou do debate público em torno do assunto que dominava todas as conversas na capital do país: as notícias sobre uma suposta rebelião monarquista instalada no arraial de Canudos, no interior da Bahia, comandado pelo líder religioso Antônio Conselheiro. Os “jagunços” de Canudos, como eram chamados, já haviam rechaçado três expedições do Exército enviadas contra eles, o que espalhou o pânico entre as elites do Sudeste e deu origem a todo tipo de boataria. Em No Calor da Hora: A Guerra de Canudos nos Jornais, a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão mostra que Canudos foi retratada pelos jornais da época com um nível de desinformação digno dos dos atuais grupos de Whatsapp. Entre as mamadeiras de piroca que os jornais publicavam como se fossem notícias, estavam as informações de que os rebelados de Canudos usariam armamento de último tipo e teriam ligações com grupos monarquistas estrangeiros, instalados em Nova York, Paris e Buenos Aires, com o objetivo de derrubar a recém proclamada República brasileira.

A respeito de Canudos, Euclides publicou dois artigos no jornal O Estado de S.Paulo, que não diferiam da maneira como a maioria dos jornalistas tratava o tema. Com o título A Nossa Vendeia, os artigos comparavam Canudos com uma rebelião levada a cabo pela aliança entre nobres e camponeses da região de Vendeia, na França, contra a Revolução Francesa, no século XVIII, e concluía dizendo: “A República sairá triunfante desta última prova”.

Para Euclides, a vitória inevitável da República era como um dado científico, assentado na crença positivista de que a história seguia um caminho evolutivo natural. A elite intelectual branca da qual Euclides fazia parte via a República como uma oportunidade para o Brasil se tornar uma nação moderna, aos moldes europeus. Após se livrar da escravidão e dos reis que nos prendiam ao atraso, o país agora rumava para o futuro, com apoio de seus militares, a quem deveria caber um papel decisivo na atividade política. Num tempo em que o racismo tinha status de verdade científica, um passo importante rumo à modernidade, defendida por praticamente todos os intelectuais, era o branqueamento da população por meio do fluxo migratório de europeus. Dentro de uma visão determinista, esse plano era encarado como um processo histórico inevitável. Uma vez que a história anda para a frente, era o destino da República e da civilização, brancas e de inspiração europeia, triunfarem sobre os povos e costumes de raças inferiores. “Estamos condenados à civilização: ou progredimos ou desaparecemos”, escreveria Euclides, anos mais tarde, numa conhecida passagem do seu livro Os Sertões. Símbolo do atraso e da barbárie, Canudos estava destinada a desaparecer.

Convidado a atuar como correspondente do Estadão em Canudos, Euclides foi até o sertão baiano conhecer de perto o triunfo dos belos ideais da República que ele celebrava. Sua proximidade com o Exército era tanto ideológica como física: o jornalista viajou em companhia do ministro da Guerra, comissionado como seu adido, acompanhando a quarta expedição militar enviada contra o arraial de Canudos. O que viu no campo de batalha, porém, mudou a vida de Euclides da Cunha. Descobriu que os canudenses não eram os perigosos monarquistas que ameaçavam sua querida República, mas uma gente pobre que apenas lutava pela própria sobrevivência, combatendo com coragem milhares de militares enviados até ali para destruí-los sem qualquer motivo justificável. E que o Exército da República, portadora do sonho de civilização almejado pela intelectualidade da época, era responsável pela verdadeira barbárie do conflito.

As carnificinas cometidas pelo Exército apareceram nas reportagens de alguns dos repórteres que cobriam o conflito, apesar da censura prévia imposta pelos militares. Eram narradas sem escândalo pelos jornalistas. “A hora em que partimos vimo-los seguir para a caatinga, a fim de receberem a gravata vermelha. O leitor sabe o que significa esta gravata vermelha? A morte”, escreveu, com naturalidade, Lelis Piedade, do Jornal de Notícias, sobre a degola de prisioneiros. Alguns repórteres se identificavam tanto com o lado dos militares que chegavam a declarar simpatia pela matança de mulheres e crianças em incêndios provocados por dinamites do Exército. “E o incêndio lavrava desesperado e violento, devorando com suas labaredas, casas, homens, mulheres e crianças, nada poupando, nada respeitando. (…) E assim passaram-se uns 50 minutos de uma expectativa ansiosa, de um desespero simpático para nós e de agonia para eles, os relapsos da lei e de ordem, os desagregados da sociedade”, descreve Favila Nunes, da Gazeta de Notícias.

A rebelião chegou ao fim em outubro de 1897, quando o valoroso Exército brasileiro matou até o último combatente, degolou todos os prisioneiros, arrasou o arraial com querosene e dinamite e levou mulheres e crianças que sobraram para serem dadas de presente ou vendidas como trabalhadoras domésticas para pessoas de bem. Estima-se que o massacre tenha deixado 25 mil mortos, o que faria de Canudos um dos maiores assassinatos em massa cometidos por um governo contra seu próprio povo na América Latina.

Se não chegou a defender em suas reportagens as matanças cometidas pelos militares, Euclides também não as denunciou. Seus textos de correspondente omitiram os abusos cometidos pelos militares, não se sabe se por decisão própria ou por efeito da censura militar sobre os repórteres correspondentes. Levou cinco anos para o jornalista relatar os crimes cometidos pela República em Canudos, por meio do livro Os Sertões, que publicou em dezembro de 1902. Era o seu “livro vingador”, como Euclides o chamava.

Uma obra contraditória desde a primeira página. Logo após o trecho em que enuncia a regra universal e inevitável do esmagamento das raças fracas pelas fortes, que tanto incomodaria o seu tradutor alemão nove décadas depois, o autor afirma que, embora a destruição de Canudos pela civilização republicana tenha seguido essa norma universal, “foi, na significação integral da palavra, um crime”. De cara, delineia o principal embate do livro. Do seu lugar de fala de homem branco, republicano, urbano, habitante do litoral, ex-militar e fruto de uma educação europeizada, Euclides enxergava o mundo por meio de instrumentos ideológicos que eram incapazes de darem conta do que havia visto no sertão de Canudos. O escrúpulo jornalístico de Euclides o levou a descrever os fatos como haviam se apresentado a ele e a denunciar todo o horror que havia apurado, mas não conseguiu abrir mão do racismo científico tão em moda na época, e que havia sido criado justamente para justificar o imperialismo, a escravidão e a prática de massacres como o de Canudos.

Obrigado pelo seu senso de pesquisador e repórter a contar como foi o massacre de Canudos, mas incapaz de abandonar a visão de mundo racista que essa mesma narrativa desmentia, Euclides abre mão de qualquer tentativa de síntese e faz da contradição a base da sua obra. Ao mesmo tempo em que lamenta o desequilíbrio gerado pela mestiçagem no país reclama da falta de “unidade de raça” entre os brasileiros, destaca a força dos habitantes do sertão (“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”), a quem chama de “rocha viva da nossa raça” e que transforma nos heróis de seu livro. Já os militares, também mestiços, porém representantes da civilização branca, racional e científica em que Euclides acreditava, vão se revelar, no campo de batalha, tão fanatizados quanto seus inimigos:

“A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória — com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagroso…”

Pior. Os mais chocantes atos de selvageria retratados no livro não são praticados pelos canudenses, mas pelos representantes armados da República, como a degola de prisioneiros, que, agora sim, Euclides descreve em detalhes.

Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.

Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido…

Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.

Sem nunca abrir mão do próprio racismo e da crença positivista na República e na civilização, Euclides faz de Os Sertões uma poderosa denúncia sobre os crimes provocadas em nome de tudo o que acreditava. Como afirma Walnice Nogueira Galvão:

“A verdade é impossível: a verdade do livro está em suas contradições. A ideias vão e voltam, o argumento que se expõe num dado passo é seguido de seu contrário, logo depois ou centenas de páginas adiante. Tudo isso mostra, no seu movimento de vaivém, a impossibilidade vivida pela inteligência brasileira de entender o fenômeno e de tomar um e um só partido. Essa dificuldade é de ontem e é de hoje. O livro narra o movimento da inteligência, que, no caso, é de seu autor, em demanda da sínteses impossível reveladora da verdade.”
Uma acusação sem acusados

Não há qualquer ambiguidade ou contradição, porém, quando Euclides da Cunha afirma que a campanha de Canudos “foi, na significação integral da palavra, um crime”. Suas vítimas? A população de Canudos. Seus algozes? Bom, aí a coisa fica um pouco mais complicada.

Euclides em nenhum momento indica os responsáveis pelo crime que denuncia. O presidente da República, Prudente de Morais, responsável em última instância pelo massacre, e que havia feito a promessa de que “em Canudos não ficará pedra sobre pedra”, nem ao menos é mencionado no livro. O ministro da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, que comandou as operações do Exército no local, é mencionado de passagem, descrito como “um homem frio, eivado de um ceticismo tranquilo e inofensivo”.

O autor do crime denunciado em Os Sertões é um sujeito coletivo e sem nome, referido na primeira pessoa do plural: “Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados… Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta. Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Além de vago, é um sujeito que não tem consciência do mal que praticou: “tivemos na ação um papel de mercenários inconscientes”. É verdade que não se trata apenas de um plural majestático usado em nome da modéstia. Há algo, sim, de autocrítica, nesse uso do “nós”, especialmente se a gente pensar no papel de Euclides da Cunha como republicano, ex-militar e autor de “A Nossa Vendeia”. Seja como for, escrevendo da elite branca para a elite branca, sem a menor pretensão de ser lido para além desse círculo, Euclides estava dizendo aos seus leitores: todos nós somos culpados.

E, quando todos são, ninguém é.

A postura do “livro vingador” de Euclides contrasta com outra denúncia realizada por um escritor, três meses após o massacre de Canudos, do outro lado do Atlântico: a carta aberta enviada ao presidente da República pelo autor francês Émile Zola, em que denunciava o antissemitismo do Exército francês contra o oficial judeu Alfred Dreyfus, injustamente acusado de traição e espionagem. Publicado na primeira página do jornal L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898, sob o título em letras garrafais “Eu acuso”, a carta se encerrava com oito parágrafos começados por essas duas palavras, em que Zola nomeia cada um dos oficiais responsáveis pela injustiça.

Ao denunciar o “caso Dreyfus”, Zola se tornou o protótipo do intelectual europeu dedicado a lutar por causas sociais. Na mesma época, Os Sertões fez de Euclides da Cunha um protótipo de intelectual branco à brasileira, com consequências bem mais tranquilas para sua vida. Enquanto Eu acuso fez Zola ser condenado por difamação e obrigado a se exilar na Inglaterra, Os Sertões transformou Euclides da Cunha em uma celebridade literária instantânea, elogiado por todos os críticos, que em menos de um ano entrou para o Instituto Histórico e Geográfico Nacional e para a Academia Brasileira de Letras. Tanto que, em 1909, quando foi morto ao tentar assassinar o amante da sua esposa, a opinião pública em peso ficou ao lado de Euclides, embora o responsável pela sua morte, o militar Dilermando de Assis, tivesse claramente agido em legítima defesa.

“Não gosto do clima de festa”, diria Mano Brown, e é de fato muito estranho pensar no clima de celebração com que Os Sertões foi recebido, por conta dos méritos literários da obra. “Com tudo isso, nem é tanto de admirar a tramitação rápida do canto do bode expiatório entoado pelo verdugo para o bode exultório em que se tornou o livro e, com ele, seu autor”, aponta Walnice Nogueira Galvão. Retrato de um genocídio, Os Sertões virou um motivo de comemoração. O massacre de Canudos virou algo a ser celebrado por conta do talento artístico de Euclides, sem qualquer consequência real para os seus algozes. O livro não foi capaz de motivar uma única investigação, nem mesmo um processo administrativo. Parece que nem era essa a intenção do autor, que nunca mencionou se ressentir da ausência de impactos reais de sua denúncia. Afinal, Euclides estava apontando o dedo para pessoas que eram como ele. Tudo indica que a intenção do “livro vingador” era apenas fazer com que a elite branca se sentisse um pouco culpada pelo crime que havia cometido: não era o caso de punir alguém de verdade.

Principal alvo da denúncia de Os Sertões, os militares nunca se desculparam pelo que fizeram em Canudos. Ao contrário. A Polícia Militar do Estado de São Paulo, força reserva e auxiliar do Exército, faz questão de celebrar uma suposta ligação mítica com os autores do massacre, tanto em um Monumento aos Heróis de Canudos, instalado no Quartel da Luz, no centro da capital paulista, como em seu Brasão de Armas, adornado com 18 estrelas que homenageiam ações de militares em momentos históricos variados, a maioria em golpes e ataques a movimentos sociais. O massacre de Canudos é homenageado pela 8ª estrela. O golpe de 1964, pela 18ª.

Levou décadas para que Os Sertões recebesse as primeiras resposta por parte dos militares, geralmente em textos contidos, respeitosos e sem traço de autocrítica. Uma resposta mais dura veio em 1958, com livro A verdade sobre “Os Sertões” (análise reivindicatória da Campanha de Canudos), de Dante de Melo, publicado pela Biblioteca do Exército. Mesmo escrito mais de meio século depois, o livro-resposta do militar consegue ser mais racista do que qualquer página de Euclides da Cunha. Veja só esse trecho em que Dante sugere que Euclides teria escrito um livro muito diferente se os canudenses houvessem vencido o conflito e que até o poeta Castro Alves teria ficado contra a abolição da escravidão se conhecesse o comportamento dos negros das favelas cariocas dos dias atuais.

Se a 4ª Expedição resultasse no fracasso das anteriores, ou se entravasse ela em situação indecisa como esteve a pique de acontecer, e a conflagração sertaneja se estendesse, alentando a força moral do monarquismo assim fortalecido; se, de volta de Canudos, Euclides da Cunha ficasse para escrever seu livro, enquanto no interior continuassem a resistência fanática espalhada e crescente, outro, muito outro por certo teria sido o tom e o teor de “Os Sertões”.

Assim também o cantar de Castro Alves, se hoje viesse à vida e criado fosse assistindo à liberdade solta em que se exercitam o nosso negroide comum e o negro das favelas cariocas, geralmente labrego e repontão.

Que sentimentos despertariam as gafieiras e futebolices, as molecadas ou a chavasqueira de tanto malandroide fula, gandaieiro por tineta, ou mazombo por força de mefíticos recalques?…

Certo ficaria indiferente o genial condoreiro, se não orientasse à ré da direção tomada, a proa do seu estro.

Sem nunca ter recebido qualquer acusação pelos crimes de Canudos, o Exército pode seguir ignorando críticas e por fim celebrando sua atuação no episódio. O mesmo comportamento que os militares adotariam ao longo dos séculos seguintes, cometendo crimes e sendo anistiados por eles. Prudente de Morais também teve sorte: o primeiro presidente civil do Brasil costuma ser chamado de muita coisa, até de “Abraham Lincoln brasileiro”, mas poucos se lembrariam de chamá-lo de genocida ou de colocar sua figura ao lado de governantes como Augusto Pinochet, Alfredo Stroessner ou Jorge Videla, apesar de seu governo ter comandado um dos maiores massacres da história latino-americana. E ainda tem gente que acredita em “julgamento da história”.

Nesse sentido, a trajetória Os Sertões, com sua acusação sem acusados, se filia à tradição conciliatória das elites, que sempre anistia os crimes dos que estão por cima, enquanto promove massacres e genocídios contra os de baixo. Ao mesmo tempo, como parte de mais uma das contradições que são sua marca, o livro se destaca, entre as obras dos autores da branquitude que se dedicaram a buscar “interpretar o Brasil”, como a que melhor retratou o caráter genocida do projeto de país executado por essas elites.
No coração das trevas

Nos últimos quatro anos, muita gente se perguntou que desvio ocorreu na história do Brasil para desembocar em um movimento de extrema-direita que celebra a violência com tanto orgulho que parece refletir o lema “Viva la muerte” dos fascistas espanhóis. A violência, contudo, sempre foi um traço estrutural da sociedade brasileira, por mais que a intelectualidade branca preferisse ignorá-la.

Dos autores famosos por suas obras que buscavam compreender o Brasil, poucos se deram conta disso, mas é porque escreviam a partir do conforto de suas vivências nos lugares tranquilos do privilégio branco. Interpretando o país a partir da sua condição de filho influente da elite cafeeira paulista, Paulo Prado enxergava no Brasil um país anêmico, a quem faltava o sangue de uma guerra ou de uma revolução para poder evoluir — ignorando o quanto de sangue negro e indígena derramado havia nessa história. Gilberto Freyre, por sua vez, ao pensar na questão racial cercado de empregados negros, dóceis e uniformizados, na sua bela casa no bairro nobre de Apicucos, no Recife, como aponta a jornalista Fabiana Moraes, só podia concluir que o Brasil vivia uma linda “democracia étnica”.

Diferente de todos esses, contudo, Euclides da Cunha baseou sua interpretação do Brasil não na sua realidade de homem branco, mas no mergulho que fez no “coração das trevas” de um massacre comandado nos sertões pela elite de que fazia parte, em nomes de ideais que também eram os seus.

Os conflitos que vemos em Os Sertões — a gente pobre massacrada por homens fardados, a destruição de vidas provocada em nome de uma ideia de modernização implantada de cima para baixo, a heróica resistência dos pobres contra o massacre cotidiano, o racismo, o culto à morte — permanecem muito atuais porque são os mesmos que a gente denuncia na Ponte Jornalismo. Todos os dias, falamos de policiais militares, orgulhosos herdeiros simbólicos dos matadores de Canudos, cometendo massacres nos territórios chamados de favelas, uma palavra que se espalhou pelo Brasil justamente a partir do conflito ocorrido no sertão baiano. É que, com o fim da guerra, muitos soldados temporários que o Estado usou para fazer seu trabalho sujo em Canudos se viram sem salário nem moradia e acabaram erguendo barracos improvisados no Morro da Providência, na então capital federal do Rio de Janeiro, e apelidaram o lugar de favela, pela semelhança com um monte chamado de Morro da Favela, que havia junto ao arraial baiano onde haviam combatido.

E permanece muito atual, ainda, a perplexidade, na forma de vertigem, que acomete o narrador ao final de Os Sertões, quando falha ao tentar descrever os momentos finais de Canudos.

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem…

É a vertigem de quem se depara com a realidade do genocídio e não encontra em suas teorias, crenças ou vivências nada capaz de explicar tanto derramamento de sangue. A perplexidade de Euclides da Cunha com a violência da República é a mesma de quem olha para o Brasil de hoje, democrático e republicano, e constata que o Estado segue matando nas favelas atuais do mesmo jeito que fazia junto ao Morro da Favela em Canudos, com a mesma crueldade e igual garantia de impunidade.

Chega ao fim o reinado da primeira família presidencial brasileira

O primeiro diploma superior que Lula recebeu na vida foi de presidente da República em 2002. O segundo, em 2006, de presidente. E o terceiro, logo mais à tarde, outra vez de presidente da República. Ele diz que não será candidato à reeleição daqui a quatro anos. Mas se fizer um bom governo, poderá ser.

O de hoje é o segundo dos três atos magnos do rito democrático no Brasil. O primeiro aconteceu em 30 de outubro passado, quando foi eleito no segundo turno o 39º presidente da República do Brasil. Lula ganhou com 50,9% dos votos válidos. O terceiro ato magno será no próximo dia 1º de janeiro quando ele tomará posse.

Desde a redemocratização do país em 1985, somente um presidente negou-se a transferir a faixa ao seu sucessor, escafedendo-se pela porta dos fundos do Palácio do Planalto – João Baptista de Oliveira Figueiredo, o último do ciclo dos generais da ditadura militar de 64 que suprimiu a democracia por 21 anos.

A democracia foi suprimida sob a esfarrapada desculpa de que o comunismo a ameaçava. O presidente eleito Tancredo Neves baixou ao hospital na véspera de ser empossado. Figueiredo recusou-se a passar a faixa ao vice, José Sarney, porque não gostava dele. Na verdade, foi embora por uma porta lateral.


Filhote da ditadura, afastado do Exército por ter planejado atentados terroristas a quartéis, Bolsonaro quer repetir o gesto de Figueiredo que não fez nenhuma diferença para Sarney. O general recolheu-se ao seu sítio em Petrópolis, reformado de graça por empreiteiras que prestaram serviços ao governo.

Bolsonaro terá melhor sorte: a seu pedido, o PL, partido ao qual se filiou para disputar a reeleição, pagará o aluguel da mansão onde ele pretende morar em Brasília, a montagem de um amplo escritório de trabalho, e suas despesas com viagens. Figueiredo pediu para ser esquecido, e foi. Bolsonaro quer ser lembrado.

Figueiredo deve ser lembrado por três importantes decisões que tomou: deu continuidade à abertura política inaugurada por seu antecessor, o general Ernesto Geisel; proclamou a anistia que permitiu a volta ao país de exilados políticos; e respeitou o resultado da eleição pelo Congresso da dupla Tancredo-Sarney.

Pelo que Bolsonaro quer ser lembrado? Por legar um país com o triplo das armas que tinha no início de 2019? Por receitar cloroquina contra uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros? Por enfraquecer a democracia como nenhum presidente o fez? Por estimular um golpe às vésperas de sair?

O Brasil escapou de uma nova era de obscurantismo ao impedir a reeleição de Bolsonaro. Como estaríamos a essa altura? Com ele a cobrar do Congresso o expurgo de ministros do Supremo Tribunal Federal? “O patriotismo é o último refúgio do patife”, disse no século XVIII o poeta e ensaísta inglês Samuel Johnson.

Na semana passada, ao quebrar um silêncio de quase 40 dias, Bolsonaro exaltou os golpistas acampados à porta de quartéis à espera da fala das armas. Depois, ao chorar abraçado a um menino e diante de devotos que cantavam o Hino Nacional, Bolsonaro não chorou pelo Brasil, mas por ele mesmo e seus filhos.

Chega ao fim o turbulento reinado da primeira família presidencial brasileira, capítulo imprevisto da nossa história que não deixará saudades, só lições.