quinta-feira, 19 de junho de 2025

Pensamento do Dia

 


Ao atacar Bolsa Família, 'rei do ovo' mostra como pensa certa elite no Brasil

Conhecido como “rei do ovo”, Ricardo Faria gosta de acordar com as galinhas. Aos 50 anos, o bilionário desperta às quatro da manhã para se exercitar. Pratica musculação, tênis e beach tennis. “Adoro ganhar dos jovens de 20 e poucos”, gabou-se, em reportagem recente. O texto informa que ele tem dois aviões a jato e uma casa de R$ 75 milhões num condomínio de grã-finos em São Paulo.

Além de ostentar um estilo de vida atlético, o dono da Global Eggs é adepto do esporte de falar mal do Brasil. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele disse que o país estaria “ficando para trás”. Criticou o Judiciário, as leis trabalhistas e os programas de transferência de renda. “As pessoas estão viciadas no Bolsa Família”, declarou, culpando as políticas sociais por uma suposta dificuldade de contratar.

Faria não apresentou nenhum dado para sustentar as afirmações. Nem poderia. “As evidências mostram o contrário do que ele disse. Quando o Bolsa Família se expande, o emprego com carteira assinada cresce. E muita gente que não recebe o dinheiro passa a se beneficiar do aumento da renda de quem recebe”, afirma o economista Marcos Hecksher, do Ipea.

Em artigo recente, o pesquisador descarta a tese de um “efeito preguiça” sobre os beneficiários . “A hipótese de que o programa deixe as pessoas sem vontade de trabalhar não se sustenta. O que elas passam a rejeitar é o trabalho aviltante, o que é positivo”, diz. Segundo a plataforma de empregos Indeed, um operador de produção da Granja Faria, que pertence ao dono da Global Eggs, ganha em média R$ 1.670 ao mês.

Além de estimular o emprego formal, o Bolsa Família ajudou a erradicar a fome, reduzir a pobreza e manter crianças na escola. Por isso conquistou prêmios internacionais e ganhou o apoio do Banco Mundial, que ajudou a adaptá-lo para outros países.

As críticas do “rei do ovo” revelam menos sobre os pobres do que sobre a cabeça de certo tipo de empresário brasileiro. Na entrevista à Folha, Faria se disse contrário ao projeto de reforma do Imposto de Renda, que prevê isentar quem recebe até R$ 5 mil e cobrar uma taxação mínima dos mais ricos. Citado na lista da Forbes, o bilionário ressalvou que não falava em causa própria. Como bom patriota, ele transferiu sua residência fiscal para o Uruguai.
Bernardo Mello Franco

O golpismo corre nas veias

Sentado no banco dos réus, Jair Bolsonaro tentou, mas não há como fingir que os ataques à democracia partiram apenas dos “malucos” que o apoiam – como ele se referiu aos incautos que se dispuseram a enfrentar sol e chuva em defesa de seu plano golpista – nem os minimizar como arroubos retóricos. Em recente entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), do alto de sua condição de primogênito do ex-presidente, escancarou com brutal naturalidade aquilo que sempre esteve na raiz do bolsonarismo: o desprezo contumaz pelo Estado Democrático de Direito e a disposição para atacar as instituições republicanas até por meios violentos, quando necessário.


O “zero um” usou a entrevista para transmitir recados aos que pretendem receber o apoio político do pai na eleição presidencial de 2026. Segundo o senador fluminense, o compromisso com a concessão de um indulto a Jair Bolsonaro – indicação de que a família assume que não há defesa jurídica capaz de livrar o chefe de uma condenação à prisão – é o mínimo que Bolsonaro espera receber em troca da unção. O “fulano ou fulana”, como disse Flávio, que pretende obter o apoio político do réu no pleito do ano que vem precisará ir “muito além disso”. Considerando que o Supremo Tribunal Federal (STF) decerto julgará inconstitucional um eventual indulto a Bolsonaro, o ungido deverá mostrar publicamente disposição para “brigar com o STF” e, inclusive, para fazer “uso da força”, se for preciso.

Ao que tudo indica, Bolsonaro entrou em modo desespero ao se ver premido pelas circunstâncias jurídica e política que o cercam, uma intimamente ligada à outra. À medida que seu destino penal fica cada vez mais claro, vale dizer, a condenação criminal pela tentativa de golpe e a manutenção de sua inelegibilidade, mais os partidos de centro e de direita que pretendem se opor à candidatura lulopetista em 2026 caminham em direção à independência do bolsonarismo. Os movimentos políticos nesse sentido são evidentes. Ademais, por mais que Flávio tenha se esforçado para dizer que o debate sobre a anistia aos golpistas “está mais vivo do que nunca”, na realidade ninguém mais em Brasília trata como séria a perspectiva de avanço de uma agenda que, como ficou claro, interessa apenas a Bolsonaro e a rigorosamente mais ninguém.

A chantagem explícita – condicionar o apoio político de Bolsonaro à concessão de um indulto juridicamente descabido e a um compromisso de confronto violento com o STF – não é apenas mais um atentado à ordem constitucional sustentada, entre outros pilares, pela separação de Poderes. É uma declaração de guerra à própria democracia brasileira. A desfaçatez com que o sr. Flávio Bolsonaro disse o que disse mostra que o senador não traiu a genética: o golpismo corre nas veias da família. São declarações de evidente desdém pelos limites institucionais estabelecidos pelo regime democrático.

Não chega a ser uma novidade, pois sempre que as leis e as instituições contrariaram os interesses do clã Bolsonaro, as “saídas”, digamos assim, cogitadas passaram, necessariamente, por intimidações, ameaças e movimentos de ruptura. A rigor, a entrevista de Flávio Bolsonaro dá sequência a uma longa trajetória de desrespeito do bolsonarismo à ordem democrática. Recorde-se da infame história pública do mau militar, mau deputado e mau presidente, passando pela ameaça feita por Eduardo Bolsonaro, ainda em 2018, sugerindo que bastariam “um soldado e um cabo” para fechar o STF, até a cogitação de um golpe de Estado em 2022, culminando na Ação Penal 2.668, ora em curso.

Ainda assim, é inaceitável que um senador da República, em pleno exercício do mandato, articule um discurso de enfrentamento violento às instituições republicanas, particularmente o STF, como fez o sr. Flávio Bolsonaro na entrevista à Folha. A sociedade brasileira não pode normalizar o golpismo escancarado em português cristalino, nem muito menos ceder a chantagens de quem coloca os interesses mesquinhos de sua família acima da estabilidade social, política e econômica do País.

A era trump e o negacionismo tecnoregulatório

Passou na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos uma emenda que literalmente proíbe por 10 anos qualquer tipo de regulação de IA pelos estados. Isso se soma a outras três notícias do início deste ano, aparentemente sem relação entre si, mas que revelam um desafio urgente para todos que desejam uma internet mais segura, igualitária e democrática: chamarei este desafio de negacionismo tecnoregulatório. A primeira notícia é que os Estados Unidos, sob o governo Donald Trump, se recusaram a assinar uma declaração internacional pelo desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial que sejam “éticas”, “abertas”, e “inclusivas”.

A segunda, é que a Alphabet, empresa controladora do Google, desfez a sua promessa de não desenvolver tecnologias de IA capazes de criar “danos coletivos”, como IAs para armas destruição e vigilância em massa. E a terceira é que Elon Musk, no uso das atribuições que seu novo cargo no governo dos EUA lhe confere, cortou o financiamento do Escritório de Proteção Financeira e do Consumidor (CFPB na sigla em inglês) – agência do governo norte-americano que teria capacidade de fiscalizar e regular o X ante os novos objetivos de Musk de transformar a rede social em uma plataforma integrada de transações 

Os fatos acima são reveladores da aliança explícita entre o governo Trump e as gigantes de tecnologia dos EUA – aliança esta que parece beneficiar estas últimas, dentre outras maneiras, ao criar um suporte institucional-político-ideológico contra qualquer tipo de regulação democrática das tecnologias digitais. É o negacionismo tecnoregulatório.


O termo negacionismo tem sido usado para descrever a atitude – comum à extrema-direita – de desacreditar realidades que põem em risco toda a humanidade (especialmente os grupos mais vulneráveis), com o objetivo de impedir ações políticas concretas que minimizem ou impeçam os danos – mas que também vão de encontro a interesses político-econômicos específicos. É o caso do negacionismo climático, que fez Trump sair do acordo de Paris pela segunda vez. E o negacionismo sanitário, que fez políticos de extrema-direita ao redor do mundo (inclusive Bolsonaro, no Brasil) se oporem às medidas protetivas na pandemia de Covid-19. O próprio Trump, seguido por Javier Milei (da extrema-direita argentina), saiu da Organização Mundial de Saúde (OMS) – órgão que ganhou protagonismo na definição de medidas sanitárias durante a pandemia.

O novo negacionismo tecnoregulatório trabalha para desacreditar a constatação de que os desenvolvimentos tecnológicos atuais trazem consigo riscos para a humanidade, para as democracias, para as classes menos favorecidas e para as minorias étnicas e identitárias. As redes socioeconômicas, ideológicas e políticas que fazem esta negativa persistente de lidar com a realidade de maneira ética, responsável e sustentável podem ser reveladas pela análise da associação entre três fatores preexistentes: o solucionismo tecnológico, o tech backlash e a disputa geopolítica entre EUA e China. Falarei um pouco de cada um deles.

Para salvar tudo, clique aqui, é o título do artigo de Evgeny Morozov, pesquisador bielorusso que popularizou o termo “solucionismo tecnológico”. Ele trata da crença imbricada na sociedade contemporânea, pela qual o desenvolvimento tecnológico, por meio da inovação constante e conectividade digital generalizada, seria sempre a solução para os problemas que afligem os humanos. Isto seria parte de uma propaganda ideológica que ajudou na expansão acrítica das lógicas econômicas e mercadológicas que alimentam as gigantes de tecnologia.

O solucionismo tecnológico é um pressuposto retórico da lógica mais ampla de plataformização que, vulgarmente falando, seria o processo pelo qual tudo na vida é resolvido por um aplicativo disponível num smartphone. Reescreveria o título do citado artigo de Morozov assim: para salvar tudo, use este dispositivo móvel e baixe este app.

É esta a associação mais visível aos nossos olhos do processo que fez a humanidade ficar cada vez mais imbricada em sistemas sociotécnicos que produzem dados digitais que alimentam algoritmos de inteligência artificial e fluem sempre na direção dos servidores de um mesmo grupo pequeno de empresas de tecnologia: as gigantes do acrônimo GAFAM (Google, Alphabet, Facebook, Amazon e Microsoft).

Estas corporações compõem uma teia mais ampla de infraestruturas, políticas, retóricas, interfaces, termos de uso, entre outros atores, que ao mesmo tempo em que incentivam, se alimentam de uma realidade básica: a circulação de dados digitais. Tais dados são o principal motor de mais inovação, imbricando mais tecnologias no mundo social, que produz mais dados e assim por diante…

Já o termo “tech backlash” ou “big-tech backlash” foi popularizado pelo jornalismo especializado para definir a ascensão de um senso crítico maior ao processo descrito anteriormente. Desde meados de 2016 surgiram casos como o da Cambridge Analytica, esquemas de desinformação, polarização e ataques à democracia. Além disso, críticas a questões de privacidade, vigilância e trabalho precário mediados pela economia de plataformas digitais começaram a circular na sociedade. Esta “virada de chave” em parte relevante e influente de setores da sociedade no modo de ver as tecnologias digitais, levou a pressões institucionais para regular as plataformas digitais e as realidades mediadas pelas mesmas (trabalho, produção de conteúdo, distribuição de informação, comércio etc.). É isto que se convencionou chamar de tech backlash. Não é a antítese do solucionismo tecnológico, mas sua ressignificação ativa. Eu diria que a própria popularização da obra de Morozov faz parte das forças em associação no tech backlash. Isto fez as principais empresas de plataformas entrarem em posição de batalha para parar com a expansão de arcabouços regulatórios que limitassem seus modelos de negócio.

Para não perder o fio da meada entre ataques e contra-ataques, já posso afirmar que o negacionismo tecnoregulatório seria a busca por desconstrução ativa do tech backlash. Não apenas desconstrução em termos retóricos, mas em termos institucionalmente sensíveis: como o desmonte de agências fiscalizatórias, a saída de acordos regulatórios e o bloqueio de novas regulações. Para isso, é necessário uma influência forte nas instituições de Estado, especialmente daquelas com maior poder fiscalizatório sobre as principais gigantes de tecnologia: o governo dos EUA.

É aí que entra o terceiro nó de relevância para compreender esta rede: a disputa geopolítica entre EUA e China. Este desafio para os EUA supera e precede os quereres da administração Trump. É a disputa geopolítica de nossa era, revelada pelo primeiro discurso de Anthony Blinken como Secretário de Estado do governo Joe Biden, em 03/03/2021, quando expressou:

(..) A China é o único país com o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para desafiar seriamente um sistema internacional estável e aberto – todas as regras, valores e relações que fazem o mundo funcionar da forma que queremos, porque isso em última instância serve aos interesses que refletem os valores do povo americano.

Sem entrar no mérito do discurso, visto que os próprios EUA têm representado ameaças à estabilidade e abertura do sistema internacional, o que ele revela é que a disputa de influência econômica, diplomática, militar e tecnológica entre EUA e China é uma realidade séria para eles. E que eles estão dispostos a mobilizar recursos e energia política nesta disputa. A retórica da administração Trump contra a China é ainda mais radical. Nessa disputa, a corrida pelo desenvolvimento de inteligências artificiais mais eficientes é um campo de batalha essencial. Corneliu Bjola, professor de estudos diplomáticos da Universidade de Oxford, afirma que a revolução digital em andamento altera profundamente todas as dimensões da política internacional. Para ele, a habilidade de atores estatais e não-estatais de empregar métodos digitais de produção e análise de dados para prever e gerar eventos é de tanta relevância estratégica como o poderio militar. Vladimir Putin, em 2017, disse que aqueles que se tornarem líder no campo da inteligência artificial se tornarão os “governadores do mundo”.

Ao tratar da não-assinatura do acordo sobre IA em Paris, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, disse aos delegados que um excesso de regulamentação da IA poderia “matar uma indústria transformadora justamente quando ela está decolando”. Esta ideia de que “a regulação atrasa a inovação” é central do argumento do negacionismo tecnoregulatório. E se a inovação é um imperativo geopolítico estratégico na disputa com a China, o argumento torna-se ainda mais forte. Se a regulação de IA atrasa a inovação, a regulação de IA é uma ameaça na disputa com a China. A moratória de 10 anos para regulação de IA é o resultado político-institucional mais forte do negacionismo tecnoregulatório até o momento.

Importante salientar, que o adjetivo tecnoregulatório enfatiza não apenas o fato de que é um negacionismo que busca negar as regulações democráticas, mas inclui a defesa de outro tipo de regulação. O adjetivo democráticas é necessário, pois é precisamente este o tipo de regulação que se busca evitar. Pois aquilo que não é regulado por lei, está sendo disciplinado pelas lógicas embutidas nas tecnologias. Um dos principais poderes das plataformas digitais está em sua capacidade de passar a mediar amplos setores da sociedade até que regular seus efeitos seja um desafio com custos sociais e políticos impossíveis de serem ignorados. Mas enquanto os efeitos não são regulados, seus termos de uso, interfaces, políticas de privacidade, modelos de negócio e algoritmos regulam a sociedade em sentido amplo. As tecnologias e corporações redefinem as lógicas socioeconômicas em busca da reprodução de suas lógicas mercantis. A busca por evitar regulação, de forma contraditória, é uma corrida sobre quem (ou o que) vai exercer maior poder regulatório sobre o mundo: se é a sociedade ou se são os oligopólios de tecnologia.
Walmir Estima

Difícil dizer algo sobre o golpismo

Não estamos testemunhando um processo destinado a esclarecer um crime comum, urdido e cometido por marginais; estamos atônitos assistindo ao supremo magistrado da nação ser acusado de tramar contra o regime democrático que ele jurou preservar e, numa lambuja cruel, seus auxiliares mais próximos e poderosos como chefe de gabinete, ministros e, pasmem, comandantes das Forças Armadas e de órgãos de inteligência.

Que dizer numa crônica desse espetáculo vergonhoso, negado pelo negacionismo ideológico dos asseclas e mal-educados apoiadores?

É elite governamental envolvida num inexequível golpe de Estado “dentro das quatro linhas”, um projeto que é cabível somente na cabeça de quem transcende os limites da racionalidade e acha possível acender velas a Deus e ao diabo. Algo, aliás, típico do nosso adoentado sistema político.


Acresce a tudo isso um relator que muitos pintam como promotor, mas que, nos seus interrogatórios, arrola documentos, declarações e reuniões reveladoras de índoles e anseios antidemocráticos dos golpistas gorados, confirmados nas desculpas evasivas e inermes dos interrogados.

As inquirições podem desagradar aos golpistas, mas não se pode negar seu nível de competência, num contraste fulminante com as pífias performances dos acusados e com a pusilanimidade de seu herói.

O que tenho visto nesse vergonhoso evento, que, infelizmente, não é o único de nossa História, corta o coração de um velho como eu. E envenena o dos jovens e de quem pensava a História como progressiva, mas verifica que, no Brasil, ela marcha para trás.

Graças à nossa estadomania, à estadofilia e à estadopatia, “fomos” tudo: reino, monarquia, República Velha e Nova, ditadura e duríssimo regime militar. Só nos falta legalizar o ladravaz salvacionismo populista.

São múltiplas as motivações da trama golpista. Polarização, anistias, urna eletrônica como instrumento de roubo eleitoral, populismo salvacionista, nacionalismo estatizante contra iliberalismo.

Mas o que tenho testemunhado e aqui discutido é o avacalhamento das responsabilidades coladas nos cargos públicos por ocupantes que não honram seus encargos e suas demandas de impessoalidade, seja por malandragem, seja por motivos políticos. O poder à brasileira matou a dialética entre cargos e encargos, e assim escalamos canastrões para cargos públicos cruciais, pondo em risco a democracia e a própria confiança no país. Sem o enlace entre pessoa e papel, cargos públicos como o de presidente correm o permanente risco de ser ocupados por canastrões e perdem sua legitimidade como instrumentos de transformação coletiva.

O que dizer, pois, desses rituais em que valentes viram pusilânimes, senão reafirmar que o mundo vive uma enorme incoerência destrutiva? Prova cabal dessa incoerência é o indefensável, contraditório e inexecutável golpe “dentro das quatro linhas”.

Quando o cão louco morde: Netanyahu, o Iran e o império que o alimenta

Há momentos na história em que a diplomacia morre com um gemido, não com um estrondo. Mas, desta vez, pode morrer com ambos. Israel, embriagado por décadas de agressões impunes, agora se lançou do abismo da irresponsabilidade militar, arrastando seus facilitadores americanos e o Oriente Médio em geral para mais um capítulo de caos. O alvo dessa nova birra sionista? O Irã — uma nação de 90 milhões de habitantes com memória de sobra, mão firme e notável tolerância a provocações. Até agora.

Por mais de um ano, o Irã exerceu algo que beira a santa contenção. Enquanto ataques aéreos israelenses incendiavam Damasco, assassinos espreitavam nas ruas de Teerã e misteriosas "falhas técnicas" afetavam a infraestrutura iraniana, a República Islâmica não mordeu a isca. Poderia ter retaliado uma dúzia de vezes, e com razão.

Mas, em vez disso, optou por manter o barril de pólvora regional seco, ao mesmo tempo em que se envolvia em negociações sérias e de boa-fé com os Estados Unidos sobre seu programa nuclear. Dizer que o Irã era o adulto na sala não é um elogio — é uma condenação de todos os outros presentes.

Mas Netanyahu, o primeiro-ministro israelense cada vez mais instável, cruzou a linha final. Jatos israelenses atingiram território iraniano diretamente, em uma escalada chocante que revela toda a extensão da insanidade de Tel Aviv. Não se tratou de uma resposta a uma ameaça. Foi a ameaça. Um Estado de apartheid com armas nucleares acaba de lançar ataques preventivos contra um Estado sem armas nucleares engajado em diplomacia.

Mesmo para os baixos padrões de belicosidade israelense, isso é desequilibrado.

O mundo deveria estar gritando. Mas o mundo, mais uma vez, está em silêncio — porque Washington é cúmplice. Como sempre.

Deixemos de lado as ilusões: a política externa de Israel não é defensiva. É expansionista, supremacista e governada por um impulso messiânico de dominar a região militarmente, enquanto se faz de eterna vítima diplomaticamente. Seja em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, na Síria ou, agora, no Irã, o modus operandi é o mesmo: instigar, provocar, atacar primeiro, protestar e esperar uma ovação de pé no Capitólio.

Esse padrão não é novo. Mas o que é novo é a escala e a audácia da agressão israelense. O que começou como uma guerra genocida em Gaza — que já dura mais de vinte meses — se transformou em uma campanha regional de desestabilização.

Na Síria, Israel bombardeia aeroportos e infraestruturas impunemente. No Líbano, aproxima-se lentamente de uma guerra com o Hezbollah, na esperança de arrastar o país para um conflito devastador. E agora, o impensável: guerra aberta contra o Irã.

A estratégia de Netanyahu não é apenas imprudente; é suicida. Mas, como muitos ideólogos perigosos, ele não se importa em arrastar o mundo consigo. Seu cálculo é simples: provocar o Irã até que ele retalie, depois gritar "ameaça existencial" e exigir intervenção americana. É um jogo cínico e arriscado, que só funciona porque Washington joga junto.

Alguém poderia pensar que, depois do Iraque, Líbia e Afeganistão, os Estados Unidos teriam aprendido uma coisa ou duas sobre os custos da lealdade cega às fantasias de segurança israelenses. Mas aqui estamos de novo: o Pentágono acena com a cabeça, o Congresso aplaude e o presidente murmura algo sobre "o direito de Israel de se defender", como se o Irã tivesse decidido aleatoriamente se bombardear e culpar Tel Aviv por diversão.

O governo Biden, assim como seus antecessores, optou por terceirizar a política externa dos EUA no Oriente Médio para um etnoestado de direita com mentalidade de bunker. E embora os Bidenistas tenham, por vezes, parecido menos entusiasmados do que os neoconservadores da era Trump, suas ações (ou inações) dizem muito. Cada bomba israelense lançada em solo iraniano ou árabe é aprovada, financiada e protegida pelos EUA na ONU.

Mas não se engane — Trump dificilmente é uma alternativa. A ideia de que Donald Trump, a personificação do fracasso em controlar impulsos nos tuítes, diga a Netanyahu para se retirar é ridícula. Trump há muito tempo ostenta seu servilismo à direita sionista como um distintivo de honra. Da mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém ao reconhecimento da anexação de terras sírias por Israel, passando pela aprovação de tudo o que Netanyahu deseja, exceto o ataque nuclear a Teerã, Trump provou ser mais um bobo da corte do que um comandante.

E, no entanto, ironicamente, Trump poderia ser a única figura americana com influência pessoal sobre Netanyahu suficiente para acalmar os ânimos — se não estivesse completamente comprometido pelos mesmos neoconservadores que um dia fingiu desprezar. Seus instintos esporádicos de desescalada são sempre esmagados pelos sussurros de Kushner e companhia. Portanto, não aposte que Donald se tornará a pomba.

Isso nos deixa com o Irã — ainda de pé, ainda sóbrio. É um país que foi demonizado, sancionado, infiltrado e atacado, mas ainda insiste em um caminho negociado para o futuro. Sua liderança deixou claro, repetidamente, que busca energia nuclear, não armas nucleares. Isso não é mera retórica; está codificado no próprio documento que os Estados Unidos outrora defenderam: o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que o Irã assinou décadas atrás e que Israel ainda se recusa a reconhecer.

O Irã cumpriu suas obrigações mais do que qualquer outro Estado na região. O próprio órgão de fiscalização nuclear da ONU confirmou consistentemente o cumprimento dos acordos nucleares pelo Irã — até, é claro, os EUA rasgarem unilateralmente o JCPOA sob o governo Trump, sob aplausos de Netanyahu.

Mesmo depois dessa traição, o Irã se ofereceu para retornar ao acordo. Esperou. Negociou. Tolerou assassinatos de seus cientistas. Suportava a guerra econômica. E, ainda assim, esperou.

Não mais.

A recente resposta militar do Irã à agressão israelense não foi impulsiva nem desproporcional. Foi o ponto final lógico de uma campanha de um ano de paciência, que foi recebida com violência. A mensagem era clara: Israel não atacará mais sem consequências.

E embora a mídia ocidental seja rápida em exagerar nas "provocações" iranianas, vale lembrar que o Irã nunca atacou outro país sem provocação na história moderna. Israel, por outro lado, faz disso um esporte.

A questão agora é: quem pode controlar Netanyahu?

O primeiro caminho é teórico: Trump lhe diz para parar. Mas isso exigiria que Trump fosse politicamente independente e intelectualmente coerente — duas características que ele nunca demonstrou simultaneamente. É muito mais provável que ele jogue mais armas em Israel enquanto se parabeniza por "trazer a paz".

O segundo caminho é brutal, mas real: uma derrota militar tão inegável que o mito da dissuasão de Israel se desfaça. Essa derrota poderia vir de uma frente coordenada de atores estatais como o Irã e a Síria, ou de atores não estatais como o Hezbollah, cujo arsenal e experiência superam em muito qualquer coisa que o exército israelense tenha enfrentado nos últimos anos.

Uma perda real — não apenas em relações públicas ou no tribunal da opinião global, mas também no campo de batalha — pode ser a única língua que Tel Aviv entende. Só então seus líderes poderão reconsiderar a sensatez da guerra perpétua como ideologia nacional. Até lá, o cão raivoso continuará mordendo, e o império continuará fingindo ser um cachorrinho incompreendido.

Isto não é um apelo à guerra, mas um alerta sobre onde termina a diplomacia unilateral. A trajetória atual é insustentável. Israel não pode continuar a bombardear todos os vizinhos que resistem à sua hegemonia, ao mesmo tempo que exige que o mundo o veja como uma democracia sitiada. Não se pode esperar que o Irã absorva agressões para sempre sem retaliar. E os Estados Unidos não podem continuar fingindo ser um árbitro neutro enquanto financiam e armam um lado até os dentes.

O Oriente Médio está sendo empurrado para o abismo — não pelas ambições nucleares do Irã, mas pela sensação de impunidade de Israel e pela dependência dos Estados Unidos em padrões duplos. O verdadeiro perigo não é que o Irã desenvolva uma bomba; é que Israel continue agindo como se já tivesse usado uma.

A ironia, claro, é que o único ator que demonstra alguma racionalidade, alguma contenção, algum desejo de estabilidade regional a longo prazo é aquele mais demonizado nas capitais ocidentais. O Irã, com todas as suas falhas e complexidades, agiu como um adulto em uma sala cheia de incendiários.

Mas até os adultos perdem a paciência. E quando isso acontece, a história não se importa com quem alegou ser a vítima — ela só se lembra de quem acendeu o fósforo.